Este poema narrativo, que depois virou conto, começou a ser escrito em 1995 ou 1996 e é um dos meus primeiros textos de ficção, embora, de fato, inspirado por uma cena real, devesse ser classificado de “crônica”.
De minha janela vejo, numa rua do morro em frente, uma moça que desce pela calçada. A distância não me permite conhecê-la, apenas vejo que não é nem muito magra e nem muito alta, que seus cabelos caem pelas costas e que é dessa cor mestiça indefinida e bela. Trajando uma blusa branca do tipo mais usado pelas moças comuns e uma blusa preta de mangas curtas decotada nas costas e – suponho – presa à frente por um lacinho de cordão.
Enquanto isso o ônibus vai subindo a rua maltratada, levantando poeira do chão. Seu ruído é amortecido pela distância. Uma mãe gorda, com cabelos negros em coque e usando uma enorme saia de brim, o espera no ponto, com – talvez – um recém-nascido nos braços, ou algo que está embrulhado em um tecido branco que pende do braço que o segura. Um cachorro sobe correndo o aclive, como que fugindo da ameaça mecânica que lhe vai atrás.
Perto do fim da rua, a copa farta de uma mangueira impede-me de ver aonde ela vai, a moça que ainda desce o morro em passo firme. Um pouco mais abaixo da mangueira, a rua se dobra num rigoroso cotovelo, mas a descida em linha reta continua por um desses escadões de concreto que há nos morros da cidade, substituindo a rua onde nenhum carro subiria. Ao lado direito da mangueira que interrompe o cenário há um botequim de morro, desses que moças não deviam frequentar. Mas ao lado dele está uma padaria, e em frente há um telefone público, males necessários no mundo em que vivermos. E é ali que deve estar a moça que eu vi há pouco descendo o morro, certamente ligando para o namorado ou aguardando que toque o telefone comunitário na hora combinada, esta forma suburbana de encontro amoroso.
O prédio cujo térreo é ocupado pela padaria e pelo botequim está em mau estado, decadente e descascado a ponto de eu percebê-lo desde aqui, e os andares de cima me parecem suspeitos. No que chamei de “padaria” na verdade deve haver o pão já murcho da primeira fornada matinal de seu fornecedor e ainda refrigerantes em garrafões de plástico, cigarros a varejo, doces embalados, balas baratas, biscoitos e baratas. No botequim, além de um pouco disso deve haver cachaça, salgadinhos rançosos, uma mesa de sinuca, mofo e um calendário de borracharia com a foto de alguma diva ocasional em trajes de Eva. E certamente sobrevive de sofisticações que talvez o escrúpulo do dono da padaria o impeça de aproveitar: contravenção e distribuição. Quem tem olhos para ler, leia.
Enquanto a primeira moça permanece oculta pela mangueira, fumando algum cigarro paraguaio enquanto aguarda o telefonema do distante amado, ou já dizendo-lhe emoções baratas extraídas de revistas ou das canções medonhas que se ouve no rádio, um bêbado maltrapilho de pernas sujas e unhas monstruosas sai do botequim – ou estarei fantasiando o que não posso ver?
Uma segunda moça, mais alta e de pernas magníficas, com ancas do tipo que chama a atenção do povo, vem descendo a mesma rua em passos deselegantes como se o comprido das pernas a incomodasse: os pés tocando o chão sem ritmo e desencontrando-se, os braços jogando a esmo para frente e para trás, com a cabeça quicando sobre o pescoço comprido, descontraída e desnecessária. Usa um short preto e blusa azul brilhante, larga e esvoaçante. Também vai ocultar-se atrás da mangueira que está na rua que se dobra ao meio em um cotovelo ríspido.
Dois meninos em uniforme de educação física sobem em zigue-zague, olhando para trás, gesticulando freneticamente e gritando de ouvir-se daqui. Descem duas meninas, também de shorts escandalosos debaixo das barras das imensas camisetas. Encontram os meninos e trocam gloriosas rápidas palavras que eu nunca saberei quais foram, olham em redor e gesticulam em direção à mangueira.
Um homem gordo, sem camisa, barrigão de fora, chinelos de dedo nos pés, está sendo na calçada em frente de sua casa afagando a cabeça de um cachorro grande de pêlo escuro e observando a cena com o desinteresse de quem está acostumado a ver isso todo dia, seja o que for… Um vira-latas se aproxima e é afugentado pelo cão enorme que estava recebendo o carinho do gordo. Perto do cotovelo em que se dobra a rua já se aglomeram pessoas variadas: homens descalços com roupas imundas, mulheres de barrigas molhadas de tanque e peitos esvaziados pela sucção febril de bocas famintas.
As duas moças estão ainda ocultas atrás da folhagem sólida da mangueira e uma janela se abre num dos suspeitos apartamentos que ocupam os andares superiores do prédio onde estão a padaria e o botequim. Um homem diferente desce a rua pisando a poeira amarela com cuidado elegante. Usa calças pretas de talhe largo que se amontoam sobre os sapatos e uma camisa de tecido bem passada, de cor também escura, talvez listrada ou xadrez. Vem se apressando nitidamente e algo reluz em sua mão direita. O vento vem, o tempo passa lento e o homem vai se escondendo atrás da copa da mangueira enorme que me oculta a visão.
Uma mulher negra, de avental à frente e lenço na cabeça, desce a escada sem prestar maior apreço à cena que eu não vejo. Crianças correm pela rua acima em um pique-pega sem descanso. Uma mulher loura falsa se debruça sobre o parapeito desgastado da janela do apartamento decadente que está defronte a cena.
A primeira moça desce a rua a correr sem modos, já não usa a mesma blusa preta de antes, mas uma camiseta comum. A chuva vem em gotas grossas e espaçadas que estalam nas telhas como granizo. A segunda moça permanece oculta e as pessoas que estavam em torno vão se espalhando. O homem de roupa escura desce atrás da primeira moça, talvez apenas fugindo do bando que o persegue agora. Minutos depois a rua é temporariamente ocupada por policiais que chegam numa viatura anunciada por sirenes desafinadas. A segunda moça sobe a rua cobrindo com as mãos o rosto enquanto um embrulho grande em tecido branco é posto dentro de um carro para ser levado. A chuva cai definitivamente, é noite agora, o silêncio está imposto.