Quando terminei de contar as notas, já estava com vontade de chorar. Faltavam dois mil e quinhentos no caixa e já estava atolado até o peito em dívidas. Contei, recontei, suspirei e, por fim, registrei penosamente a diferença no boletim de caixa, sacramentado pela rubrica rabiscada do supervisor. Com aquilo, a minha vida de caixa acabava: até por uma questão de humanidade me “poupariam” de trabalhar mais no setor, o que significaria uma lamentável queda de quase quarenta por cento no contracheque. Algo lamentável, ainda que nos quatro meses anteriores eu tivesse perdido mais do que a comissão me pagava.
Saí do serviço derrotado. Tinha vontade de sentar num bar e beber até não conseguir mais engolir. Só o que me impedia era a lembrança de meu pai chegando entorpecido e fedendo a cachaça. Como contaria para a minha mulher? Mulheres são compreensivas com vários problemas, exceto os monetários. Não queria chegar em casa para enfrentar tudo de novo. Já tinha sido ruim das duas primeiras vezes, a terceira seria pior que os infernos. Retirei o carro da garagem e saí para o trânsito caótico ainda com o coração descompassado.
Havia um buzinaço em frente à Prefeitura, protesto de professores em greve. Um panelaço na avenida, protesto de flagelados desassistidos pela Prefeitura. Um palhaço vendendo ingressos na praça. Um ricaço em seu carrão humilhava com a buzina um pobre calhambeque enferrujado cujo motor morrera no cruzamento. Ainda tinha vinte quilômetros até em casa. Quando peguei o asfalto, a cabeça me latejava como seu ouvisse as batucadas de um samba satânico e eu nem tinha um comprimido. Mas eu suportaria aquilo. O carro escorria pela estrada quase arrependido de ter saído, não queria acelar como se antecipasse a cilada em casa. Nunca tivera o pé tão leve, e nem pensava em economia de gasolina.
Já na metade do caminho, deu-me na telha que era cedo, ou que simplesmente precisava sair da estrada. Poderia ter dirigido por um abismo abaixo, mas preferi um caminho estreito e poeirento. Somente quando o carro estava embicado entre barrancos, tossindo o pó vermelho do inverno, dei-me conta de que tomara o caminho de casa. Não da casa mercenária que alugava para abrigar uma estranha que trouxera da cidade, mas da materna e morna que eu lembrava nos sonhos, o velho sítio no distrito pequeno, perdido detrás de montanhas e de poeira.
Agira por instinto e por ignorância. Não teria escolhido ir lá. Meu pai estava morto fazia dez anos. Minha mãe estava muda num quarto de hospital, esperando sua vez. O sítio estava arrendado para alguém que eu nem conhecia e o dinheiro, dividido entre três irmãos. Tanta coisa tinha mudado, nem lembrava mais quanto tempo ficara longe de Roseiral. Mas estava indo, e naquela estrada eu acelerava mais.
Era noitinha quando meu carro subitamente apontou na pracinha. O relógio da igreja estava parado como na lembrança, como se a vida estivesse também. Mas as casas, que aos olhos de um estranho pareceriam imutáveis, mostravam mudanças sutis, definitivas, quase todas para pior. Parei o carro na parte alta, desliguei, saí afrouxando a gravata e encostei na porta. Os homens que jogavam bisca no boteco notaram minha presença. De onde estava, supus que conversavam sobre mim.
Julho estava frio e seco. A respiração queimava o nariz e eu tinha uma vontade louca de entrar numa casinha daquelas, dormir e acordar em 1980, quando era moleque e uma nota de dez cruzeiros comprava dez pães. Mas nenhuma das casas era máquina do tempo, não adiantava entrar para tentar uma segunda chance de consertar as coisas. A vida só tem o rascunho.
Então vi o quintal de Dona Josefa, o muro alto e pintado de cal virgem ainda pichado com propaganda da eleição passada. Tinha passado tempo suficiente para as goiabeiras crescerem por cima do muro. As malditas goiabeiras. Eu saíra de Roseiral vinte anos antes para não ter de conviver com a sombra delas na vida.
“Quinzinho”. Conseguira bloquear o nome muito tempo, mas bastou ver a folhagem acima do muro para lembrar. Tínhamos sido amigos e fora eu que insistira no convite: ele nem gostava de goiabas. Eu gostava, e preferia as vermelhas, especialmente meio verdes, para morder com sal e sentir a boca salivar intensamente. Ele gostava do desafio: Dona Josefa era ciosa das goiabas com que fazia o doce famoso que vendia na feira de domingo em Santa Teresa. Completava a renda da viuvez porque a pensão do falecido não dava para muito. Era crueldade roubar goiabas dela, mas moleques de doze anos não sabem. Pulamos o muro dos fundos e escolhemos uma árvore longe da varanda. No calor da tarde a velha se deitava para descansar, era a hora certa para a arte. Hora em que os homens estariam trabalhando e as mulheres, ocupadas nas cozinhas barulhentas fazendo a janta.
Mas o diabo às vezes é justiceiro dos coitados. Dona Josefa amanhecera naquele dia com uma animação inesperada e até os ouvidos de lagarto estavam bons a ponto de ouvir goiaba caindo no chão. Saiu de casa brandindo uma ridícula vassoura, mas nós dois, nem sei porque, tivemos medo como se fosse uma serva de Satanás pronta para voar em nós com feitiços. Largamos as goiabas e subimos o muro do jeito que deu. Fui primeiro: era mais lerdo e Quinzinho ajudou de dentro para eu ajudá-lo de fora. Caí meio de mal jeito, fiquei manco e me arrastei a custo pela calçada. Ele saltou cegamente, confiando que eu estaria lá para segurá-lo. Eu não estava.
Nunca soube direito o que aconteceu. Desde essa época evitei estudar qualquer medicina. Tenho trauma de sangue a ponto de detestar me barbear. Por isso optei por Técnico em Contabilidade em vez do Científico quando fui para o segundo grau. Quinzinho quebrou a cabeça bem quebrada, isso sei. O socorro demorou, teve que vir ambulância de longe e os enfermeiros do posto de saúde nem sabiam o que fazer.
Passei a tarde chorando como um bezerro desmamado achando que ele estava morto. Meu pai teria me dado uma imensa sova se eu já não estivesse em choque de tanto sangue. Ou talvez meu berreiro tenha desarmado sua mão e poupado minha bunda de uma surra de relho. Ele voltou para casa muitas semanas depois, vestindo ainda roupa de hospital e de boné na cabeça. Não falava, tinha um olhar vidrado e movia-se devagar, sempre deitado. Diziam que tinha perdido “massa” e a esperança. Dona Juraci não se conformava, mas a Benina, enfermeira do posto, jurava que um tal Doutor Sebastião poderia consertar o Quinzinho, era só ter paciência.
Meus pais praticamente me obrigaram à visita. Foi como ver um morto, só que ele tomava soro, sopa e longos suspiros por uma feia abertura no pescoço. Mesmo meses depois eu ainda acordava de noite debatendo-me no colchão com os braços abertos para amparar a queda imaginária de alguém.
Quando formei do segundo grau, achei emprego na cidade e pedi a permissão de meu pai para cair no mundo. Só voltei para o enterro do velho e para buscar minha mãe para o asilo, meus irmãos é que me visitavam, nunca eu. Não pedia notícias de Quinzinho, e os que me encontravam tinham a decência de não dá-las. Mas eu estava diante da casa de Dona Josefa lembrando Quinzinho e a casa dele ficava a menos de duzentos metros, metros que valiam vinte anos.
Fui caminhando pela rua irregular, como um fantasma de cemitério. Os cachorros não rosnavam nem latiam, as pessoas me cumprimentavam com meneio de cabeça ou murmúrios inaudíveis. A casa não tinha campainha, era preciso bater na porta. Enquanto esperava, vi pregada no beiral, como se tivesse aparecido naquela hora, uma placa de latão com o logotipo de um refrigerante. A janela que se abriu, não a porta, e uma moça morena, formas fartas e sorriso de piano, apareceu dizendo que não estava pronto. Depois foi que me notou, ou melhor, notou que eu era um estranho.
Aproximei-me da janela e notei que ela estava cheia de borrões de farinha pelos braços e os cabelos iam presos em um boné apertado. Dentro da janela havia prateleiras de biscoitos e bolos, uma geladeira.
— O que é que não está pronto ainda?
— O pão da noite. Fica pronto em vinte minutos. Vai esperar?
Disse que sim e pedi um refrigerante para me distrair. Começaram a chegar os fregueses do pão da noite, todos conhecidos, poucos com dinheiro. Olhavam-me surpresos, sem o que dizer.
Exatos vinte minutos depois ouvi barulho de metal contra metal e adivinhei que retiravam a fornada. Então a porta abriu e Quinzinho veio, mancando e com o mesmo olhar mortiço que eu lembrava em pesadelos, mas de pé e cheio de farinha. Ele murmurou algo com a morena, que passou a ajudá-lo a entregar os pães e anotar nas cadernetas.
Comprei sete. Dizem que é conta de mentiroso, mas exatamente por isso foi o número que me veio quando a morena perguntou quantos queria. Paguei, agradeci e fui saindo. Não sei se ele me conheceu. Sei que o Doutor Sebastião parece que o consertou um pouco e ele hoje faz pão, um bom e respeitável pão. Talvez até tenha aquela bonita morena em sua cama à noite. Talvez ela tenha aprendido a decifrar o olhar dele.
Volto para casa com os pães, sentindo-me palerma. O que Quinzinho e eu teríamos sido sem aquele dia desastroso? Eu não estaria lamentando uma redução de quarenta por cento em um salário que é suficiente para pagar um bom aluguel e o leite para uma linda garota, filha de uma mulher que nunca conheceria em Roseiral. Quinzinho eu não sei aonde estaria, mas hoje dá para acreditar que está feliz, pelo menos sem o buraco feio abaixo do gogó.
Enquanto dirijo, ainda sem pressa, vou mordendo os pães ainda quentes. Pães que saíram das mãos do meu amigo, do amigo que estraguei e que o Doutor Sebastião consertou, ao menos um pouco. Fiquei todos esses anos fora de Roseiral, não vi o que aconteceu. Talvez Quinzinho tenha até me conhecido, mas por que razão ele gastaria comigo um boa noite? Escolhi este desterro, tenho é que voltar para casa e para a cama de uma mulher vinda de longe, que fala de outro jeito e que me acha um caipira estranho.