Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

O Mundo Fantástico de H. P. Lovecraft!

Publicado em: 14/04/2013

Gostaria de ter blogado isto antes, mas a rotina corrida dos dias úteis me impediu. Nesta quinta feira chegou às minhas mãos o meu exemplar da antologia “O Mundo Fantástico de H. P. Lovecraft”, da qual participei traduzindo nada menos do que cinco obras do mestre americano do horror cósmico: “A Busca de Iranon” (The Quest of Iranon), “O Habitante das Trevas” (The Haunter of the Dark), “Um Sussurro na Escuridão” (The Whisperer in Darkness), “O Depoimento de Randolph Carter” (The Statement of Randolph Carter) e “O Inominável” (The Unnameable). Tudo graças à ousadia incansável do Denílson Ricci, que teimou nesse projeto durante quase três anos, e finalmente o trouxe à luz, através da Editora Clock Tower.

Capa de Mundo Fantastico

Embora obviamente o grande mérito desta edição seja do organizador, acho que bem mereço exaltar meu mérito pessoal nesta empreitada, traduzindo mais de cem das 456 páginas do livro (mais de 20% do total do texto). Foi um trabalho gigantesco, que durou bem mais de dois meses, incluída uma revisão básica que fiz antes de encaminhar as versões finais. Considerando a densidade do texto lovecraftiano, essa rapidez chega a ser temerária, mas eu não acho que minhas traduções tenham sofrido: eu certamente não teria conseguido esse ritmo se estivesse traduzindo poesia ou uma prosa literária mais elaborada, mas o texto do autor é bastante fácil de traduzir, a não ser pelas referências culturais (com as quais eu, felizmente, estava familiarizado) e pelo vocabulário. A rapidez, porém, só foi possível porque muito antes de sequer pensar a traduzir Lovecraft eu já havia lido toda a sua obra e havia lido sobre ele e sobre sua obra, chegando até a produzir, como ghost writer, uma tese de mestrado em literatura sobre o universo literário derivado dela. Então, a pesquisa que me possibilitou traduzir cem páginas em poucas semanas, dedicando poucas horas por semana, fora feita antes.

Sobre a edição em si, é preciso ressaltar que ela não pretende ser uma autoridade no assunto, mas uma espécie de introdução à vida e à obra do autor. Contém um estudo crítico breve, uma biografia, um artigo sobre o cenário no qual Lovecraft inscreveu sua ficção. Além disso, a antologia inclui alguns de seus contos mais famosos (O Inominável, A Busca de Iranon, O Habitante das Trevas, O Depoimento de Randolph Carter e A Cidade Sem Nome), pelo menos cinco novelas importantes (O Chamado de Cthulhu, A Cor Vinda do Espaço, O Horror de Dunwich, A Sombra em Innsmouth, Um Sussurro nas Trevas), dois ensaios (A História do Necronomicon, Notas Sobre Escrever Ficção Fantástica) e pelo menos um poema muito relevante (Os Fungos de Yuggoth). Outros textos de menor importância para o cânone lovecraftiano também estão presentes.

O objetivo desta seleção díspar de textos é servir para o primeiro contato do leitor não iniciado com a obra do mestre americano. Acredito que o livro vá servir muito bem a esse objetivo, muito embora a seleção tenha procurado mais a variedade (de épocas, estilos e assuntos) do que uma seleção pela qualidade. Trata-se mais de apresentar as diversas facetas do autor, do que trazer a lume o que ele escreveu de melhor. Por esta razão, acredito que seja essencial fazer um novo volume, incluindo algumas obras de qualidade inquestionável que acabaram de fora deste volume por limitações óbvias, como a quantidade de páginas (o livro já ficou imenso, com 456 páginas, seria loucura incluir mais obras) e o propósito acima descrito. Ressinto-me particularmente da falta de obras do mestre que sempre coloco entre as minhas favoritas: Nas Montanhas da Loucura (noveleta), Além da Muralha do Sono (conto), O Caso de Charles Dexter Ward (novela), Fatos a Respeito do Falecido Arthur Jermyn e sua Família (noveleta), Os Ratos nas Paredes (conto), A Coisa na Soleira (conto) e, principalmente, aquela que considero a sua maior obra prima, A Sonhada Busca Por Kadath. Denílson pode estar certo de que, caso deseje reiniciar todo o trabalho lá do começo e fazer um novo volume, poderá contar comigo desde o início para que surjam em português, em alguns casos pela primeira vez, estas obras de que tanto gosto.

Ainda não li as outras traduções para julgá-las, mas as minhas eu procurei fazer da forma mais natural e fluida possível, evitando carregar no preciosismo da linguagem, ainda que o autor tenha sido exatamente um preciosista. Julguei que não havia necessidade de buscar ostensivamente uma linguagem rebuscada porque, na maioria dos casos, a pomposidade do original se deve ao uso excessivo de “latinismos”, como na frase inicial dO Habitante das Trevas:

Cautious investigators will hesitate to challenge the common belief that Robert Blake was killed by lightning, or by some profound nervous shock derived from an electrical discharge.

Neste trecho convivem oito termos de origem latina, neolatina ou grega (sendo que o único grego, “electrical”, veio ao inglês por intermédio do latim). Todos estes termos possuem cognatos perfeitos em português: “cautious” é cuidadoso, “investigator” é investigador, “hesitate” é hesitar, “profound” é profundo, “nervous” é nervoso, “derive” é derivar, “eletric” é elétrico e “discharge” é descarga. Acreditei que seria pedantismo procurar deliberadamente palavras raras para turvar o texto apenas porque o original soa turvo ao leitor devido ao vocabulário erudito e deixei que a minha traduação soasse fluida, clara e natural.

Investigadores cautelosos hesitarão em questionar a crença comum segundo a qual Robert Blake foi morto por um raio, ou por algum choque nervoso profundo, derivado de uma descarga elétrica.

Outra característica das minhas traduções é a busca da literalidade, evitando ao máximo a paráfrase, exceto nas situações em que a literalidade produziria um calque desagradável.

Certamente os outros tradutores devem ter tomado medidas diferentes, de acordo com suas preferências, estilos e referências culturais. Esse é o lado maravilhoso de ter pessoas diferentes trabalhando em um projeto coletivo: você acaba conhecendo pessoas que trabalham e pensam diferente de você, o que lhe dá, no fim, uma avaliação melhor do valor de seu próprio trabalho.

Enfim, o que posso fazer é recomendar, e muito, este volume que representa um esforço notável para a divulgação do trabalho de Lovecraft no Brasil. Não só pela qualidade do trabalho que foi feito (a ficha técnica dos colaboradores, da tradução à revisão, passando pelos capistas e diagramadores, é maior do que a equipe de algumas editoras que já me ofereceram contratos), mas também pela apresentação gráfica de primeira (papel pólen, capa fosca etc.). Trata-se de um livro perfeito para dar de presente a alguém que você conhece e de quem gosta muito, desde que esta pessoa aprecie ficção fantástica.

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