Não sou do tipo que aprecia autoajuda e detesto historinhas bonitinhas úteis para fazer team building (as coisas que eu detesto eu prefiro mesmo que tenham nomes em gringuês). Mas hoje ocorreu-me um fato que me fez querer escrever um texto que algum guru motivacional, especialmente desses que trabalham com equipes de venda, vai um dia pinçar e ler para seus discípulos. Sem me dar crédito, lógico, pois nesse negócio de autoajuda existe uma regra implícita que proíbe atribuir qualquer texto a um autor conhecido e vivo. Todas as histórias tem que ostentar a chancela de uma “antiga lenda”, palavras de um “sábio chinês” ou “ensinamento religioso”. Acho que mencionei que eu detesto esse estilo baboso e cheio de pretensão. Mas aí vai a historinha.
Ao sair do serviço, já quase seis horas, lembrei-me de que tinha marcada uma sessão de massagem, para aliviar minha retorcida coluna e minhas comprimidas veias. Porém, por uma dessas perversidades pequenas que a vida nos oferece, eu me esquecera completamente de trazer de minha outra casa um calçado esportivo, um chinelo de dedos que fosse. Como estou vivendo de segunda a sexta em outra cidade, a trabalho, eu não tinha a opção de ir buscar o que tinha esquecido. Vendo o comércio quase a fechar, entrei na primeira loja onde vi calçados, apontei para uma sandália franciscana e perguntei pelo preço e disponibilidade do meu número (43 para quem se interesse em saber). A vendedora foi remexer no estoque, procurando, e então decretou: infelizmente não tinha daquele tipo de calçado no meu número. Como nenhum sapato servia para o que eu queria fazer, agradeci e deixei a loja apressado, procurando outro lugar onde pudesse comprar uma sandália, ou calçado parecido.
Já havia percorrido uns quarenta metros e me aproximava de outra loja quando a vendedora me alcançou correndo, já quase sem fôlego, e me pegou pelo braço.
— Moço, como você anda depressa! Volta comigo, eu achei uma sandália do seu número. Estava caída no fundo da prateleira, mas ainda tinha.
Como não estou acostumado a ser tocado subitamente por pessoas desconhecidas, fiquei meio desconcertado com aquilo tudo. Principalmente pela cena da vendedora esbaforida correndo pela rua para me pegar pelo braço. Voltei com ela até a loja e comprei a sandália.
Enquanto ela registrava a venda no cartão de crédito, já tendo conseguido superar a surpresa e me inserir na situação, senti-me na obrigação de lhe dizer o que eu estava pensando:
—Você está de parabéns, isso é que é uma vendedora. Foi buscar pelo braço o último cliente do dia, para fazer a última venda. Estou impressionado.
Na verdade se eu fosse dono de alguma loja na cidade eu a contactaria secretamente para oferecer um salário maior. Se eu fosse um comerciante, eu desejaria ter aquela menina vendendo para mim, e não para um concorrente.
Disse o que disse sem mais intenção que a de agradar a garota, que ainda estava descabelada e um pouco suada por causa da corrida, mas naquele momento eu não tive ideia do bem que lhe fazia, pois o vendedor que estava ao seu lado no balcão era o próprio dono da loja. Que deve ter passado a valorizar bem mais a sua funcionária depois de hoje.
Enquanto voltava para casa fui fazendo reflexões semelhantes às que os gurus de autoajuda para vendedores costumam dizer que fazem. Tentar extrair do caso alguma “lição de moral” que valha a pena mencionar em uma mensagem corporativa de correio eletrônico. Ocorreram-me três ideias perfeitamente adequadas ao contexto, e eu me descobri palestrando mentalmente para vendedores desavisados.
A maioria das pessoas que eu conheço jamais se exporia ao ridículo de sair correndo pela rua atrás de um cliente. É como se trabalhar fosse algo não merecedor de nossas energias. Pessoas que “soltam a franga” com duas ou três doses de bebida morrem de vergonha de abordar um cliente, gente que joga lixo na rua se constrange de correr atrás de uma venda. Aquela vendedora, porém, sentiu que naquele momento, em que estava trabalhando, a coisa mais importante de sua vida era trabalhar bem. Para isso ela não precisava matar ninguém, apenas recuperar o prejuízo de uma venda não feita por causa de uma distração.
A maioria das pessoas que eu conheço jamais cometeria um ato que revelasse para todos os colegas, e o chefe, um erro cometido. Mesmo descobrindo a caixa de sandália 43 no fundo da prateleira, prefeririam fingir não a terem achado para que ninguém soubesse que um cliente saíra da loja sem comprar o que queria por distração de quem lhe deveria vender. Aquela vendedora, porém, achou que muito mais importante do que impedir os outros de saberem de seu erro era fazer o certo. Se o seu chefe pensa como eu, ele deve preferir trabalhar com quem corre atrás de consertar o que errou do que com quem aparentemente não erra, mas nunca é visto correndo atrás.
Por fim, a maioria das pessoas não teria dado tanta importância ao último cliente do dia, a menos que ele viesse comprar dúzias do item mais caro das prateleiras. Muitos vendedores pensariam que “se ele não comprou aqui, também não vai comprar na concorrência, porque todo mundo está fechando”. Talvez alguns pensem que o cliente pode voltar no dia seguinte, quando a loja abrir. Não sabem que há momentos em que no dia seguinte a compra pode ter deixado de ser necessária, ou o cliente pode ter achado outro lugar onde comprar.
Tenho a certeza absoluta de que a maioria das pessoas não é como aquela vendedora, mas gostaria de tê-la trabalhando para si.