Fechou-se o céu e eu me sentei para lembrar, ouvindo a água calma pipocando impulsos grossos no papel surdo que esqueci debaixo da goteira. Em algum lugar Jacinto se despede, insípido como consegue, e Fabiana está em casa retocando unhas e atormentando os pelos. Todos esperam que esteja um dia lindo quando o sol cantar nos galhos e as asas dos anjinhos ruflarem pela igreja, assustadas com o arrastar arrítimico do zelo apressado. Amanhã se casarão depois de dar-se as mãos por tanto tempo que a gente até se acostumou.
Foi com certa covardia que Jacinto me aceitou como padrinho, imposição somente dela. Sei que se ele soubesse me expulsava da igreja a socos e rasteiras, e ninguém na praça, conhecendo o caso, se compadeceria. Mas ela me queria, se não mais sobre uma cama, ao lado do altar, testemunhando, teso em um terno preto, sua participação no rito dele.
O que esta acontecendo com a pobre noiva? É por causa do mau tempo, que faz a saudade atacar os ossos assim? Espero que não chova, pelo menos não tanto que nos lembrei a noite de reis de seis anos atrás, quando atravessávamos a cidade sob um guarda chuva só e de repente o chuvisco se fez despejo e nos forçou a entrar num canto de muro, sob uma quina de telhado. Ali ficamos, na penumbra, com os pés imersos na enxurrada e os peitos quentes apertados juntos, contemplando os passos de gatos e cães, enquanto os carros arrastavam poças e erguiam ondas.
Ah, como me lembro de todos aqueles preconceitos, ideias de avó, antigos sentimentos. Nós dois ali tomando chuva, resfriando o peito, respirando junto, dividindo um guarda chuva, envoltos em um casaco único, com duas batidas em uníssono, e ninguém ouvia.
“Não podemos, não podemos.”
Mas no dia seguinte faltamos à aula diante de um convite nascido de um delírio febril: Vamos sarar juntos?
Busquei-a em casa e nos cuidamos sozinhos no apartamento. Fazendo canjas, compartilhando meias, tossindo na mesma pia, revezando no termômetro, e aproveitando o calor anormal da febre como afrodisíaco. De manhã ela se erguia da cama vestindo a minha camisa em vez da sua, e havia tanta sensualidade nisso, mais até do que no corpo dela nua!
Mas a gripe passou, nossos corpos normais já não se incendiavam com o toque. Eu já não estava dentro dela com a mesma intensidade, nem ela ao redor de mim. Mas quando ela finalmente foi embora eu lhe dei uma camisa branca e disse: “não posso guardar isso, seria como reter uma perna sua em meu roupeiro.”
Ela levou a camisa e ficamos bons amigos, pelo menos até o dia em que toquei a sua perna, dizendo que fora acidente. Ela estava fria, tão diferente. Deu-me um tapa cenográfico e apenas disse que não ficava bem. Eu morri naquele dia, saí com uma garrafa de martíni e amanheci deitado no tapete fofo diante da televisão, ouvindo notícias de crises e guerras, nenhuma mais cruel que a minha.
Fazia tempo, eu nem lembrava. Até que o convite veio. Até que tocou esse raio de telefone, ou será a campainha? Agora eu me lembro que nunca a esqueci, está chovendo a essa hora, ela não está casa pintando unhas, está no interfone, como uma assombração em uma casa, falando comigo, querendo subir até a varanda, ou até dentro de meu peito.
O que será que a chuva causou nela? Essa estranha chuva de hoje. E por que calhei de, por acaso, alugar esta casinha pequena que fica em um canto de rua, à sombra de um prédio grande?
Pobre Jacinto, não te conheço. Pobre de mim, que sucumbo pela segunda vez a essa febre, que desta vez me salva ou me mata, mas não posso permitir que simplesmente escorra como uma coriza e me deixe são e triste nesta quina incômoda da vida.