Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Carta Aberta ao Senhor Motorista do Tanque

Publicado em: 31/10/2011

Artigo escrito para a o blog https://simplissimo.com.br

O Direito de Ler

Questionar o tema “livro eletrônico” é clamar por encrenca. Como toda buzzword da era da internet, os e-books são um conceito que adquiriu uma aura de dogma e qualquer tentativa de dissensão resulta em anátema. Aliás, qualquer pessoa que ainda se preocupe com “firulas” como “privacidade” e “direitos” acabará tachada de coisas horrendas, tal como andam a fazer com o Richard Stallman — um sujeito brilhante, mas inábil para cativar as pessoas com simpatia, ingenuamente imaginando que as pessoas são racionais e compreendem argumentos lógicos. Richard Stallman se tornou quase a Geni da era da Internet, tudo porque há trinta anos se insurge contra praticamente todas as novidade alardeadas pelo mercado de tecnologia. Entre tudo que ele denunciou tivemos o software de código fechado, as práticas comerciais da Microsoft, os sistemas de gerenciamento de digital direitos autorais, as redes sociais, os telefones celulares e os computadores de arquitetura fechada. Até hoje esteve certo todas as vezes.1 Como não me incomodo de perder mais alguns leitores, ouso aqui adentrar em um terreno pantanoso.

O principal texto de Stallman que nos interessa ao tema se chama “O Direito de Ler”. Trata-se de uma narrativa de ficção científica no qual um jovem apaixonado por uma colega de classe pobre enfrenta um dilema existencial: deverá ajudá-la a estudar para a prova, emprestando-lhe os seus livros eletrônicos (assim violando a sua licença e cometendo um crime), ou negar-se a isso, cumprir a lei e perder a oportunidade de ganhar a garota de seus sonhos. Debaixo da capa de um dilema tão simples está a questão do “Gerenciamento de Direitos Digitais” (Digital Rights Management — DRM): ao impedir a cópia de um arquivo digital, não fica impedida só a difusão das obras publicadas sem pagar, mas também uma tradição de séculos: o empréstimo e/ou doação de livros. Nessa escola do futuro descrita no conto de Stallman, os alunos precisam pagar por todos os livros pedidos no currículo. Não têm a opção de ir à biblioteca escolar para consultá-los lá, gratuitamente.

A leitura desta história, em 2002, deixou uma impressão forte em mim. Primeiro porque sou fã de ficção científica desde os tempos de moleque, quando, em lágrimas, assisti “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Segundo porque, sendo eu um usuário de Linux, as ideias de Stallman estão muito mais próximas de mim do que de um usuário comum de Windows: Linux não é só um sistema operacional, mas uma ideia sobre como tinha de ser o mundo. A ideologia foi dada justamente por Stallman em 1984, quando abandonou o emprego no MIT para criar um sistema operacional livre, dando origem, à FSF (Free Software Foundation, “Fundação em prol do Software Livre”). Muita água rolou de lá para cá sob a ponte.

Uma ideia é algo muito poderoso. Depois que você tem contato com ela, depois que você entende e assimila, será preciso muito mais que um argumento racional para retirá-la de seu castelo no fundo de sua alma. Ideias não plantam só conceitos, mas desconfianças. Stallman plantou em mim a salutar desconfiança de que as poucas e poderosas empresas que dominam o mercado mundial de tecnologia não estão interessadas em construir uma democracia mais bonita, um mundo de fartura e alegria, etc. Empresas estão interessadas só em dinheiro. Sem a focinheira do Estado na boca, elas comerão tudo. Não foi um comunista barbudo que declarou que “não existe almoço grátis”, foi um expoente do pensamento econômico liberal, Milton Friedman. Stallman é barbudo, e suas ideias muitas vezes tangenciam o comunismo, mas ele concorda com Friedman: tudo que existe de graça e relacionado a computadores está interessado em conhecer e controlar você. Com esse conhecimento e esse controle é que as empresas ganham rios de dinheiro.

O Mundo em Transição

O mundo já foi mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, é claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do seu próprio caderno e da própria máquina de escrever. Não era preciso pagar aluguel pelo uso da estante, nem temer que um texto pela metade evaporasse sem remédio por causa da falha de um programa mal escrito. Quando o autor vinha a ter o livro publicado, era garantido que ele existiria, fisicamente, por décadas a frente, que não sumiria se a editora simplesmente se arrependesse de tê-lo publicado. Para quem chegava a obter o sucesso, especialmente nos países mais estáveis, como os Estados Unidos, décadas de direitos autorais poderiam assegurar uma vida inteira de profissionalização. Era um mundo excludente, que só funcionava para bem poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.

Acontece que este mundo que nós conhecemos, bom ou mau, já está caquético, prestes a perder os últimos dentes. Dentro de poucos anos será inimaginável esperar uma carreira como a de um Stephen King ou de um Graham Greene, porque o “livro eletrônico” tem um caráter totalmente diferente do livro tradicional. Assim como a fotografia é outra coisa, comparada à pintura a óleo, principal expressão artística mundial antes do século XX. Vivemos agora a transição entre os dois mundos, não temos ainda como prever como vai ser o futuro “fotográfico” da literatura, mas já sabemos que não será como o passado e que isso não será necessariamente bom.

Comecei a seção anterior dizendo que o e-book é uma buzzword que adquiriu um caráter de dogma, e cuja crítica é retrucada com o anátema. Eis uma característica é predominante em nosso tempo: após décadas de modernismo, que propalava simultaneamente várias formas e teorias sobre a arte e o mundo, voltamos a buscar outra hegemonia, não mais estética (logo superficial), mas sistêmica.

Esta aspiração ao pensamento único vem de ideologias políticas e econômicas do último quarto do século passado, mais notoriamente das teses do “Fim da História”, apregoada pelo filósofo Francis Fukuyama, e o “Consenso de Washington”. Algumas buzzwords nomeiam coisas que efetivamente existem, são novas e se consolidam, como foi o caso de “internet” (que já foi um tema da moda, e até assunto de série de ficção científica antes de se tornar um item básico de nossa sociedade). Outras, são conceitos ainda mal desenhados no ar por pessoas interessadas em ganhar o dinheiro de quem gosta de palavras ainda aéreas. Muitas ficam no meio termo: dão nome a coisas que existem, mas não são novas, só são revestidas de nova aparência. Penso que o “livro eletrônico” está neste terceiro grupo.

A rigor, se julgarmos pelo sentido literal das palavras, podemos dizer que há “livros eletrônicos” desde meados dos anos setenta, quando foi criado o Projeto Gutenberg, com o objetivo de transcrever para o formato eletrônico toda a herança cultural da humanidade. Desde então surgiram outros projetos e outras formas de geração, distribuição e leitura de conteúdos; textuais e não textuais. Um website não deixa de ser um livro eletrônico, se contiver texto apropriado para um livro.

Porém, quando os marketólogos do mercado tocam em algo, procuram criar um produto a partir do que era commodity. Assim, o livro eletrônico foi etiquetado como e-book apenas quando ganhou um formato, não uma forma, só pelo antigo anseio de manter controle do conteúdo que a internet ameaçava arrebatar.

Reprodução e Controle

Todos os leitores de livros eletrônicos procuram de alguma forma restringir o acesso do usuário ao conteúdo, seja pela criação de formatos incompatíveis, de licenças dificultosas ou impedimentos operacionais diversos. Quem comprou dos primeiros e-readers, e gastou mais dinheiro em “livros” para ler neles, hoje deve estar a se perguntar perguntam onde foram parar: quando o aparelho deu defeito, os livros simplesmente sumiram. Uma coisa com arquivos digitais é que eles somem. Se para morrer basta estar vivo, para um arquivo digital desaparecer, basta que tenha sido criado. Uma das prevenções contra o desaparecimento é a multiplicação. Todos os organismos vivemos evoluíram a reprodução como uma ferramenta de sobrevivência, porque veem a morte no horizonte. Ainda que os arquivos digitais não estejam vivos, também têm uma “metafórica” morte à frente, que é o seu apagamento acidental ou a corrupção. O backup, a cópia de segurança, previne isso. Na natureza, ter muitas cópias de si é uma medida de sucesso, mas o mundo digital pretende controlar a quantidade e a qualidade das cópias.

As empresas que vendem produtos culturais criam desses controles para impedir a livre reprodução porque não estão interessadas na preservação do conteúdo do arquivo, mas no dinheiro que ganham a cada reprodução autorizada. Para uma gravadora, por exemplo, até seria mais econômico destruir imediatamente as cópias antigas de gravações que não dão mais lucro, em vez de mantê-las sob guarda por décadas além de sua época ideal. Se fôssemos seguir todas as regras restritivas impostas por editoras e gravadoras, eu sequer poderia tocar no aniversário de minha filha o CD da Xuxa que lhe dei de presente, o que seria uma “execução pública”, e não teria a permissão de fotocopiar trechos de um livro para dar aos meus alunos.

Essas restrições criam uma tensão natural entre as tendências da natureza, que impelem à reproduzir, e as imposições econômicas e políticas do capitalismo, que determinam restringir. Quando você cria um conteúdo, sabe que, caso ele agrade, haverá um interesse por reproduções dele. Esse interesse é natural. Só nos resta ter a esperança de que desse processo possamos ganhar algum dinheiro para recompensar nossos esforços.

Então, quando se criam regras para controlar o acesso, mesmo que tais regras sejam feitas em meu nome, eu imagino que elas não me beneficiarão, que dificilmente beneficiarão aos controladores de tal conteúdo e certamente prejudicarão à humanidade. Muitas são as leis que são criadas, e custosos os procedimentos e processos que são levados a termo em nome do combate à pirataria, tal como são inúmeros e custosos em relação ao combate quixotesco contra as drogas. O ser humano quer se anestesiar, e ocasionalmente destruir-se, e é inútil tentar suprimir as ferramentas, pois se a necessidade existe, outras ferramentas sempre serão criadas. O ser humano é inteligente e engenhoso, sabe improvisar em caso de necessidade. O ser humano quer o conteúdo, quer ver o filme, ler o livro e ouvira a música.

O Direito Autoral

O livro é uma ferramenta poderosa. Tão poderosa que praticamente sozinho acabou com a Idade Média e criou a sociedade em que você vive, este Admirável Mundo Novo, cheio de pessoas adoráveis. Não acredite nos históriadores tradicionais: o mundo que conhecemos não é fruto das contradições do feudalismo e nem de uma fase de grandes navegações, mas de uma mudança de mentalidade produzida por uma invenção que rapidamente revolucionou a transmissão do conhecimento pelo mundo: a imprensa.

Antes da imprensa o conceito de autor era difuso porque o livro, em si, era algo inexistente. Os manuscritos antigos e medievais eram reproduzidos por copistas, que podiam alterar, adulterar ou abreviar o original. Certos tipos de obras, especialmente poesia e música, tinham um caráter efêmero, não eram vistas como “obras de arte” no sentido em que hoje as vemos.2

Com a imprensa o livro se difunde e com ele se difunde o nome de seu autor, criando a vaidade da originalidade e da autoria. Não se passaram dois séculos até começarem a surgir leis regulando o direito autoral.3 Estas leis eram, em essência, justas. Procuravam remunerar o criador, em vez de pôr o lucro na mão do dono da impressora. Permitiram que pessoas pobres ganhassem vida sem ser de forma braçal: surgiu assim a figura do “intelectual”, este ser abjeto e detestado hoje em dia. Junto com ele surgiram profissões, como jornalismo e a literatura. O ápice das leis do direito autoral ganhou a forma na Convenção de Berna de 1886, que assegurou que cada país respeitasse os direitos dos autores nascidos em outros, permitindo que o mercado de tradução funcionasse, e aumentando os ganhos dos autores.

Quando o autor se profissionalizou, foi necessário que tivesse a proteção do Estado para se manter profissional. Se a proteção do direito autoral se extinguisse com a sua morte, haveria sérios riscos e inconvenientes para sua família. Pelo lado do editor ou impressor, a morte prematura do escritor talvez deixasse cair em em domínio público uma obra de que se fizera há pouco uma grande tiragem, causando prejuízo a quem investira. Pelo lado do autor, havia o risco de inviabilizar sua carreira na velhice, porque os editores simplesmente esperariam a sua morte para terem acesso à sua obra de graça. Foi por isso que se criou a extensão póstuma do direito autoral.

Porém, tal como as pensões das filhas de militares, nisso também se criou uma situação estranha. Às vezes o autor morria e legava de herança uma renda expressiva em forma de direitos autorais a parentes que em vida o haviam desprezado, abandonado, tachado de louco etc. Imagine, por exemplo, Bruna Surfistinha, que até hoje não foi perdoada pelos pais, casar-se em regime de separação de bens e em caso de sua morte agora, os direitos autorais de suas obras escandalosas ficariam sob controle deles. Como nem loucos rasgam dinheiro, o mais certo é imaginar que eles aproveitariam muito bem esse dinheiro. Usei um caso famoso e próximo de nós, mas casos análogos existiram às pencas pelo mundo. Tudo graças a extensão póstuma do direito autoral, que em alguns países chega a absurdos noventa anos!4

O Controle do Fluxo

Escrevi tudo isso sobre o direito autoral porque acredito que só entendendo o alcance que ele tem e a ideologia que traz, é que o leitor poderá vislumbrar de que maneira os atuais controladores de direitos eletrônicos buscam controlar; se possível, taxar; os fluxos de conhecimento e de criação. Há empresas interessadas em manter no lugar a atual estrutura — que não é toda injusta, há que se dizer, embora longe de perfeita. Mas este fim quimérico é um obstáculo no caminho natural do fluxo tecnológico. Então, pôr obstáculos a ele envolve pôr obstáculos ao progresso. Não é nada surpreendente, então, que alguns desses controles ameacem tudo o que chamamos de democracia e sociedade livre.

Imagine um mundo em que leis seriam ditadas pelos fabricantes de de carruagens para tentar proibir automóveis capazes de andar em velocidade acima de um cavalo em trote (15 km por hora). Imagine um mundo em que os pintores determinassem quantas fotografias os fotógrafos poderiam tirar por dia e proibissesm várias cópias de um só negativo. Imagine um mundo em que os copistas proibissem a impressão de tiragens de livros com mais de vinte exemplares.

Agora imagine um mundo em que leis impostas por controladores do conteúdo digital (editores e gravadoras) impedem que os arquivos digitais (por sua própria natureza transmissíveis, copiáveis e alteráveis) sejam justamente transmitidos, copiados e alterados.

Introduzir novas tecnologias deveria induzir a criação também de estruturas novas de poder e marcos reguladores adaptados ao novo tempo. Tentar continuar com as mesmas leis e paradigmas de antes é um obstáculo ao curso da natureza e toda lei que tenta impedir a natureza de seguir seu curso produz violência, porque apenas a violência pode resistir à natureza. Sempre que a violência vence a natureza, no entanto, temos uma terra arrasada.

O Ego Acuado

Vocês devem estar imaginando, então, que sou mais um que celebra o futuro esfuziante que vem aí. Que sou contra as ferramentas de controle do conteúdo, que abraço entusiasmado o mundo eletrônico que nasce. Nem tão depressa, motorista. Pare o ônibus do futuro, pois quero descer.

Quero voltar para minha casa, achar meu próprio armário debaixo da escada, ali me esconder, com minha velha máquina de escrever, e então, de dentro da escuridão desse meu canto, oferecer o meu vislumbre dos perigos desse futuro. Uma resposta algo poética, e hoje em dia a poesia se tornou pejorativa, mas é só com poesia que se pode resistir — e obter contundência. Não me acusem de fazer dramalhão, falo de valores que muita gente não entende nem conhece, falo do ponto de vista de quem está acuado no quarto de despejo debaixo da escada. O que para vocês pode parecer casca, para mim é a medula.

Eu sou o ego. Sou a ambição do indivíduo e falo em nome desses e de outros desejos do self. Eu não acho que eu seja ruim, eu só fiquei pequeno e agora não adianta mais eu gritar.

O ego não é egoísta. O egoísmo é uma perversão tão grande quanto a total ausência de amor por si. Não sou o egoísmo, eu não quero me matar no mesmo penhasco que vocês. Aprecio ser quem sou, tudo o que sou, e gosto da ideia de poder ser quem quero. Muito disso que sou é amálgma de coisas ditas ou feitas por outros egos. Não me incomoda saber isso. Estou sobre os ombros de gigantes, sim. Nisso não há orgulho nem demérito. Todas essas coisas passaram a fazer parte de mim, de certa forma, por minha escolha ou um mero acidente, como uma mancha de mofo que aparece numa toalha. Todas as coisas que estão em mim eu aceito, ainda que eu não preserve. Ninguém me impôs que eu escrevesse, por exemplo. Ninguém por sua vontade decide que há mais beleza nisso que naquilo, nem resolve que precisa dizer a todos o que viu.

O Ego é bom. “Penso, logo existo” — eis o que ele diz. “Penso” não é um fenômeno coletivo. “Penso” é ilusão de individualidade que nos torna saudáveis. “Penso” é a felicidade.

No mundo eletrônico, o ego está sob ataque. Movem guerra nuclear contra ele. Guerra cuja primeira batalha estourou, décadas antes do primeiro chip de computador, quando alguém concluiu que não bastava o autor, era preciso um profissional capaz de ensinar os escritores a escrever.

O nome desta profissão é “censura” e o seu fruto é a negação do ego. O autor não tem a “permição” de escrever com cê-cedilha, a não ser em contextos limitados. Assim como atores de novelas não podem falar com outro sotaque que não seja de Capacabana, a não ser em novela regional caricata. O nome é “censura” e sua marca é a soberba.

Houve um tempo em que o escritor escrevia, o revisor revisava, o editor editava. Hoje escritores escrevem, revisores reescrevem e editores mandam reescrever — quando não a escrita já não surge direto daquilo que pedem. No fim desse processo “interativo” a obra que é publicada foi expurgada dos defeitos e de toda marca pessoal de alguém. Todo autor tem defeitos, os únicos perfeitos são os editores e os revisores.

O Inferno do Ego

Antigamente se poderia bem dizer que “livro é como passarinho”, depois que saiu da prateleira da livraria ninguém mais controla. Hoje em dia é possível revogar a publicação do livro e apagar do dispositivo chique o arquivo ofensivo que não deveria ter saído, como fez a Amazon.5 Antes de tudo, agora se pode fazer as “correções” na redação do escritor-aluno até que seja aceitável no contexto da edição-escola. Onde esqueceram no caminho a ideia de que o escritor é um adulto livre para ousar, diante de quem a sociedade espera?

Os editores celebram no livro eletrônico justamente isso que ele tem de monstruoso: a facilidade para se criar, em tempo real, um trabalho colaborativo. O nome da colaboração é “censura prévia”: você só chegará a ser aceito caso se torne do jeito que o editor deseja previamente que seja. Vemos isso recentemente, ao vivo na televisão, em um programa chamado “Fama”. Cantores de diversos estilos, origens e personalidades foram amestrados durante cinco semanas até que todos passassem a cantar de forma muito parecida e perdessem seu estilo original. O mercado não busca nada que se encontre acabado, não quer nada pronto. Ele quer pegar o barro e moldar o vaso. Parabéns a você que é barro. Quem for duro virará caco.

As mutilações digitais não deixam marcas. Originais eletrônicos? Nunca existiram mesmo! São apenas arquivos, deletados e perdidos para sempre das nuvens de elétrons que circulam por circuitos. O trabalho colaborativo é uma ferramenta quase comunista, mas está em uso pelo capitalismo. No fundo, os totalitarismos se servem dos mesmos instrumentos — e nada é mais totalitário que a tese seca do capitalismo que nos quer moldar.

Não me acusem de estar preso ao século XX, ou de ser o arauto do passado. Prefiro ser arauto do que entendo a ser papagaio de uma ideia vaga, cujo impacto ainda está além. Oh, não, lamento dizer que vocês talvez não entendam o que acham que entendem. Hoje em dia as pessoas são curtas e rasas. Os intelectos não são pontos. Ninguém faz análises de longo prazo, afinal o ano fiscal termina em dezembro. Algum dia surgirá quem creia que o mundo foi criado em janeiro.

O Choque do Futuro

Novo não é sempre bom. Certas coisas horríveis do passado foram novidade quando apareceram: o amianto, a sífilis, o comunismo, a peste negra, aditivos de chumbo para a gasolina. Precisamos ser críticos em relação ao novo, talvez mais que em relação ao velho (porque conhecemos o velho e sabemos de seus perigos). É facil a profecia do passado, é confortável esticar longos dedos para os erros de nossos avós e dizer que não faria o mesmo. Difícil é se preserver de erros futuros, ser cético quanto ao canto da sereia que nos encanta com a novidade. O negócio do futuro é perigoso.

Hoje há tecnologias fantásticas, inimagináveis há quarenta anos. Ferramentas fantásticas, mas de dois gumes. Decerto fazem coisas inimagináveis em 1971, mas temo que nem todas estas sejam, além de inimagináveis, desejáveis. Temos ferramentas que nos dão a impressão de que no futuro não haverá arte, muito menos artista. Um futuro que me parece interessante, mas horrível. Um futuro de informação precarizada, controlada e impessoal. Nesse futuro não haverá liberdade de informação.

Hoje, se algum autor deseja ser dono exclusivo de sua obra, têm ferramentas para publicação independente — dizem os editores. Assim sugerindo que somente os que aceitem abrir mão de parte de sua autoria poderão deixar de ser “independentes”. Os editores querem uma sociedade com o autor, ao que parece. Algo como há no cinema, em que o produtor e o diretor, nesta ordem, determinam a qualidade de um filme muito mais que o roteirista.

Mas a publicação independente sempre foi a exceção. Desterrar a ela todos os que não se conformem significa fechar as portas aos que pensam por si. Pensar que houve uma época em que as pessoas achavam monstruosa a URSS por impor a coletivização de fazendas, a serviço “do povo”. Hoje as editoras, que desejam coletivizar a criação literária a serviço do lucro e são “cool”. Sabemos, mas, porém, no entanto e todavia, que o mercado é ditador. Portanto, “a porta da rua é serventia da casa” para quem não deseja que os ditames de uma editoria determinem como tem que terminar o que teve a ideia de começar.

Quem deseja ser um autor moderno deve “reconhecer que faz parte de uma equipe cocriadora, na qual cada um contribui com o que sabe fazer melhor e trabalha em consenso com os demais”. Imagino que reação teriam os membros de uma “equipe cocriadora” dessas diante dos ícones de nossa literatura. “Consenso”, teu nome é “censura” porque impede a polêmica, e a polêmica é a carne que a arte cria no mundo. Estes conceitos revelam que, para muitos no mercado do livro, o livro é um pão de forma, cortado, ensacado e vendido a peso exato. O pão do espírito em formato adequado para armazenar em prateleira, quadrado e com prazo de validade.

Por causa disso que nós, criadores de conteúdo, não devemos ter ilusão quanto às intenções de quem guia o barco. Chamam a outros de piratas porque eles têm cartas de corso. É por isso que nós, os criadores de conteúdo, devemos ansiar e trabalhar para que vá abaixo todo esse edifício, que se destrua toda a atual estrutura de comando e controle do conteúdo, com seu arcabouço legal e sua prática corriqueira. Somente destruindo essas empresas de forma definitiva e irreparável haverá possibilidade de salvar o futuro dos que tentam represá-lo.

Certamente não conseguiremos salvar um futuro parecido com o que havia no passado de quarenta anos atrás, ou mais. Esse trem, ele já partiu há muito tempo. Talvez até há mais de quarenta anos.

Entre duas opções terríveis, temos de escolher a menos grave. Se pensarmos demais em nossos direitos autorais, podemos acabar num mundo onde não teremos quase direitos. Não em meu nome!

Conclusão

Se as editoras conseguirem o que querem, implantarão as “equipes cocriadoras” e amestrarão todo jovem que as procure atrás de uma oportunidade. Muitos talentos serão castrados. Aos corajosos, “a porta da rua é serventia da casa”, restarão os desertos remotos, da independência, do amadorismo, do esquecimento.

Uma “equipe cocriadora” é um conceito tão monstruoso que custou mais de um século para tomar corpo, desde que começaram a pagar revisores que iam além dos erros tipográficos.

Com a Revolução Industrial o artesão se viu alienado do controle da produção, virando proletário. Com a revolução informática, se não houver reação possível, “equipes cocriadoras” predominarão e tomarão do autor o controle de sua obra. Deixará de existir esse autor artífice que celebramos durante séculos e haverá somente o o proletário das letras, a serviço das fábricas de livros.

É possível até que surjam, na literatura, tal como já existem na música, “marcas” que não representam indivíduos, mas “equipes de criação”. Na música temos casos como Technotronic, Furacão 2000, Milli Vanilli e C&C Music Factory — formados por “intérpretes” contratados de “produtores”. Antes disso, de maneira benigna, os grupos de pop e rock com autoria coletiva. Era comum que membros que deixavam a banda tinham de esquecer “suas” músicas ou deixar o nome que usavam.6 Para os grupos, esquecer as músicas não era um prejuízo: bastava criar novo sucesso no mês seguinte. Para os intérpretes, significava que não tinham um repertório.

Digo que é possível que esta situação se transmita à literatura. A partir do momento que estiver firme o conceito de que o autor preciso ser parte de uma “equipe cocriadora” que o oriente, nada impedirá que as editoras simplesmente criem em equipe o conteúdo de que precisam. Isso já aconteceu com a música: ninguém procura descobrir artistas, porque eles podem ser produzidos em série.

Mas quem se importará em escrever livros se não tiver ao menos a expectativa da fama? Os mesmos que trabalham em fábricas sabendo que nunca serão donos de uma. Todo mundo sabe que é raro ganhar dinheiro escrevendo livros, a maioria faz pelo orgulho de fazer. Para pôr o nome na capa. Ponha o autor numa “equipe cocriadora”, que coletivizará o trabalho e justamente os mais criativos serão os mais desestimulados. Você está vendo a qualidade da música de hoje, que serve como excelente argumento em meu favor.

Eu vou mais longe, correndo o perigo de ir reiterando o já dito. Sabemos que, no passado, obras de qualidade foram rejeitadas por causa de polêmicas ou por “não serem comerciais”. Mas pelo menos foram rejeitadas “in totum” e foram preservadas na gaveta. Isso é melhor do que serem aceitas e mutiladas, sem que reste intacto nenhum original para comparação. Sairá uma obra desfigurada, sem raiz e sem noção. Sim, as crianças iludidas que sonham “escrever um livro” não se importarão, mas logo não haverá crianças com os sonhos de antes.

Os livros de “Star Wars” não foram escritos por ninguém

Ainda estou supondo que as crianças iludidas terão o seu nome na capa. Mas por que a editora ainda precisará da figura difícil e cheia de ego de uma autor que pode virar celebridade? Melhor que assine uma marca, fácil de vender e transferir. Se ela já em uma equipe “cocriadora” para fazer o trabalho, por que dar-lhe rosto e pagar alto salário a uma pessoa só?

Icônica foto de estudante chinês diante de uma coluna de tanques

Não estou aqui discutindo se isso vai acontecer ou não. Sei muito bem que os que ficam no caminho do “futuro” logo encontarão a Paz Celestial. Mas se tem algo que devo dizer é que eu sou um desses, senhor motorista, do tanque, não do ônibus. Melhor ser derrotado na luta em defesa de nossos ideais, do que viver rendido a servir aos objetivos alheios.


  1. Stallman foi amplamente vingado pelas revelações sobre o papel do FBI e da Agência Nacional de Segurança na exploração de falhas de segurança em programas de computador, obtidas por meio do vazamento de Edward Snowden. Como ficou claro que ele não era só um maluco falando em teorias de conspiração, precisaram criar outras acusações contra ele, como de abuso sexual, por exemplo.↩︎

  2. Muitas sociedades antigas davam grande importância à poesia. O que argumento aqui é que na Idade Média a poesia mudou seu papel social, deixando de ser uma obra autoral, prestigiosa. Havia uma poesia efêmera, como no contexto trovadoresco, havia a poesia religiosa, nem sempre atribuída de autoria, e também uma poesia popular, como os romances do alto medievo. Então o que eu quis dizer foi que a criação do livro impresso revigorou o velho conceito de autoria literária.↩︎

  3. As primeiras proteções de direito autoral surgiram na França, em 1551 (privilégios concedidos pelo rei Henrique II a Guillaume de Morlaye) e na Grã Bretanha, em 1710, através do estatuto da Rainha Anne.↩︎

  4. Nos Estados Unidos, em alguns casos, podem chegar até a 120 anos os prazos de proteção de direitos autorais, por causa do “Mickey Mouse Act↩︎

  5. Faz parte dos acordos de licença de todos os leitores de livros eletrônicos a possibilidade de você não ter mais seu acesso ao dispositivo ou a livros individuais que comprou, como candidamente explica este artigo da ZDNET.com.↩︎

  6. O baixista britânico Luther Grosvenor teve que gravar alguns discos com o pseudônimo “Ariel Bender”. porque sua antiga gravadora ainda detinha direitos autorais de tudo que ele viesse a compor. Ao memso tempo, depois de deixar seu primeiro grupo, a sua carreira solo não pode incluir trabalhos que ele mesmo havia composto para o primeiro grupo.↩︎

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