Só hoje, passadas já algumas semanas de minha única viagem de turismo nas férias, é que consegui reunir tempo e inspiração para narrar a verdadeira Odisseia que vivi, só que levando minha Penélope junto. Foi uma viagem dessas que você faz do jeito que não se deve fazer, e houve tanta coisa inesperada que eu quase me surpreendi de ter conseguido voltar inteiro para casa, trazendo a família e o carro.
Começou na longa discussão sobre onde ir. Eu queria ir a Iriri, no Espírito Santo, praia que já conhecia, caminho por onde já estou mais ou menos habituado a passar. Só que minha mulher achou muito percorrer 378 quilômetros só para mergulhar o corpo em água salgada e insistiu que Rio das Ostras ficava mais perto. De fato, o Google Maps lhe deu razão: 236 quilômetros. Pela lógica de quem não está acostumado a viajar, 138 quilômetros a menos significam uma economia notável. Ela argumentou e eu acabei concordando. Liguei para uma pousada relativamente barata, localizada através da internet e, mesmo com a previsão do tempo desfavorável, nos pusemos na estrada. Assim dito, parece que foi rápido. Não foi. Ficamos até quarta feira esperando a previsão do tempo melhorar. Como não melhorava muito, resolvemos ir assim mesmo, para aproveitar o último fim de semana das férias.
Saímos de casa às sete da manhã, com a expectativa de uma viagem de quatro horas e meia. Nosso plano era almoçar em Rio das Ostras e ainda curtir praia, desde que não estivesse chovendo.
A primeira etapa da viagem foi tranquila. De Pequeri a Mar de Espanha o asfalto é bom, apesar da estrada cheia de curvas e morros. Atravessamos até a saída para Sapucaia e Chiador, já sabendo que teríamos um trecho de estrada de terra até cruzarmos a divisa do Rio de Janeiro. Havia dois erros nesse cálculo, a parte referente a “até cruzarmos a divisa” e a parte referente a “estrada”.
Logo depois de passarmos da encruzilhada de acesso ao caminho para Chiador, à medida em que nos aproximávamos do estado do Rio de Janeiro, a estrada foi se estreitando e ficando cada vez pior. Pedregosa por causa do muito saibro que vêm jogando há anos ou décadas, cheia de costelas e valetas, cada vez mais estreita, cheia de panelas e ressaltos. A maior parte do tempo tivemos que passar por ela a 20 ou 30 quilômetros por hora, em vez dos 50 ou 60 que eu esperava conseguir numa estrada de terra. Até passamos por lugares bonitos, e por lugares perigosos como as bordas da represa de Simplício, onde se chega à beira do abismo em vários lugares, sem proteção alguma; mas a estrada era sempre ruim, parecendo uma trilha de bodes, em certos lugares assustadora por causa do declive acentuado. Acentuado mesmo, pois do lado mineiro se chega a mil metros de altitude, e a divisa fica a poucas dezenas de metros acima do nível do mar. Fato é que quando eu cheguei a Sapucaia descendo daquela estrada escabrosa algumas pessoas olharam para o meu carro como se ele fosse um disco voador.
Depois de finalmente passarmos a divisa começamos a procurar pelo caminho. O fato de pouca gente em Sapucaia saber com certeza como ir a Sumidouro não me foi um bom augúrio. Tive de ficar quase meia hora parado por causa de obras na pista, logo ao sair da cidade, e mais à frente, depois de pagar meu primeiro pedágio na vida (sempre fui hábil em evitá-los), eu me vi perdido e sem saber como seguir para Sumidouro. Enfim, depois de idas e vindas, achei uma estrada que parecia decente, e que seguia no rumo de lá. A única coisa indecente é que a entrada não era sinalizada. Eu só a achei porque um trabalhador da obra me deu a indicação. Felizmente a entrada ficava depois do pedágio, ou minhas meninas teriam me ouvido xingar muito.
Depois de alguns tranquilos quilômetros de asfalto velho e ruim, viramos à esquerda, passamos uma ponte e deixamos de novo a civilização.
A muito custo chegamos à Rodovia Santos Dumont, onde tive o prazer de dirigir por cerca de 150 metros antes de pegar o caminho para Sumidouro, uma estrada estreita e lamacenta que mais parece um trilho de vacas. Em certo lugar eu percebi que a estrada parecia seguir paralela com uma outra estrada, separadas as duas por árvores. Então, mais à frente, uma encruzilhada indicando o caminho para uma fazenda qualquer e uma placa indicando que para Sumidouro era necessário fazer uma curva à esquerda em 180 graus e voltar cerca de quatro ou cinco quilômetros em paralelo ao caminho seguido até ali.
Aquela estrada é a RJ 154, e eu acho que os fluminenses só a batizaram assim para se vingarem dos mineiros que chamaram de MG 126 o horroroso atalho alpino entre Mar de Espanha e Sapucaia. É uma estrada surrealista, que mistura trechos de asfalto novo e ótimo com trechos de terra. O asfalto largo e farto, o trecho de terra estreito e enlameado. O asfalto sem nenhuma sinalização, o trecho de terra devidamente sinalizado. Em certo trecho havia no meio de uma curva uma mudança brusca de asfalto para terra, onde quase capotei com o carro. Em outro trecho, uma longa e larga reta asfaltada tinha uma ponte estreita no meio. Imagino o perigo que é dirigir nessa estrada à noite.
Quando chegamos a Sumidouro já era praticamente dez da manhã. As quatro horas previstas já tinham ido para a cucuia e eu queria que o mundo acabasse em asfalto para eu não ter mais que pisar em gota alguma de barro. Ah, eu tinha contado para vocês que estava chovendo fininho a maior parte do tempo?
Em Sumidouro tive ajuda de um carinha que ia para Nova Friburgo em uma Toyota velha. Ele me pediu para segui-lo até o trevo e foi assim que eu definitivamente deixei aquelas estradas cabulosas.
Na saída de Sumidouro passamos por dentro daquelas pedras montadas e não tiramos foto. Eu até pedi para a Daniele tirar, mas ela disse que estava sem câmera. Só bem mais à frente descobrimos que a câmera estava no porta-luvas.
A estrada de lá para Friburgo é bem razoável. Razoavelmente perigosa. Muitos desbarrancamentos e desmoronamentos reduziam a faixa única em vários trechos. Felizmente não tinha quase ninguém passando. Havia coisas bonitas também, como inflorescências de orquídeas na beira da estrada, e pitorescas cascatas que caíam dos morros e passavam, canalizadas, por baixo do asfalto.
Quando chegamos a Friburgo já era bem onze e meia da manhã e estávamos todos famintos. Paramos num posto de gasolina para esticar as pernas e comer. Comida boa e barata em um posto de gasolina onde o álcool estava a 2,45 o litro. Metros estrada abaixo havia álcool a 1,98 e minhas meninas finalmente ouviram o palavrão, pois eu tinha enchido o tanque.
Foi em Friburgo que eu comecei a acreditar que os fluminenses devem querer desforrar dos mineiros a fama de que nós dizemos que tudo é “logo ali”. Primeiro pedimos a informação no posto e nos disseram que para achar o caminho de Rio das Ostras era só ir seguindo as placas que apontassem “Rio de Janeiro” e, logo ao chegarmos a Mury, pegar a saída para Lumiar. Dito assim parece fácil, especialmente porque o carinha do posto não mencionou que para chegar a Mury teríamos que atravessar Nova Friburgo inteira. Para minha sorte, eu entrei em um lugar errado e, em vez de fazer essa travessia por uma larga avenida asfaltada, eu a fiz por ruas estreitas calçadas com paralelepípedos, subindo e descendo morros e favelas. E em toda esquina tinha um friburguense para nos dizer que era “logo ali”. Quando, finalmente, vi uma placa escrito “Mury” eu já estava duvidando que existisse um lugar com esse nome.
Em um complicado cruzamento, tomei um caminho que passava por uma ponte e virei à esquerda sem ver nenhuma saída para Lumiar. Parei então para pedir informação e me disseram “segue reto”. Por alguma razão minha mulher duvidou da informação e me pediu para perguntar num posto. Também mandaram seguir reto, só que na direção oposta. Voltando, ao passar pelo lugar onde pedíramos informação, verifiquei que havia uma placa ENORME indicando a saída de Mury e Lumiar. Ela estava bem às minhas costas quando eu pedi informação ao friburguense que estava lanchando dentro do carro.
Daí para a frente a viagem foi mais fácil. Não me perdi nenhuma vez, foi asfalto direto e ninguém estava com fome. Só cansaço. Atravessamos a reserva biológica de Macaé de Cima, entre Friburgo e Casimiro de Abreu, com uma chuva renitente que escondia toda a paisagem. Paisagem bonita, mas a estrada é um perigo, e quanto mais eu descia mais eu tinha medo de lembrar que teria que subir de volta.
Lumiar é um lugarejo adorável que parece uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, só que habitado por muitos descendentes de italianos e suíços. Outra parada para esticar as pernas e seguimos adiante, até pegarmos a estrada Serramar e começar a sentir cheirinho de maresia.
Chegamos a Rio das Ostras às três da tarde, depois de percorridos exatos 244 quilômetros. Considerando as vezes em que me perdi no caminho, desconfio que devo ter achado algum atalho em algum lugar, talvez até passando por alguma contramão. Estava chovendo forte e tivemos que passar o resto do dia dentro do quarto da pousada, sem praticamente nada para fazer.