Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o “Serra da Estrela”. Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
- Benzinho
- Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
- Quinze Bandas
- Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou “bandas”, como se diz por aqui).
- Moça Velha
- Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada.
- Coração da Índia
- Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
- Chá da Meia Noite
- Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”; um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor; mas as mortes dos doentes nos hospitais eram por causa do “chá”. A história começou a circular no início do século XX, na época da Gripe Espanhola, quando os hospitais estavam lotados e sempre chegavam mais doentes. Dizem que as enfermeiras davam um chá de plantas venenosas para desocupar um leito que teria de ser usado para um paciente mais jovem, mais rico ou com prognóstico melhor.
- Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
- Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia arrancá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos.