Tenho uma relação de amor e de respeito com os meus personagens. Antes que você, leitor, me elogie por tal postura, devo confessar que isso é uma maldição nos dias de hoje. O público não quer, de fato, personagens respeitáveis, mas anti-heróis. Heróis não são mais críveis, ninguém mais leva a sério quem se move por um ideal. E por causa disso a relação de respeito que tenho por meus personagens, especialmente os que se parecem demais comigo, é um fator de descrédito da minha ficção.
Não acho correto construir um personagem dentro de determinadas premissas, negativas ou positivas, e depois revelá-lo tão diferente disso, monstruoso, vilanesco.
Não que eu seja do tipo maniqueísta, que acredita em heróis impolutos (os heróis clássicos estavam muito longe disso) e em vilões sem redenção. Trata-se de um sentimento de frustração por investir demais no lado bom de um personagem que mais tarde será mau.
Tenho conseguido, às vezes, romper com essa maldição. Criar personagens que realmente transitam do sublime ao nojento em poucas páginas, mas isso é somente porque a própria transição era necessária, porque a malícia do personagem era caso pensado desde a concepção da história.
O que estou tentando dizer não é apenas uma dificuldade para fazer meus personagens cometerem atos bons e maus ao longo da história — essa dificuldade não me afeta ou é fácil de contornar, estou falando da dificuldade de dedicar tempo a criar um personagem com que o leitor simpatize e depois revelar que ele é um monstro.
Este é o dilema que estou enfrentando agora, ao tentar concluir o meu romance fantástico “Serra da Estrela”. Dediquei quase doze páginas para construir Maria das Dores como um exemplo de mulher guerreira, uma líder de seu pequeno povo, alguém que conseguiu, na base da raça e da inteligência, extrair da cultura moderna o que ela tinha de necessário para melhorar a vida de sua comunidade, uma mulher bonita e dotada de uma sensualidade bruta e sedutora. Mas Maria das Dores estava originalmente destinada a ser a maior antagonista da história. Ela cometeria as maiores enormidades, causaria morte e destruição, por motivos egoístas, ameaçaria a própria sobrevivência de seu povo. A mesma Maria das Dores que se deixa seduzir tão singelamente pela minha protagonista, esta é a mesma que tem desejos de poder tão desmedidos que a levam a aliar-se com as mais hediondas forças.
Isto está me doendo. Gastei muita energia para torná-la uma personagem adorável, para imbuí-la de boas energias, e agora tenho que fazer com que ela se revele um monstro pior que os monstros que movem a história. Porque estes são coitados amaldiçoados, enquanto ela deliberadamente busca a monstruosidade, por uma espécie de inveja do poder brutal que a monstruosidade traz, ou pelo medo que inspira, ou apenas por impulso autodestrutivo — ainda não sei completamente, porque a história ainda está nos seus 55% por aí.
Ao mesmo tempo em que eu tenho medo de destruir minha pobre Maria das Dores, tenho a certeza que este tipo de personagem agrada mais aos leitores de hoje do que se ela fosse apenas uma pobre heroína frágil em um universo habitado por monstros, se ela usasse apenas a sua inteligência para sobreviver e vencer estes combates contra o bem e o mal. Seria clichê, ela seria uma espécie de Velma, do Scooby-Doo. Não é isso que o meu leitor quer, mas eu tenho pena dela, pobrezinha.