- O Chamado de Cthulhu (1927)
- Do Além (1925)
- O Horror de Dunwich (1926)
- O Navio Branco (1919)
- O Depoimento de Randolph Carter (1921)
- A Busca de Iranon (1921)
- Polaris (1918)
- Os Outros Deuses (1921)
- O Horror em Red Hook (1925)
- Fatos a Respeito do Falecido Arthur Jermyn e sua Família (1920)
- A Cor do Espaço (1927)
Tido como um autor menor da literatura americana, Howard Phillips Lovecraft, a exemplo de Edgar Allan Poe, goza de uma reputação muito melhor em outros países. Certamente isto se deve à capacidade de seus tradutores, que conseguem filtrar aquela que é justamente a má qualidade mais notada em sua prosa: a falta de fluidez, causada pelo vocabulário excessivamente precioso e pela tendência a períodos longos. Publico a seguir uma seleção dos doze melhores parágrafos da ficção lovecraftiana em minha modesta opinião, segundo minha tradução pessoal.
Ao ler estes parágrafos vocês perceberão a origem de vários “vícios” de meu próprio estilo de linguagem. Meus textos padecem de “defeitos” que aprendi com Lovecraft, Tolkien e ashton smith.
O Chamado de Cthulhu (1927)
Nunca ninguém expressou de uma forma tão assustadora a noção de que “a ignorância é uma bênção”.
Eu acho que a coisa mais misericordiosa do mundo é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos negros abismos do infinito, e não fomos feitos para viajarmos longe. As ciências, cada qual puxando em sua própria direção, até agora nos causaram pouco mal; mas um dia a montagem das peças do conhecimento desconexo abrirá tão terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
Do Além (1925)
Fizeram um filme de terror “B” baseado nesta premissa. O conto original é suficientemente absurdo e perturbador para merecer ser filmado com mais respeito. Mas talvez a linguagem rebuscada e a ação lenta demais atrapalhem a percepção de sua qualidade.
O que sabemos — ele disse — a respeito do mundo e do universo ao nosso redor? Nossos meios de recepção de impressões são absurdamente poucos, e as nossas noções dos objetos que nos cercam são infinitamente estreitas. Vemos as coisas da maneira como fomos construídos para vê-las e não podemos ter ideia de sua natureza absoluta. Com cinco frágeis sentidos fingimos compreender a ilimitada complexidade do cosmos, mas outros seres com sentidos mais amplos, mais fortes ou apenas diferentes poderiam ver tudo de uma forma muito diferente da que vemos, poderão ver e estudar mundos inteiros de matéria, energia e vida que estão perto mas não podem ser detectados pelos sentidos que temos. Sempre acreditei que tais mundos estranhos e inacessíveis existem perto de nossos cotovelos, e agora creio que encontrei um meio para quebrar as barreiras. Não estou brincando. Em vinte e quatro horas a máquina perto da mesa vai gerar ondas que atuarão em órgãos sensoriais que existem em nós atrofiados ou de que restam vestígios rudimentares. Tais ondas nos abrirão muitas visões desconhecidas ao homem e muitas desconhecidas para tudo aquilo que consideramos vida orgânica. Veremos o que faz os cães ganirem no escuro e os gatos eriçarem suas orelhas após a meia noite. Veremos tais coisas, e outras que nenhuma criatura que respira jamais viu. Ultrapassaremos o tempo, o espaço e as dimensões, e sem movimento corporal observaremos as profundezas da criação.
O Horror de Dunwich (1926)
Os primeiros cinco ou seis parágrafos desta noveleta inspiraram minha construção do cenário para o romance Serra da Estrela. A ideia de uma região sobrenatural, ligeiramente “escondida” do mundo real, apesar de existir ao lado dele, e da qual se pode entrar e sair em certas condições, isso me inspirou a escrever meu romance, embora meu cenário não seja necessariamente maligno, como o dele, e os meus personagens nada tenham a ver com as criaturas odiosas que habitam esta história.
Quando um viajante no centro-norte de Massachusetts toma o caminho errado na encruzilhada da estrada vicinal para Aylesbury, logo após Dean’s Corners, ele encontra um lugar curioso e desolado. O chão se eleva, e as paredes cobertas de sarças se estreitam mais e mais contra os sulcos da estrada poeirenta e sinuosa. As árvores dos frequentes cinturões de floresta parecem grandes demais e as ervas, os espinheiros e relvas adquirem um viço não muito encontrado em outras regiões habitadas. Ao mesmo tempo os campos cultivados parecem singularmente poucos e estéreis, enquanto as casas esparsamente distribuídas apresentam um aspecto surpreendentemente uniforme de idade, sordidez e decadência. Sem saber porque, hesitamos em pedir orientações às figuras solitárias e curvadas que vemos aqui e ali em alpendres meio desmoronados ou nos vales escarpados e salpicados de rochas. Tais figuras são tão silentes e furtivas que nos sentimos um pouco como se encontrássemos coisas proibidas, com as quais seria melhor não ter contato. Quando uma elevação da estrada traz à vista as montanhas além dos bosques profundos, o sentimento de estranho desconforto aumenta ainda mais. Os cimos são muito arredondados e simétricos para dar uma sensação de conforto e naturalidade e às vezes o céu delineia com especial clareza os curiosos círculos de altos pilares de rochas com que a maioria é coroada.
Os Gatos de Ulthar (1920)
Para você, que já matou um gato, começar a ter pesadelos noturnos. Sua sorte é que não vive em Ulthar…
Em Ulthar, que fica além do rio Skai, se diz que ninguém deve matar um gato, e nisto creio verdadeiramente enquanto contemplo este que se assenta ronronando diante do fogo. Pois o gato é críptico e mais próximo de coisas estranhas que o homem não pode ver. Ele é a alma do antigo Egito e portador das lendas de cidades há muito esquecidas de Meroé e Ofir. Ele é parente dos senhores das selvas e herdeiro dos segredos da lívida e sinistra África. A esfinge é sua prima e ele fala a sua língua, mas ele é mais antigo que a Esfinge e se lembra daquilo que ela já esqueceu.
O Navio Branco (1919)
Para você que às vezes tem vontade de largar tudo e sumir.
Era do Sul que o Navio Branco costumava vir quando a lua estava cheia e alta nos céus. Do Sul ele sempre deslizaria muito suavemente e em silêncio sobre o mar. Estivesse o mar encapelado ou calmo, fosse o vento amigável ou adverso, ele sempre deslizaria suavemente e em silêncio, com as velas enfunadas e suas longas fileiras de remos se movendo ritmadamente. Uma noite eu vi sobre o tombadilho um homem barbado e vestido de uma túnica, e ele pareceu me acenar que embarcasse rumo a costas belas e desconhecidas. Muitas vezes depois eu o vi sob a lua cheia, e nunca mais ele acenou para mim.
O Depoimento de Randolph Carter (1921)
Tido como um dos piores contos de Lovecraft, este é, de fato, um dos que melhor constroem uma atmosfera de horror sobre as lacunas, em vez das descrições. Nada é dito, mas o leitor sai do conto convencido de que o destino de Warren foi terrível.
Repito, cavalheiros, que seu interrogatório é infrutífero. Detenham-me aqui para sempre se quiserem, confinem-me ou executem-me se precisam ter uma vítima que propicie a ilusão do que chamam de justiça, mas eu não posso dizer mais do que já disse. Tudo que posso lembrar eu já lhes contei com perfeita honestidade. Nada foi distorcido ou ocultado, e se algo permanece vago é por causa da nuvem obscura que recaiu sobre a minha mente, tal nuvem e também a natureza nebulosa dos horrores que me sobrevieram.
A Busca de Iranon (1921)
Que a beleza deste parágrafo fale por si.
E no entardecer, quando as estrelas saíam e a lua deitava sobre o pântano um resplendor tal como o que uma criança vê tremulando no chão quando o berço é balançado à noite para ela dormir, caminhava em direção às mortíferas areias movediças um homem muito velho, vestido de uma roupa roxa rasgada, coroado com folhas de parreira e olhando para frente como se visse as cúpulas de uma linda cidade onde os sonhos são compreendidos. Naquela noite um pouco da juventude e da beleza morreu no mundo antigo.
Polaris (1918)
Exemplo acabado dos famosos longos períodos de Lovecraft, este parágrafo, em português e bem pontuado, não é tão intimidador quanto em inglês.
Enquanto me contorço na agonia de minha culpa, freneticamente tentando salvar a cidade cujo perigo cresce a cada instante e em vão tentando despertar deste sonho sobrenatural de uma casa de pedra e tijolo ao sul de um pântano sinistro e de um cemitério em uma colina, a estrela polar, maligna e monstruosa, contempla-me desde o abismo negro, piscando horrivelmente como um olho malsão que a tudo vê, enquanto eu tento passar uma estranha mensagem, mas não me lembro de nada a não ser que tive uma mensagem para passar.
Os Outros Deuses (1921)
Três parágrafos de grande poesia abrem este conto, que não é exatamente tão aterrorizante quanto se poderia esperar.
Sobre os mais altos picos da terra vivem os deuses do mundo, e não permitem que ninguém diga que já os viu. Eles já habitaram picos mais baixos, mas os homens das planícies escalavam as encostas de rocha e neve, expulsando os deuses para montanhas cada vez mais altas até que só restem agora umas poucas. Quando deixavam seus antigos picos, eles levavam consigo todos os sinais de sua presença, exceto uma vez, dizem, quando deixaram uma imagem de escultura na face de uma montanha chamada Ngranek.
Mas agora eles foram para a desconhecida Kadath, na vastidão gelada onde ninguém vai, e ficaram severos, pois não têm pico mais alto para onde fugir da vinda do homem. Ficaram severos, e se um dia eles aceitavam que o homem os desalojasse, agora eles proíbem que o homem venha, ou tendo vindo, que retorne. É sabido entre os homens que eles não sabem onde fica Kadath, na vastidão gelada, pois se soubessem eles buscariam loucamente escalá-la.
Às vezes os deuses do mundo têm saudades e visitam à noite os picos onde um dia viveram, e choram suavemente tentando se divertir nas escarpas conhecidas como nos velhos tempos. Os homens sentiram as lágrimas dos deuses no nevado Thurai, embora tenham pensado que era chuva, e ouviram os suspiros dos deuses nas brisas lamentosas de Lerion. Os deuses costumam viajar em navios de nuvens e os camponeses sábios têm lendas que os impedem de ir a certos altos picos à noite quando está nublado, pois os deuses já não são lenientes como antigamente.
O Horror em Red Hook (1925)
Neste conto encontramos este horrível parágrafo, que seria uma invocação feita por uma seita maligna. Poucas vezes em minha vida encontrei palavras que me causassem tanto medo. Apesar de não descreverem nada explicitamente, elas conjuram algo de uma tal malignidade que intimida até mesmo o mais duro dos descrentes.
Ó amigo e companheiro da noite, tu que te regozijas no ladrar dos cães e no sangue derramado, que perambulais por entre as sombras entre as tumbas, que desejais o sangue e trazeis terror aos mortais, Gorgo, Mormo, lua de mil faces, contemplai favoravelmente nossos sacrifícios.
Fatos a Respeito do Falecido Arthur Jermyn e sua Família (1920)
Apesar da opinião extrema expresssa neste conto — que é a epítome do medo que o homem branco protestante e anglo-saxão sente em relação à África — esta é uma de suas melhores obras, em minha opinião. E mesmo que não seja, a filosófica reflexão contida no seu primeiro parágrafo é suficiente para manter uma pessoa sensível pensando na vida por semanas a fio. Puro nihilismo racista misturado ao horror da teoria da evolução darwiniana sobre a mente de um supremacista branco, mas genial justamente por esse mergulho na loucura de um KKK diante da verdade científica.
A vida é uma coisa horrível, e do fundo do que sabemos a respeito nos contemplam demoníacas pistas da verdade que a torna, de vez em quando, mil vezes mais assustadora. A ciência, que já nos oprime com suas chocantes revelações, talvez venha a ser o exterminador final da nossa espécie humana — se é que somos uma espécie separada — pois sua reserva de horrores desconhecidos não poderia ser tolerada por cérebros mortais se divulgada pelo mundo. Se soubéssemos o que somos, faríamos o que Sir Arthur Jermyn fez, e Arthur Jermyn se ensopou de óleo e pôs fogo em suas roupas certa noite. Ninguém pôs os fragmentos carbonizados em uma urna ou ergueu um memorial a quem ele fora, pois certos papéis e um certo objeto encaixotado foram encontrados, que fizeram com que os homens quisessem esquecê-lo. Alguns que o conheceram nem mesmo admitem que Arthur Jermyn existiu.
A Cor do Espaço (1927)
Há lugares que, realmente, não fazem bem à imaginação.
O povo antigo foi embora e os estrangeiros não gostam de viver ali. Franco-canadenses tentaram, italianos tentaram e os poloneses vieram e partiram. Não é por causa de nada que se possa ver ou escutar, mas por causa de algo que se imagina. O lugar não faz bem à imaginação e não traz sonhos tranquilos às noites. Deve ser isso que mantém os estrangeiros longe, pois o velho Ammi Pierce nunca lhes contou nada do que se lembra dos dias estranhos. Ammi, cuja cabeça tem estado um tanto peculiar nos últimos anos, é o único que ainda resta, ou que ainda fala dos dias estranhos, e ele só ousa fazer isso porque a sua casa é a que fica mais perto dos campos abertos e das estradas mais percorridas em torno de Arkham.