E para quem achava que repetição de erros de organização era algo que só acontecia com o ENEM, “coisa do governo” e, portanto, incompetente, eis que, pelo segundo ano consecutivo, lá temos sob questionamento de novo o maior prêmio literário do país, o Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.
Para quem não se lembra, a polêmica do ano passado se deveu ao romance de autoria de Chico Buarque ter sido escolhido “livro do ano” mesmo sem ter sido vencedor em sua categoria. Trocando em miúdos: uma obra que não conseguiu ser o melhor romance do ano foi vista como o melhor livro. Faz sentido na lógica psicodélica dos concursos literários que, como se sabe, são um tipo delicado e culturalmente desejável de empulhação. Empulhação consentida pelas partes, embora algumas vezes certas pessoas fiquem amargas.
A polêmica deste ano se deveu às notas conferidas por um dos três jurados na categoria romance. O ainda anônimo “Jurado C” deu respectivas notas zero e um e meio a duas obras que haviam tido notas médias anteriores maiores do que as do livro que veio a ser o vencedor. Trocando em miúdos: prevendo que o seu favorito (a quem deu 10) perderia, o “Jurado C” deu notas ridículas aos principais concorrentes, para forçar a vitória de seu candidato.
Não existem justificativas para a crítica dar notas abaixo de cinco a um romance que chega às finais de um prêmio nacional de literatura. É preciso uma dose muito grande de paulocoelhice para um romance merecer zero. Tanto assim que nem mesmo os romances do mago chegam a merecê-la, no geral. É de se imaginar que obras publicadas por editoras sérias (aham), escolhidas por critérios literários sérios (aham), submetidas a processos competentes de revisão, se chegarem a integrar a lista dos dez favoritos, merecem pelo menos um cinco. Cinco é a mediocridade absoluta. E mediocridade é o mínimo que se espera de um autor publicado “no esquema”. Abaixo da mediocridade reina o desastre, a falta de continuidade, os solecismos, os desconhecimentos semânticos, a anfibologia, o plágio e toda uma gama de coisas que tornam a leitura do livro impossível a não ser pelos infelizes revisores que são obrigados a ler.
Portanto, as notas dadas pelo crítico são indefensáveis segundo qualquer parâmetro crítico que se queira adotar — e isso quer dizer que elas evidenciam a manipulação deliberada do resultado final. Que seria outro se outras tivessem sido as notas desse frustrado indivíduo que gargalha em sua cadeira, como um deus mitológico, depois de fulminar os pobres mortais.
As notas deste crítico, sozinhas, são um tapa na cara de todo escritor brasileiro. Elas revelam um estado de espírito que não pode ser isolado. Se este crítico fosse o único a se sentir um “deus das notas”, capacitado a definir resultados de prêmios que influem nas vidas de pessoas, a sua atitude teria encontrado mais repúdio, o processo teria sido cancelado. Outra análise seria feita. Tudo para não entregar a um jovem autor, estreante no romance, um prêmio que lhe pesará mais na estante do que uma bola de ferro acorrentada ao calcanhar. Para todo o sempre o escritor Oscar Nakasato será o autor que só ganhou o jabuti porque um crítico deu zero a Ana Maria Machado.
No lugar de Oscar, eu compareceria a cerimônia, sabendo que ela seria filmada, subiria ao palco, receberia o troféu, mas em seguida o recusaria, destinando-o publicamente ao Jurado C que, ao demonstrar tamanha vontade de influenciar no resultado, revelou-se único “dono” do troféu, a ponto de decidir conscientemente a quem dá-lo. Desta forma, recusar o troféu seria restituí-lo ao dono. Seria uma saída digna. Pessoas dignas costumam recusar honrarias imerecidas ou polêmicas. Escroques não, porque eles vivem para obter honrarias, merecidas ou não. Kissinger aceitou um Prêmio Nobel da Paz por ter assinado a paz da Guerra do Vietnã, uma paz que poderia ter saído quatro anos antes se ele não tivesse ajudado a sabotar as negociações para favorecer a vitória dos Republicanos em 1968. Para ganhar uma eleição, o futuro Nobel da Paz fez mais 250 mil pessoas morrerem. Humor negro no Vietnã é dizer que Kissinger ganhou o Nobel da Paz.
Se o romancista paranaense fizer isso, certamente será declarado persona non grata nos meios editoriais brasileiros para todo o sempre, e amém. Mas se aceitar o troféu, a vida inteira vai ter alguém para implicar consigo dizendo: “aquele troféu você só ganhou porque um jurado maluco deu zero para a Ana Maria Machado, cara”. Olhem o tamanho da injustiça que o júri do Jabuti impôs a esse cara. Ninguém merece ter que fazer uma escolha dessas: entre uma atitude digna que atrai catástrofes e uma atitude cautelosa que preserva uma polêmica (alguns dirão covarde, mas eu que sei o que pena um escritor não tenho coragem de usar esta palavra contra o Nakasato). Por isso eu vou entender se o cara aparecer com seu melhor terno, sentar onde “o moço” manda, esperar quieto a sua vez, aplaudindo a vez dos outros, subir no palco com desajeitamento natural ou simulado (pois novato tem que ser desajeitado), agradecer à família, à Deus, à pátria, ao público e levar o troféu para casa, caladinho. Nem todo mundo é maluco. Nem sei se eu seria. Mas que adorável seria o mundo se os malucos governassem.
Alguns dirão que o tempo passa, as polêmicas são esquecidas e o que importa são os títulos conquistados, e só os perdedores choram. É a lógica deprimente do sucesso a qualquer preço. A lógica de uma espécie de selva moral que nos empurra para o abismo e para o salve-se-quem-puder. Uma lógica que está na moda, mas a moda pode mudar as pessoas começarem a dar exemplos. Eu quero viver em um país onde as pessoas rejeitem vitórias obtidas de forma ilícita ou em decorrência de falhas do processo. Por isso eu preferia que o Chico Buarque tivesse recusado seu Jabuti no ano passado, considerando que ele, sendo quem é, precisa muito menos dele do que o Nakasato, que está começando agora. Mas Chico ficou com o prêmio, sem sequer um protesto, e se apequenou. Sorte dele é que os ídolos não precisam ser perfeitos.