Certo escritor nativo de minha cidade natal tinha o hábito de responder, sempre que lhe perguntavam insistentemente se já havia lido o livro de algum jovem autor revelado recentemente, ou os originais submetidos por algum amador: “Eu ainda não tive tempo para terminar de ler Platão [ou Joyce ou Dostoiévski ou algum outro clássico] e você acha que já tive tempo de ler isso aí?” Lembrei desta frase quando hoje tomei conhecimento da iniciativa Movimento em Prol dos Escritores Brasileiros Desconhecidos, divulgada pela Laura Bacellar (que me é tão desconhecida quanto eu devo ser para ela).
Existe um abismo conceitual e humano entre as duas posições. A primeira revela o pragmatismo de alguém que certamente valoriza a qualidade indisputável dos trabalhos que sobreviveram ao teste do tempo, a segunda prefere a novidade. A primeira desconsidera o escritor enquanto ser humano dotado de emoções (que o levam, por exemplo, a pegar o seu original e submetê-lo ao crivo de alguém que tem fama de ser mal educado), a segunda se preocupa com tanta gente que está nas sombras enquanto o sol brilha lá fora. A primeira revela autoridade, no caso uma autoridade irrelevante, e a segunda revela empatia. Nenhuma das duas contém em si um juízo de valor sobre o que afirma priorizar, pois quem ainda não leu certo autor não tem base para emitir uma opinião sobre ele e quem prioriza os jovens talentos por serem jovens certamente está, entre os trabalhos lidos, dando atenção imerecida a alguns que mereciam mesmo a sombra em que vegetam.
Em um mundo ideal não existiriam pessoas medíocres que humilham as outras através de comparações com o inatingível, especialmente considerando que o próprio autor em questão jamais esteve, nem jamais estará, aos pés do mais reles dos clássicos cujos nomes nos foram legados dos séculos anteriores. Mas também, em um mundo ideal, um trabalho não deveria merecer atenção apenas por ser novo. A verdade é que os livros, como quase todos os produtos culturais, são julgados principalmente por fatores extrínsecos: capas, temas da moda, sobrenome do autor, vinculação a uma obra audiovisual, reputação (boa ou “negativa”). Não acredito que a resistência que os novos enfrentam se deva à novidade, ou as pessoas estariam comprando os clássicos às toneladas, em vez de lerem J.K. Rowling e Augusto Cury. A questão é, na verdade, um problema de marketing.
Quando digo “marketing” eu não estou, de maneira nenhuma, querendo por qualquer tipo de culpa no autor. Escritores escrevem, revisores revisam, editores editam. Em um mundo ideal autores não editam, revisores não reescrevem e editores não revisam. Mas não vivemos em um mundo ideal, vivemos em um mundo onde a realidade é o imperialismo cultural mal disfarçado, que faz com que uma composição de adolescente mal escrita adquira um status de best-seller em nosso país, mas as nossas próprias composições são encaradas de nariz torcido. Ianques e britânicos têm o direito quase exclusivo de escrever certos gêneros, e se você quiser praticá-los deverá, no mínimo, ambientar suas histórias fora do país ou anglicizar os nomes dos personagens. Na melhor das hipóteses, pelo menos fuja de nomes muito acentuados, como Conceição, Sebastião, Estêvão ou João. Esse é o mercado em que precisamos nos inserir: é um mercado preconceituoso, racista (ou, no mínimo, anglocêntrico), unilateral (por objetivar subjugar-nos, em vez de assimilar-nos) e amparado em uma imensa indústria cultural a que estamos todos expostos desde a mais tenra infância. Querer culpar o autor tupiniquim por sua “falha” em atingir esse mercado é uma culpabilização descarada da vítima.
Portanto, quando a Laura Bacellar fala em valorizarmos o trabalho dos jovens autores — comprando-os, lendo-os, recomendando-os, falando deles, doando-os a bibliotecas etc. — ela está propondo uma atitude anticíclica. Considerando quão pequeno é o mercado editorial brasileiro (a ponto de obras se tornarem famosas por venderem poucas dezenas de milhares de exemplares) e tendo em vista o crescimento acelerado de nosso mercado consumidor nos últimos dez anos (que, infelizmente, ainda não teve impacto suficiente sobre as vendas de produtos culturais, como livros) o que ela está propondo é capaz de fazer mesmo a diferença. Um número relativamente pequeno de adesões (alguns milhares) pode produzir algumas “marolas” de interesse, que levarão a pequenas mudanças de curso. À medida em que alguns resultados começarem a aparecer, talvez as editoras percebam que comprar o original de um autor brasileiro é mais lucrativo do que pagar os direitos autorais de uma obra estrangeira famosa e ainda custear tradução e revisão. Nesse dia os nossos autores deixarão de estar em desvantagem tão grande contra os enlatados. Continuarão tendo a penalidade de serem menos conhecidos, mas serão mais baratos. Sendo lucrativos o bastante, isso já pode abrir inúmeras portas que hoje estão fechadas.
Agora, sinceramente, eu espero que estas portas venham a ser abertas para gente que escreve bem, o que exclui a maior parte da turminha que anda escrevendo no Orkut e no Facebook.