Enquanto fazia uma pesquisa sobre os “erros gramaticais de Machado de Assis”, deparei-me com uma afirmação importante de um filólogo conhecido, mas cujo link acabei perdendo: não é só a orthographia que mudou nos últimos séculos (no caso Brasileiro, aliás, quatro vezes), mas também a gramática e a análise sintática.
As obras da literatura luso-brasileira dos séculos XVI a meados do século XIX (anteriores a Herculano, Garrett e Castelo Branco) estão cheias de “desvios” em relação à gramática padrão. O que houve? Talvez em uma próxima encarnação eu consiga produzir uma tese completa sobre o assunto. Por ora, vão apenas as notas que tomei.
Houve o desenvolvimento da filologia como disciplina acadêmica e a invenção de uma enorme série de “regras gramaticais” antes inexistentes. Camões, por exemplo, usava indistintamente os pares “inda” e “ainda” tal como “onde” e “aonde”. Foram os gramáticos que inventaram que o “a” de “aonde” é uma preposição (mas não explicaram o que é o “a” de “ainda”. Foram os gramáticos que criaram o verbo “haver” impessoal, por analogia com o espanhol (e talvez por influência do falar brasileiro): os autores barrocos e neoclássicos diziam que “haviam casas” e “haviam muitos anos” (e até a época de Camões as pessoas ainda “haviam filhos” e as mulheres “haviam cabelos bonitos”). Machado de Assis, que os leu, cometeu os mesmos erros (porque não estudava gramática, mas lia).
A norma culta se desenvolveu a partir do falar lisboeta e de um ideal de “pureza” latinista durante o período neoclássico. Esta gramaticalização regularizante da língua efetivamente falada produziu duas heranças: a orthographia etymológica (que eu particularmente acho muito massa e até gostaria de usar) e a gramática normativa do português “padrão” (cuja imposição foi a causa de muita reação anti-lisboeta nas províncias de Portugal e de muita rejeiação à influência portuguesa no Brasil). A primeira foi abolida em Portugal em 1910 e no Brasil em 1946, mas a segunda ainda não foi posta de lado.
No âmbito do vocabulário a gramaticalização combateu a livre alternância dos ditongos “ou/oi”, de que ainda vemos ecos em palavras como louro/loiro, mas que já foi mais abrangente, admitindo noite/noute, foice/fouce, coito/couto, açoite/açoute, couro/coiro, ouro/oiro, pouco/poico etc. Combateu a livre alternância de “v” e “b” (originalmente duas consoantes que se revezavam como o “s” e o “z”) e que resultava em grafias como “bassoira” (vassoura), “baca”, “vesouro”, “brabo”, “assobio/assovio” etc. A diferença entre os dois fenômenos é que a alternância do ditongo era comum mesmo na fala culta, enquanto a alternância do “b” e do “v” era mais dialetal, sendo por isso tipificada como coisa de gente inculta.
O português que efetivamente se falava antes desta gramaticalização era diferente do português padrão de hoje. Era menos “correto” e tinha uma análise sintática mais rica que admitia frases como “esqueceu-me dizer-lhe que a amava” (Machado de Assis) com o sentido de “me esqueci de lhe dizer que a amava”.
Em resumo: quando vemos um autor antigo supostamente “errar” o uso da gramática, estamos vendo um autor que escrevia antes do triunfo da gramática normativa. Esta cresceu a partir das variantes predominantes, ao preço de fazer autores como o próprio Padre Vieira parecerem incultos.
Para resolver esse problema, entram em cena os “revisores”. E eu achando que a autora que modernizava Machado de Assis era um caso isolado… Na verdade a modernização já acontece: mais do que adaptar a orthographia e transformá-la em ortografia, os “revisores” também “adequam” a sintaxe dos antigos autores à gramática normativa de hoje. No caso da poesia, isso às vezes resulta em quebras do ritmo do verso, o que prejudica o entendimento da poesia pelas novas gerações, que não conseguem discernir a metrificação. Aí utilizam-se recursos como o “hiato” (a pausa forçada entre vogais para alongar os versos) ou a apócope (encurtamento de uma vogal para encurtar o verso) que muitas vezes não estavam no original.
Então, quando lemos a obra de um autor antigo já estamos lendo uma versão “desnatada” e “pasteurizada”. Se quisermos ler o texto como o autor o pretendeu, temos de buscar edições fac-similares.