O amigo leitor que se pergunta o porquê dessa postagem saiba que se trata de uma descoberta notável, que me salvou do ostracismo um dos melhores contos (quase uma noveleta) que eu jamais escrevi. Terminada a história, maravilhosamente ambientada nos “sertões do leste” de Minas Gerais, em um momento indefinido do Segundo Império (vários elementos na história indicam que se trata de um contexto pós-regencial), eis que me dei conta de um imperdoável e imenso anacronismo: o desfecho da história só fazia sentido mediante a atuação de uma força policial reconhecível como tal, do uniforme ao cavalo branco. Só que várias fontes consultadas me disseram que não havia tal força de segurança disponível naquela época e lugar. Fiquei muito chateado com essa descoberta, pus de lado a versão inicial da história, sem sequer fazer a revisão gramatical, e fui seguir com a vida. Hoje, porém, durante uma lida casual na Wikipédia, seguida de uma consulta ao Pai Google da Califórnia (que traz a informação desejada em 0,03 segundos), descobri que de fato havia.
A sensação que tive foi a melhor possível. Foi como descobrir que um velho amigo morto está de fato vivo. Agora posso concluir a história tendo a certeza de que o conto não ficará anacrônico. Ainda bem que não segui as dicas de um famoso blogueiro, que me sugeriu transformar a ação policial em algum tipo de evento sobrenatural (sei lá, com anjos ou demônios solucionando o conflito) ou realocar a história para o século XX. No primeiro caso eu teria criado um brutal deus ex machina (um dos cinco maiores defeitos que, em minha opinião, podem vitimar uma boa história) e no segundo caso teria que reescrever praticamente tudo – e muita coisa não faria sentido em outro momento de nossa história.
Conforme minhas fontes, citadas abaixo, havia uma polícia permanente na província de Minas Gerais, à parte as guardas municipais (subservientes aos políticos locais e, portanto, inúteis para os fins da história) e a Guarda Nacional (basicamente desmobilizada e inepta), apenas era uma força pouco numerosa e de ação limitada à capital e seus arredores (Batitucci, 2010). Tal força, porém, cujo efetivo sempre ficou em torno de 400 a 600 homens (entre praças e oficiais), serve perfeitamente para os fins da história que eu contei. Principalmente porque, em casos de necessidade, poderia incorporar oficiais do exército (Uruguai, 1865) e alistar voluntários temporários, os chamados “pedestres”.
Embora tal força nunca tenha estado estacionada em qualquer parte de Minas Gerais a mais de vinte ou trinta quilômetros do Palácio Provincial, então localizado em Ouro Preto, não é descabido imaginar que ela pudesse ser destacada para missões excepcionais, sob o comando de um pequeno grupo de oficiais do exército de linha e aumentada, se necessário, por alguns voluntários — mas nunca por membros das guardas municipais de outros municípios, que por lei nunca podiam ser mandados em missão fora da localidade em que residiam (Vellasco, 2005). Apenas não houve, durante o Segundo Império, nenhum fato que justificasse tal medida excepcional. Ora, como a minha história é uma obra de ficção, eu tenho toda permissão para imaginar um tal evento.
Ademais, existe uma outra possibilidade: a do deslocamento de um corpo de Voluntários da Pátria, rumo ao porto do Rio de Janeiro e à Guerra do Paraguai. Tal corpo de voluntários, sob o comando de um oficial do exército, poderia ser tentado a interferir em um caso tão extraordinário quanto o que ocorre em minha história.
No primeiro caso a força policial seria enviada para resolver uma grave violação da paz civil. No segundo, policiais militares de passagem seriam envolvidos nos eventos. A segunda hipótese é historicamente muito mais verossímil do que a primeira, mas eu ainda estou considerando a possibilidade de mitificar um pouco a história mineira e imaginar uma força policial provincial combatendo o mal nos rincões do estado.
Nos próximos dias estarei revisando o conto, para publicação aqui no blogue. Se você tiver alguma sugestão a fazer sobre qual opção seria melhor, ou se tiver mais dados sobre a história da segurança pública em Minas Gerais, por favor deixe um comentário.
Para terminar brindo meus leitores com um parágrafo da obra do Visconde do Uruguai, exibindo a ortographia etymológica e também uma série de características coloquiais do português brasileiro, hoje proibidas pela gramática (e tem gente que nega que os nossos gramáticos sejam reacionários).
Posto que o acto addicional não se referisse a um typo determinado, nem declarasse o que se devia entender por força policial, comtudo pela significação da palavra, e idéa do tempo, parece que os seus autores tinhão em mente, uma força cidadôa e paisana do que militar propriamente e por isso mais propria para a policia, como é a força policial Ingleza e Franceza que não é militar, e formada e estabelecida em cada Municipio, para auxiliar suas autoridades policiaes.
Em lugar dessa força civil, quasi paisana, tem muitas Assembléas provinciaes criado exercitozinhos, e Corpos policiaes nas Capitaes das provincias, apparatosos, com Estados maiores, musicas, reformas, e muito dispendiosos apezar de serem os Soldados mesquinhamente pagos.
Grande parte da força desses Corpos é conservada nas Capitaes, ás vezes para apparato e falta em muitos Municipios a indispensavel para a guarda das cadêas, prisão de criminosos, serviço que vem a recahir sobre a Guarda Nacional.
A força publica destinada a defender o Imperio de seus inimigos, a manter a segurança e ordem publica, a fazer executar as leis e as ordens das autoridades compõe-se entre nós: 1. Do Exercito ou tropa de linha 2. Dos Corpos policiaes da Côrte e provincias 3. Da Guarda nacional 4. De Corpos de Pedestres em alguns lugares
A tropa de linha é evidentemente impropria para a policia das localidades, e para a execução das ordens das autoridades civis no descobrimento, perseguição e prisão de criminosos. Demais todas as vezes que é muito fraccionada, perde a instrução, a disciplina e desmoralisa-se.
Pela sua composição, principalmente quando são recrutados, dá-se o mesmo inconveniente nos Corpos policiaes, que são hoje uma especie de tropa de linha.
Salvo raras excepções, por motivos cuja exposição seria mui longa, pouco serve a força de linha entre nós para manter a policia nas localidades e executar ordens das autoridades. A força policial pelo modo por que está composta e organisada é insufficiente.
Em muitos lugares a maior parte do serviço policial vem a recahir sobre a Guarda nacional, isto é, sobre aquella parte da Guarda nacional que pela sua pobreza e posição não encontra meios de esquivar-se a um serviço desigual, irregular e frequentemente arbitrario, muitas vezes extremamente vexatorio, e por isso feito de má vontade e mal.
É demais o serviço policial um terrivel instrumento eleitoral para constranger a população desvalida a votar no sentido que convém aos prepotentes do lugar, que ordinariamente são os chefes da Guarda nacional.
Não tive tempo para fazer o cálculo exacto, mas creio que se juntarmos á despeza annual que se faz com o Exercito, aquella que exigem o Corpo policial da Côrte e o das provincias, a Guarda nacional, etc. veremos subir a somma a a mais de 46 ou 47 mil contos. Veremos mais apparato que serviços reaes. É enorme a despeza e o vexame, e não temos nem Exercito, nem Guarda nacional e nem Policia que mereção esse nome. Temos apparato. Quanto á mim a organisação da força policial nas provincias é víciosa. Em lugar de centralisal-a toda nas Capitaes, conviria localisal-a.
Como se depreende dos parágrafos acima, muita coisa pode ter mudado nesse país, porém não a atração de nossos governantes pelo “apparato” em vez dos “serviços reaes”. Tampouco mudou a estrutura das polícias estaduais, esses “exercitozinhos”, como as chamou o Visconde do Uruguai. Moldadas a partir do Exército nacional, essas forças tinham mais papel cerimonial, para satisfazer o ego dos presidentes de províncias, do que efetivo. Podem ter ganhado mais poder com o tempo, mas continuam esse ser híbrido entre o exército e o serviço público de segurança. Militares a soldo do estado, mas teoricamente sob o comando do Exército nacional. Um verdadeiro monstro de Frankenstein.
O que o Visconde do Uruguai não diz, possivelmente porque não conseguiu ter esse discernimento, é que o estacionamento da forças policiais nas capitais, e a sua própria falta de efetivos, refletem os resultados da concentração de poder em torno dos “prepotentes dos lugares”. Os coronéis da Guarda Nacional, chefes políticos e militares de seus municípios, não desejam uma força policial que não esteja sob seu comando e, por isso, repelem as iniciativas de policiamento mesmo quando necessárias. Em 1847 a província de Minas Gerais tentou estacionar trinta praças no vale do Rio Mucuri, para garantir a segurança das embarcações que utilizavam esta importante hidrovia, por causa da ocorrência de roubos numerosos na região. Os coronéis locais, incomodados com a ingerência provincial, denunciaram a iniciativa ao Conselho de Estado do Império, que eventualmente a julgou inconstitucional (Uruguai, 1865:175).
Nesse ponto o leitor deve estar a se perguntar: como tal força poderia ser decisiva nos graves eventos que meu conto narra se ela não era tolerada pelos coronéis nem para prender piratas fluviais no vale do Rio Mucuri? A resposta é simples: ela seria tolerada se os próprios coronéis a pedissem. Esse é o contexto de minha história: um grupo de coronéis, incomodado com os eventos que formam o pano de fundo do conto, solicita ao presidente da província um destacamento de praças profissionais, para auxiliar seus próprios voluntários civis na tarefa de exterminar o mal. E pronto, eis que temos um belo oficial em seu cavalo branco, portando um uniforme com quepe e dragonas.
A única coisa que me falta é descobrir como seria o uniforme de tais soldados. O conto sai quando eu deslindar isso. Por enquanto, por tudo que li, imagino esses homens vestindo dólmãs azuis com golas pretas e punhos da mesma cor, dragonas douradas nos ombros, calças azuis de brim com risca preta acompanhando o lado externo, botas de cano alto, cintura envolvida por uma faixa verde e amarela e vermelha (cores do brasão imperial). Os soldados usam quepes simples, de bico reto. Os oficiais usam quepes altos com penachos. Quepes sempre azuis, com detalhes em preto ou dourado. O comandante, e talvez algum capitão ou tenente, usa uma faixa diagonal sobre o peito, portanto insígnias de comando.
O armamento seriam espingardas para os praças, fuzis para os oficiais. Todos teriam garruchas (pistolas antiquadas). Os praças teriam punhais de lâmina comprida (dois palmos ou mais) e os oficiais teriam espadas cerimoniais. Os voluntários da Guarda nacional seriam sem uniforme e seus oficiais também usariam azul, só que seus uniformes seriam mais elaborados: casacos azuis (não dólmãs) e calças brancas. Polainas em vez de botas. Quepes e dragonas mais elaborados. Imagino interessantíssimas interações entre essas duas forças tão antagônicas e de forças políticas tão díspares. Quem comandaria. Obviamente teria de ser um oficial do Exército, ou os oficiais da Guarda nacional não obedeceriam. Mas este oficial estaria a soldo da província (ganhando menos) e usando um uniforme menos vistoso e de menor prestígio. Acho que isso não vai acabar bem…
Referências
BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. “A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada”. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 4, número 7, Ago/Set 2010.
LINO, Cássia Renata Scherer. “O Império das Polícias: Federalismo e Estado Unitário no Império do Brasil – 1831-1850. S.l., S.d. SOUZA, Paulino José Soares de (Visconde do Uruguai). Estudos Práticos Sobre a Administração das Províncias no Brasil, Primeira Parte, Tomo II. Rio de Janeiro: Garnier, 1865.
VELLASCO, Ivan de Andrade. “A Polícia Imperial: Notas Sobre a Construção e a Ação da Força Policial (1831 –1850)”. In: XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina:2005.