Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. — Camões.
Um dos temas recorrentes nas comunidades virtuais de escritores é a dicotomia entre talento e técnica, muito embora eu suspeite que tal controvérsia floresce mais naqueles que não exibem nenhuma das duas coisas.
Grosso modo, esta é uma polêmica entre pessoas que acreditam que o mais importante é possuir um tipo de predestinação para a arte e outras que estão certas de que se pode adestrar qualquer pessoa até o nível de genialidade literária, faltando apenas, no atual estágio de nosso conhecimento, a noção do que exatamente se deveria ensinar a tal pessoa e quando começar. É um debate estéril e normalmente estúpido, que se caracteriza por muita falta de compreensão de parte a parte, em que ambos os lados simplificam grosseiramente os pensamentos opostos até reduzi-los aos citados extremos.
Não pretendo concluir que qualquer das opiniões esteja mais certa que a outra, ou mesmo defender, mineiramente, que a verdade esteja em cima do muro. Não tenho informações suficientes para isto, e desconfio que o equívoco do debate vai além da impossibilidade presente de sua solução, estendendo-se à superfluidade da definição de uma verdade. O que pretendo definir é que, possivelmente, haja espaço para todo tipo de combinação dos citados fatores.
Comecemos pela “arte”.
Tem gente que acredita que a arte é um tipo de engenharia.
Pouca coisa é tão difícil de definir quanto o conceito de “arte”. Se no passado acadêmico havia ordeiros manuais que determinavam onde pôr e tirar cada elemento para se atingir uma composição harmoniosa, o modernismo mandou tudo isto às favas (não sem certo prejuízo, em minha modesta opinião), permitindo que se pintasse uma cópia da Mona Lisa com bigode ou se expusesse um mictório como escultura. Na literatura, a revolução do verso livre deu origem a muita obra grandiosa, mas principalmente encorajou gerações a escreverem porcarias grandes.
Querer encontrar uma definição abrangente do que seria “arte” e do que seria “bom” em termos literários é um trabalho de Sísifo. Melhor que cada um defina isto nos termos de suas preferências pessoais. Aquilo que eu creio ser arte e que eu creio ser bom tem tais e tais características.
No fundo, esta é uma solução frustrante, porque este relativismo permite que qualquer coisa seja arte se for chamada de arte por um número suficiente de pessoas. Isso explica a dificuldade de se diferenciar a arte da impostura, abre caminho para aventureiros ganharem dinheiro se fazendo de artistas e desorienta quem tem anseios realmente artísticos. Somos cegos num imenso tiroteio de possibilidades e quem está ganhando? Gente como Paulo Coelho, J. K. Rowling, John Green e E. L. James.
Quando alguém diz que as artes em geral, literatura incluída, estão passando por um período de grande decadência, eu tendo a concordar: mas a decadência não é pela falta de talento, mas pela falta de rumo. Existem infinitas estradas para se percorrer, todos somos livres para seguir qualquer delas, mas é impossível que todas levem a lugares que valham a pena.
Quem sofre com isso é quem tem “talento”. “‘Temperamento artístico’ é uma doença que aflige aos amadores” (G. K. Chesterton).
Mas o que é “talento”, para além de uma marca de ótimo chocolate? Há autores capazes de capturar uma vislumbre da eternidade nos três versos de um hai-kai, mas cuja obra medra na gaveta. Há outros que escrevem perfeitas porcarias, como o Raphael Draccon, mas que desfrutam do status de celebridades porque são talentosos para divulgar o que fazem, e a literatura que traficam competentemente ocupa espaços e lhes rende grana.
Ambos os tipos de talentos são respeitáveis. Eu, por exemplo, queria ter mais do tipo de talento que o Draccon tem. Aliás, eu queria ter mais talento, de uma forma geral.
Esta situação não é nova e a frase da epígrafe é inocente. Quem estuda a história da literatura mais a fundo sabe que na Rússia do século XIX o que fazia sucesso eram folhetins franceses que equivaliam em qualidade às séries românticas Sabrina, Júlia e Bianca que até há pouco tempo eram vendidas em nossas bancas. Autores do porte de Dostoiévski começaram escrevendo sob tal influência, em alguns casos erigindo como modelos e ídolos autores tão cultos e profundos quanto uma Barbara Cartland.
A falta de talento para organizar uma rede de relacionamentos, cativar apoiadores e conservar amizades poderosas sempre foi um problema para os artistas em geral. E não há nenhuma relação entre a falta deste talento e a abundância do outro: não é por ser um recluso, um misantropo ou um excêntrico que você será genial.
A única coisa que muda, nos dias de hoje, é que mesmo para aqueles que se propõem a ser a antítese da literatura comercial e rasa existe uma grande dificuldade para saber o que fazer. Cada encruzilhada na vida de um autor lhe oferece 99 caminhos para escolher e tudo é muito nebuloso. A única coisa clara é que dinheiro é bom, dinheiro é bola, dinheiro é a mola do mundo.
Mas o centro da polêmica é se o talento bastaria para produzir uma obra de qualidade. E aqui falamos do suposto e idealizado talento literário, o tipo de talento de Machado de Assis e Dostoiévski. Algumas pessoas acreditam que sim, porque enxergam o produto final destes autores, e não têm acesso aos cadernos de rascunhos deles — muitas vezes os próprios autores destruíram sua obra de juventude por vergonha dela. O trabalho do artista é sempre subestimado, muitas vezes pelo próprio artista, que gosta de se apresentar como um “escolhido”, um “iluminado”. É claro e evidente para quem tem acesso a edições críticas das clássicas que foram compostas em um processo doloroso, que envolveu trabalho. Pode ser que em alguns casos elas tenham sido escritas rapidamente, mas não é menor o trabalho só porque foi feito rápido. A rapidez não é dádiva de um anjo, mas fruto de um treinamento.
Mas qual parte é responsável pelo “sucesso” de uma obra: a inspiração original ou o trabalho envolvido?
Difícil dizer. Certamente não adianta tentar moldar e polir merda para fazer uma estátua. O talento do escultor não será apreciado, e possivelmente será muito lamentada a perda de seu tempo. Mas é ilusão achar que a escolha de um belo bloco de mármore assegura a qualidade de uma escultura, se o responsável não tiver capacidade de extraí-la do leito de rocha em que jaz.
É certo que ambas as coisas precisam coexistir, mas não num estreito e imaginário muro mineiro, mas sim que habitem um extenso e fluido estado-tampão entre o império do suor e o reino da inspiração.
Para alguns autores, ou para algumas ideias, só mesmo um trabalho absurdo resultará em uma obra aceitável, porque a ideia era essencialmente fraca.
Para outros, a ideia já saltará com pouco trabalho, mas, ainda assim, alguém sempre se perguntará quão grande o artista teria sido se fosse capaz de desenvolver melhor a sacada genial que encontrou.
A diferença entre os gênios e os medíocres é que os primeiros não suscitam tais considerações. Os críticos dos gênios só conseguem encontrar no despeito e na inveja os argumentos para denegrir as obras que jamais conseguiriam emular. Uma obra realmente genial passa a impressão de justa medida, mesmo quando termina no meio de uma frase, mesmo quando as partes parecem desproporcionadas. A monstruosidade é uma forma de simetria quando construída pelas mãos de um gênio.
E gênios, amigos, tais como deuses, só podem existir no passado. A genialidade é um troféu póstumo. Muito raramente esta medalha é posta no peito certo quando o coração ainda bate. Normalmente os louros vão para os impostores, para a gente que tem o talento extrínseco à arte e íntimo dos contatos, das trocas, dos conluios, dos balaios e das panelas.
Enquanto isso, nós, os amadores, ficamos discutindo secundariedades em vez de pormos nossas patas à obra. Com tanta gente passando fome de boas obras, ficamos desperdiçando nossos dedos com polêmicas parcas.
Uma parte da mediocridade de nossa era é que muito mais gente quer fazer literatura do que gostar de literatura. Muito mais gente quer entender de literatura do que viver literatura. Muito mais gente quer viver de literatura do que viver com literatura. Aliás, esta mediocridade não é nova, só nunca imperou tanto e nunca foi tão chamada de a coisa certa.