Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Popularidade, Plágio e Advogados

Publicado em: 23/06/2013

Quando perdemos a noção de nossos direitos, pode às vezes parecer opressão quando querem nos entregar aquilo que devia ser nosso [sugestão de cena ilustrativa: um faquir se recusando a receber pagamento pela sua apresentação]. Às vezes nos acostumamos tanto a entregar de graça o que nos é tão caro, que chamamos de prostituição quando pensam em pagar-nos. Estas duas frases me vieram à mente a propósito de um [texto publicado hoje no “Bacia das Almas”]) pelo +Paulo Brabo.

O autor está perplexo porque recebeu uma resposta curta e grossa da Amazon a respeito de sua tentativa de publicar na Kindle Store um livro contendo artigos de seu blogue. O teor das observações feitas pelo Paulo mostra o quanto nós, escritores nos acostumamos com a falta de decência com que nossos leitores nos tratam, a ponto de considerarmos certo aquilo que é errado, e vice versa.

Se bem entendi a arenga, Paulo possui um blogue desde 2004, no qual publica seus textos, da mesma forma que eu, que estou na internet mais ou menos desde a mesma época. Somente agora, em 2013, nove anos depois, resolveu publicar na Kindle Store alguns dos textos do blogue. A Amazon os rejeitou. Segundo os termos e condições do serviço da Kindle Store, que podem ser consultados aqui, a Amazon publica o que quer, quando quer (traduzido por mim):

Reservamo-nos o direito de determinar que conteúdo aceitamos e distribuímos por meio do Programa segundo nossos próprios critérios. Se requisitarmos que nos forneça informações relacionadas aos seus livros digitais, tais como informações que confirmem que você tem todos os direitos necessários para permitir-nos a distribuição do livro digital, você nos providenciará imediatamente a informação requerida, e você reafirma e garante que toda e qualquer informação ou documentação que nos forneça em resposta a tal requerimento será atualizada, completa e exata. Você nos autoriza, diretamente ou por intermédio de terceiros, a fazer quaisquer investigações que consideremos apropriadas para verificar os seus direitos e permitir nossa distribuição dos livros digitais e a exatidão das informações ou documentação que nos forneça a respeito de tais direitos.

Curta e grossa, a cláusula do contrato não poderia ser mais clara. Considerando, também, o modelo de negócio da Amazon em relação ao Kindle, ela não poderia ser mais justa. Expliquemos: A Amazon se reserva o direito de não publicar o que não lhe interessar e autor não discutirá isso. Se ela desconfiar que o autor não está autorizado a ceder-lhe os direitos da obra, caberá ao autor provar que os detém e, no caso de a Amazon fazer alguma investigação sobre os direitos autorais da obra, o autor admite que ela tem esse direito. Estas cláusulas servem para evitar que gênios ofendidos por recusas processem a Amazon por “perdas e danos” referentes à não publicação de suas obras-primas imortais e destinadas a mudar o destino da literatura ocidental ou da própria humanidade. Mas servem também para permitir que a Kindle Store atue objetivamente como uma editora, ainda que em um nível menor de exigência: caso exista da parte da Amazon a mais remota dúvida de que o livro que tento publicar seja meu mesmo, ou que eu retenha os direitos sobre ele, não há nada que eu possa fazer contra uma decisão de não publicá-lo, mesmo que eu seja totalmente inocente. A Amazon se baseia no salutar princípio de que não basta que a mulher de César seja honesta, mas que pareça honesta.

Pois o Paulo recebeu da Amazon uma comunicação de que o seu livro estava livremente (“freely”) disponível na internet e que a Amazon não estava plenamente convencida de que ele detinha os direitos exclusivos de publicação. Notaram a ênfase que dei à citação feita pelo Paulo? Ele não prestou muita atenção a esta palavra.

Em vários momentos, os termos do serviço do Kindle mencionam a necessidade de direitos exclusivos. O autor não precisa ceder os direitos exclusivamente à Amazon, mas precisa provar que ele, autor, é o único que detém os direitos de distribuição de sua obra. E por que isso? Simples: porque se alguém piratear o meu Kindle ebook, eu só posso exigir sua remoção se eu for o único autorizado a licenciá-lo. Se eu, mesmo sendo autor de uma obra, a pus em domínio público, isto quer dizer que qualquer pessoa que detenha uma cópia pode distribuí-la e eu não posso reclamar. Pior: não se pode impedir que outras pessoas produzam cópias inferiores do mesmo conteúdo e a tentem vender através da Kindle Store. Se algo assim ocorresse, se criaria uma situação obscura, que poderia envolver a Amazon em um processo judicial por infração de direito autoral.

A Amazon também disse ao Paulo que esse tipo de material causa uma experiência desagradável ao leitor — e isso é verdade. Quando se trata de comprar uma obra, o leitor espera que somente versões autorizadas estejam disponíveis. Também acredito que não haja experiência mais desagradável do que desembolsar uma grana para comprar um e-book e depois descobrir que seu texto está disponível num site de downloads.

Você só pode ceder aquilo que controla. Ceder os direitos sobre algo que não controlo é como vender ar para que engarrafem. A Amazon não deseja comprar ar.

O que, então, aconteceu ao Paulo, segundo suas próprias palavras?

Na opinião da Amazon, não tenho como provar os direitos exclusivos de publicação do meu novo livro precisamente porque é tão fácil demonstrar que sou o autor: porque tratam-se de textos publicados originalmente no meu site e que foram desde então reproduzidos em outras páginas da web, em blogs e nas mídias sociais.

Pode parecer uma postagem do Capitão Óbvio, mas o autor se sentiu surpreendido pela constatação da Amazon. Obviamente a Amazon não desconfia que ele esteja plagiando alguém, ela desconfia que ele não detenha mais o controle dos direitos de copyright de sua obra. Para entender essa desconfiança é preciso dar uma lidinha em textos de Direito Autoral para entender que este, de fato, inclui dois direitos diferentes (por isso falamos em “direitoS autoraIS”):

Segundo a Convenção de Berna, à qual tanto Estados Unidos quanto Brasil são partes, o direito moral é inalienável (o que significa, em tese, que um ghost-writer pode exigir ser reconhecido como co-autor das obras que escreve, mesmo que as escreva mediante pagamento). Então, quando falamos em cessão de direitos, estamos falando, lógicamente, do copyright. A Amazon desconfia, dada a proliferação de cópias da obra do Paulo na internet e redes sociais, que ele não detenha mais o copyright de sua obra. Como isso poderia ter acontecido?

Ao contrário do que muita gente pensa, a presença da notícia de copyright associada à obra não é essencial para que o direito seja reconhecido. Se fosse assim seria complicado garantir o direito autoral sobre pinturas ou fotografias. Pelo contrário, na ausência de qualquer notícia de licenciamento, pressupõe-se  a licença mais restritiva, que é o controle total de copyright pelo autor. Assim reza a Convenção de Berna.

Mas nas redes sociais e nos blogues nós, autores,  na ânsia de difundirmos nossa obra, fazemos tolices praticamente o tempo todo. Basta um encaminhamento de e-mail no qual incluamos uma frase como “compartilhem aí” ou “para todo mundo ler” e zás! Acabamos de destinar nossa obra ao domínio público se alguém puder provar materialmente que nós realmente escrevemos isso (pode ser que no Brasil não seja assim, mas nos EUA, onde se localiza a Amazon, lá é).

Já ouviu falar em “dissonância cognitiva”? É um fenômeno psicológico que nos faz desconsiderar certas informações, normalmente sem que nos demos conta, de forma a acomodar a realidade à nossa preconcepção da realidade. Paulo é um caso de dissonância cognitiva muito fácil de demonstrar. Você lembra da palavra que eu destaquei lá em cima, na primeira citação? Se não lembra, volte e releia o começo desse artigo. Foi, voltou? Beleza, continuemos. Eis como o autor explica o funcionamento da Kindle Store:

Na KDP qualquer um pode publicar um livro eletrônico e receber os royalties pela venda: a única exigência é que você detenha os direitos de publicação eletrônica dos seus textos, de modo a cedê-los contratualmente para a Amazon. Querendo dizer: devem ser textos originais e você não pode ter cedido a ninguém os direitos de publicação (tendo já assinado um contrato com uma outra editora, por exemplo).

Na primeira citação o Paulo retira a palavra “exclusivos” que estava na resposta dada pela Amazon, e com isso torna absurda a recusa apresentada por ela. A simples ausência desta palavra muda totalmente o contexto. Claro que o Paulo tem direitos de publicação eletrônica de seus textos, disso a Amazon não duvida, o que ela quer saber é se ele é a única pessoa que detém tais direitos pois, na melhor das hipóteses, ela teria que entrar em acordo com todos os detentores de direitos sobre uma obra. Pois bem, a Amazon desconfia que, dada a proliferação de sua obra na Internet, o Paulo tenha, inadvertida ou propositalmente, concedido direitos de distribuição a terceiros. Como ela não tem (presentemente) nenhuma informação sobre se houve tal concessão e que direitos foram concedidos, é bastante razoável que ela sinta cheiro de confusão e ponha um pé atrás.

O segundo erro que o Paulo comete nesta citação acima é empregar uma definição limitada do que seja “publicação”. Ele entende como “cessão de direitos de publicação” a assinatura de um contrato com outra editora. Não é isso que diz a lei de direitos autorais, em seu artigo 5º, inciso I:

Publicação: o oferecimento de obra literária, artística ou científica ao conhecimento do público, com o consentimento do autor, ou de qualquer outro titular de direito do autor, por qualquer forma ou processo.

Ocorre que o próprio autor admite que:

Porém, sendo uma compilação dos meus textos mais populares, já haviam sido republicados (na maioria dos casos por pura simpatia) em uma *infinidade de lugares sobre os quais não tenho controle.

Esse é o vespeiro no qual a Amazon não quer enfiar o dedo. A republicação, mesmo que seja por “pura simpatia”, é uma “publicação” e uma autorização, mesmo que informal, é uma autorização, pois o autor, sendo o único detentor original dos direitos patrimoniais de sua obra, pode dispor deles como bem entender. Se o próprio autor admite que não tem mais o controle do direito de distribuição (copyright) de sua obra, como ele pode pretender cedê-la à Kindle Store para que seja vendida?

O corolário deste raciocínio,O corolário do segundo item é que a Amazon concluiu (e na minha opinião ela tem razão) que o Paulo pretende se utilizar gratuitamente da estrutura da Amazon para divulgar o livro de forma indevida. Sim, indevida, pois pretende ceder à Amazon direitos exclusivos sobre uma obra que já foi “roubartilhada” com o seu beneplácito e sobre a qual ninguém tem mais nenhum controle. Você está entregando ar para a Amazon engarrafar e vender. Não me admira que tenham sido rudes com você, você mereceu.

O ponto final desta argumentação nos traz de volta ao princípio, sobre a sensação de que a remuneração é uma forma de prostituição, esse pensamento que acomete a muitos de nós, jovens autores. Paulo considera uma “homenagem” e uma demonstração de “simpatia” que desconhecidos republiquem textos de seu blogue, mesmo sem nenhum controle. Palavras do próprio Paulo:

O motivo pelo qual meu conteúdo está disponível em outros sites que não o meu, poderia na verdade contar em meu favor: porque algumas pessoas, incrivelmente, curtem o que escrevo.

Aqui no Brasil as pessoas tendem a entender que republicando um texto nos seus próprios sites estão fornecendo ao autor o seu endosso pessoal; nos Estados Unidos, terra natal da Amazon, essa prática é universalmente tida e execrada como “stealing content”: roubo de conteúdo.

Ocorre que neste ponto, como em muitos outros, os americanos estão mais cobertos de razão do que um peixe, de escamas. Eu posso não admirar integralmente os valores da cultura americana e detestar a política externa de seus governos, mas jamais poderia descartar em bloco os princípios, práticas e valores que permitiram aos Estados Unidos se tornarem o que se tornaram. E neste ponto, eles têm razão.

Não existe nenhuma homenagem em pegar um texto de meu blogue e republicar no seu, você pode até pedir permissão e pode até obter, mas a republicação é, sim, roubo de conteúdo. Essa história de endosso pessoal é balela: trata-se de gente que não tem talento para produzir conteúdo próprio, ou não tem disciplina para tal, e que enche um blogue com texto retirado de outros blogues e que, com isso, ganha para si um relevo e uma remuneração às custas da obra alheia.

Blogueiro honesto não republica postagem alheia, ele comenta sobre ela e deixa um link. Assim, os seus seguidores, caso fiquem interessados, visitarão o blogue original, renderão AdSense ao autor e o recompensarão, mesmo que somente em hits, pelo seu trabalho.

Quando um blogueiro republica a postagem alheia, mesmo com autorização e mesmo deixando link, ele está roubando do autor original a visibilidade que ele deveria ter em seu próprio blogue. E como existem blogues e portais na blogosfera brasileira que se criam e se tornam famosos sem ter ninguém lá que escreva! Existem e atraem visitas vampirizando conteúdo alheio, muitas vezes sem deixar nem mesmo o link de crédito. E os mantenedores desses blogues, cheios de empáfia do alto das centenas de milhares de visitas que recebem, ainda respondem com malcriação quando um autor lhes aborda sobre o caso. Esperam que o autor considere um favor que lhe roubem sua luz.

O Paulo, seja por que motivos forem, internalizou esta submissão. Ele se considera homenageado quando o seu texto se torna conhecido mesmo que muitos leitores nunca cheguem a saber de onde o texto saiu. Ele se julga remunerado pela “simpatia” dos que republicam seu conteúdo, mesmo que os blogues copiões ganhem mais visibilidade e AdSense do que o seu. Talvez, agora, por causa disso que aconteceu, ele comece a questionar que tipo de homenagem é essa que lhe prestam quando o copiam, e que tipo de simpatia é essa que tira vantagem de seu trabalho. Você não permite (ou pelo menos não gosta) que um desconhecido no bar petisque uma batatinha de sua porção ou beba um pouco da sua cerveja, por que deveria permitir que desconhecidos compartilhem seus textos sem nem mesmo a educação de um pedido de licença? E por que considerar normal que outros blogues e sites se abasteçam de conteúdo copiado de blogues e sites menos conhecidos?

Por isso eu digo que eu não sou o Paulo. Eu não me sinto homenageado por isso. Se você quer me homenagear, faça postagens sobre minhas obras, seja falando bem ou descendo a lenha. Eu me sinto mais homenageado por isto do que por isto. Eu até permito que o meu conteúdo seja reproduzido, mas certamente prefiro que ele seja comentado e linkado.

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