Fila de banco. Detesto, como muita gente. E como todo mundo tenho que ir. Aliás, eu devia agradecer por haver fila de banco no mundo: ninguém sobreviveria na minha profissão sem poder relaxar durante uma hora aguardando o atendimento. Antigamente era ruim, hoje tem até banquinho acolchoado para a gente sentar. Daí eu posso apenas ligar o som no meu telefone e ficar ouvindo alguma coisa dentro da minha cabeça, me injetando ritmo enquanto os caixas matraqueiam com os dedos nos teclados baratos.
Fila de banco. Proibiram agora o uso de aparelhos celulares. É uma merda. Não posso mais nem ficar com os malditos plugues no ouvido. As pessoas ficam olhando torto, achando que faço parte de alguma quadrilha. Merda! Tenho que desligar toda vez que entro, e ficar quase uma hora sentado olhando para as caras dos outros clientes. Raramente aparece uma moça bonita que valha a pena olhar. Mas ainda mais ramente ela permite que eu olhe sem começar a me ver torto também, me achando um estuprador. Fila de banco. Detesto, como quase todo mundo.
Estou sonolento hoje, dormi mal e dormi tarde. Acordei cedo para trabalhar, como quase todo mundo. Estou aqui meio zumbi. As pessoas veem meus óculos escuros e me acham com pinta de maconheiro. Fila de banco é um lugar onde se concentram todas as fobias e caretices da humanidade.
Os caixas estão lentos hoje. Teria sido um ótimo dia para música. Dava para ter ouvido quase um álbum cheio. Mas tenho que ficar em vez disso olhando para os lados, tentando evitar que meus olhos incomodados retornem à orelha daquela moça. Porra, até que ela é bem gatinha, mas usa um enorme alargador auricular. Imagino que dentro de dois ou três anos terá uma orelha deformada e com aro grande o bastante para eu passar meu punho. Igual o lábio do Raoni. Eu sou meio careta com essas coisas. Fico pensando se dói. Uma tatuagem já me bastou. Nunca mais banco o macho deixando que me enfiem agulhas. Só de injeção, e por necessidade. Não curto dor. Não curto ficar aqui parado esperando a vez e olhando para a orelha daquela moça e pensando nela mocréia com quarenta anos e o lóbulo todo fodido.
De repente o telefone toca. Metade da fila me olha como se eu estivesse cometendo um assassinado ou comendo uma criança. Não é nada demais, só uma mensagem de texto. Alguém tuitou que vai ter uma festa-surpresa. Adoro essas festas mal organizadas. Geralmente a bebida é quente e ruim, o lugar é uma porcaria e a polícia aparece descendo o cassetete em todo mundo. Mas sempre aparece muita gente diferente. Se não houvesse essas festas malucas seria até difícil fazer amizades fora do bairro. Talvez eu nem tivesse amizades: como você puxa assunto com essa gente na rua, todos andando olhando para frente e preocupados com suas bolsas, olhando para mim como se eu fosse um marginal de estilete na mão, pronto para cortar alguém. O telefone tocou convidando para uma festa dessas. Eu vou, claro. Eu sempre vou, ainda mais que o convite vem do Tõezinho. Faz quase um ano que não vejo o verme.
Quando consigo sair do banco eu respondo via SMS perguntando onde. A resposta vem minutos depois: Fenelon Guimarães 80. Nunca ouvi falar. Essa cidade é bem grande, e tem tanta rua quanto você tem veias. Você não sabe o nome de todas as suas veias, não estranho não saber onde fica essa rua maldita. Respondo de novo: preciso de um GPS ou de uma indicação no Google Maps. Tõezinho responde em três tempos: veio o mapa com um percevejo verde marcando a rua. Gandaia, lá vou eu. Beber muito uísque paraguaio com energético e beijar garotas com cheiro de patchouli e batom verde.
Já são quase cinco da tarde quando chego de volta ao serviço. Tempo para jogar uma cantada tosca na telefonista, bater o cartão e sair. Meu velho Chevette 76 me leva mansamente para casa, espargindo pelo ar um leve odor de gasolina e silicone. Hoje é sexta feira, eu mandei lavar, polir, lubrificar. O carrinho está manso e liso como uma mulher que sai do banho. Ser sobrinho de mecânico tem suas vantagens: o motor ronrona gostoso como uma namorada gozando na cama e as molas macias como um colchão de motel nem me deixam sentir os buracos do asfalto.
Minha mãe quer que eu coma em casa. Isso é absurdo. Sexta feira não é dia de ficar em casa depois que anoitecer. Tem que haver algum lugar qualquer para ir, algum lugar que não seja debaixo da saia da mãe. Ela me xinga enquanto eu tomo banho, meu pai ronca deitado no sofá, pronto para um enfarte, e nem liga quando saio. O velho ainda vai engasgar na própria banha qualquer dia desses. Tenho pena de minha mãe: ela era uma menina bonita quando se casou com esse gordo inútil, que só serve para ganhar uma aposentadoria por invalidez, tão gorda quanto ele.
A turma se encontra no posto de gasolina da BR. Digo que é “a turma” para dar uma boa impressão, mas somos só três. Os “mortos de fome do BNH”, como a Dolores nos chamava nos tempos de escola. Dolores era uma vadia, dava para um dono de loja rico e andava mais emperiquitada que uma dançarina de filme francês. Casou com ele graças à barriga e a habilidades orais. Hoje dirige um carro importado preto e não nos conhece mais quando passa por nós. Imagino que ela acharia engraçado nos ver bebendo cerveja barata sentados no capô de um Chevette 76, no estacionamento de um posto de gasolina à margem da BR, numa sexta feira às sete e meia. Somos três perdedores.
— Que história é essa de festa, Miguel?
— Tô de falando, recebi o recado do Tõezinho hoje à tarde. Não sei se é ele que tá organizando, mas com ele não tinha furo: toda festa que ele convidava ficava dez. Eu vou, nem que seja no inferno.
— Assim é que se fala, camarada, segura a capetinha pelos chifres para ela te chupar gostoso!
Ninguém passando pelo asfalto a cento e vinte por hora teria entendido a gargalhada dos três idiotas montados no Chevette marrom.
Saímos do posto cerca das dez da noite. Deixei o Vavá dirigir porque ele não pode beber. Dentre as muitas ziquizilas que ele tem está uma alergia forte ao álcool. Ele compensa de outras formas, claro, mas dá para dirigir bem. Vavá é um fresco, criado a leite de pera e ovomaltino, ele nunca pegou uma mulher, mas jura que não é veado. Hoje nós vamos dar um jeito de arranjar uma vadia bem doida para ver se ele deixa de ser cabaço. Mas ele não sabe ainda.
— Aonde é esse raio de lugar onde vão fazer a festa?
Pego o telefone do bolso e lhe mostro no mapa.
— Isso é longe pacas, Miguel. Tem gasolina nesse gambá aqui?
— Tem sim, claro. Olha aí!
— Parou de funcionar de novo o marcador de gasolina. Por que você não vende essa merda de carro?
— E compro o que com o dinheiro? Uma mobilete?
Vavá não tem argumentos. Com menos de três mil reais eu comprei um Chevette velho, que eu mesmo retifiquei e reformei, com a ajuda de meus tios, que são mecânicos, tanto o irmão do meu pai quanto o da minha mãe. Eles são sócios. E são mais pais para mim do que o gordão que passa o dia vendo televisão e vira a noite assistindo pornô sueco.
Já são mais de nove da noite quando começo a ficar preocupado. A festa parece cada vez mais distante. O centro da cidade já ficou para trás há muito tempo. E olhe que nós saímos da periferia, passamos por dentro e estamos quase saindo do outro lado. Se o odômetro funcionasse eu saberia o quanto rodamos. Deve ter sido muito.
As ruas são mal iluminadas e vazias. Não tem nem birosca aberta. É um bairro industrial, dá para ver pelos imensos edifícios em formato de caixote, alguns com chaminés do século passado. Eu nunca tinha vindo a essa parte da cidade, parece um filme americano de terror, daqueles com gangues de psicopatas sobre motos, matando os rivais arrastando pela rua. Eu vi um filme assim uma vez quando era bem molequinho.
Direita, esquerda, esquerda, direita e esquerda. De esquina e esquina vamos nos perdendo mais até que, de repente, encontramos uma placa indicativa. Estamos na esquina da Fenelon Guimarães com a Juvêncio Estrada. Duas ruas estreitas e perdidas, onde parece que não mora nem alma penada. Não tem ninguém na rua.
— Caralho, Miguel. Te passaram um trote dessa vez. Não tem nenhuma merda de festa rolando por aqui.
— Deve ser num desses galpões aí. Tipo, dessa vez resolveram fazer organizado. Puseram isolamento acústico para não chamar a atenção e fizeram num lugar sem vizinho chato para chamar a polícia.
— Eu acho que a gente devia voltar — diz o Vitinho, pela primeira vez dando uma opinião.
— Tudo bem, a gente volta. Mas primeiro vamos descer e procurar o número oitenta e ver o que tem lá. Depois a gente vai até para a puta que pariu se for preciso.
Concordamos e vamos procurando o 80. O Chevette vai devagarinho, como um gato se esgueirando pelo muro. Achar vai ser Tarefa difícil porque não tem ninguém na rua e nem os prédios tem número. Somente um imenso portão de ferro se destaca. Não sei porque razão eu imaginei que ali poderia ser o lugar. Estranha premonição. Era lá.
Lá era um cemitério.
Meus amigos desgraçam a rir enquanto eu quase me cago de medo.
— Miguel, acho que você devia entrar, deve ter uma capetinha aí dentro pronta para te chupar! — o veado do Vavá se aproveita para zombar de mim. Logo ele que nem deve saber do que está falando.
— Não se brinca com uma coisa dessas — diz o Vitinho, já beijando seu crucifixo de prata, presente da avó siciliana.
— Deixa de ser medroso, Vitinho. Vamos entrar.
— Entrar!? — o instinto fresco do Vavá se manifesta.
— Uai, e por que não?
— Por que sim, você quis dizer! Para que diabo a gente vai entrar no cemitério hoje, logo na quaresma, Miguel. Não tem nenhuma porra de festa por aqui, nem num raio de vinte quilômetros. Vambora pegar um cinema que ainda dá para pegar uma sessão de meia noite.
Eu não me conformo de ter sido passado para trás. Pego o telefone e envio de volta um SMS furibundo: “o inútil que me convidou aqui hoje vai aparecer ou não é macho para isso?”
Tenho vontade de jogar longe o telefone. Pena que ainda estou pagando. Pena que preciso e gosto dessa merdinha difícil. Tenho mais amigos me seguindo nele do que na vida real. Se eu tivesse comido metade das mulheres que se dizem minhas fãs no Orkut eu me sentiria um artista. Não vou jogar fora o telefone, queria era sentar a mão na cara do veado que me sacaneou.
Vamos voltando para o carro, desolados, quando o telefone toca de novo. Tõezinho de novo. A mensagem de texto diz simplesmente: “Eu estou aquii”. Um leve sopro de vento arrepia minhas orelhas. Olho para trás e vejo uma luz vaga dentro do cemitério, vindo em direção à porta.
— Corre, diabo!
Não sei o que foi que tinha no tom da minha voz que os dois entenderam como se fosse um abracadabra. Nem sei como entramos dentro do carro. Lembro-me vagamente de um vidro quebrando e estou com uns arranhões na barriga e a cabeça me doi muito. Por sorte sou sobrinho de mecânico e meu carro velho vive com o motor regulado. Saímos de lá cuspindo fagulha pelo escapamento, que assobiava como um apito de Satanás. Se morava alguém naquele bairro, deve ter acordado. Talvez até os defuntos tenham se incomodado. Sei que alguém chamou a polícia.
Meu pai veio me tirar da delegacia no dia seguinte. Pagou a fiança, soltou o carro. Vavá perdeu doze pontos na carteira e eu vou gastar uma grana boa pondo outro vidro traseiro. Eu não respondo quando me perguntam o que aconteceu, como foi que quebrei o vidro ou que cortei a testa. As pessoas não vão acreditar. Aliás, nem eu vou acreditar se eu me contar. Pode ter sido só a lanterna do zelador, ou uma capa de chuva iluminada pela lua. Ou pode ter sido qualquer outra coisa.
Eu só sei que foi só no sábado de tarde que eu lembrei de uma coisa que tinha me passado despercebida: Tõezinho morreu, faz um mês, em um acidente de carro na BR, dizem que tava tirando pega usando um Dodginho envenenado. Mas ele me mandou a mensagem. Ou roubaram sua senha para me sacanear. Mortos não dão unfollow. Sei lá.