A vaidade é um pecado, segundo o Eclesiastes, que reinou em Jerusalém. Pessoas contaminadas por ela cometem os maiores enganos sem perceberem que estão em equívoco, porque a vaidade produz a dissociação da realidade: o vaidoso perde a capacidade de realizar uma avaliação isenta do mundo. Talvez por isso queira se cercar de um séquito de admiradores. Não só porque a adulação reconforta, mas porque a vaidade se completa no elogio. O vaidoso faz é apenas um meio para ordenhar a simpatia desse séquito.
Não raro o nível de autorreferência do vaidoso é tão grande que ele passa a difundir sua visão peculiar da realidade como regra ou dogma, colocando-se numa posição de liderança mais por causa de sua personalidade do que pelo mérito de sua produtividade. Ocorre que a nossa cultura, saturada de ideologias de prosperidade, apresenta um terreno fértil para que se criem “celebridades” a partir de uma ilusão, de uma atitude aparente, em vez de uma essência, uma qualidade.
Se o séquito de admiradores for bastante grande e o vaidoso adquire poder, cria-se a situação da fábula da roupa nova do rei: ninguém aponta as falhas evidentes nas ideias e na obra do autor-personagem, pois todos estão comprometidos em uma só crença e catarse. O rei estar nu é algo que ofende à corte que o cerca. A nudez real não escandaliza a não ser quando percebida como tal. Antes disso, o pingolim real balança em vão porque todos creem que os que veem um pingolim são otários. Assim, quando a criança grita que o rei está pelado, este desnudamento atinge quem crera na existência da roupa para não se passar por tolo. E não há inimigo mais virulento do que aquele que criamos quando, por nossa culpa, alguém descobre que estava fazendo papel de idiota.
Há algum tempo eu atraí certa infâmia por ter comentado, de maneira ácida, as ideias literárias de Rafael Draccon, escritor que adquiriu certo poder no meio editorial brasileiro (minha invectiva, por isso, deve ter cimentado meu túmulo literário, mas não ligo para isso, porque nunca achei que fosse desejável galgar a fama agarrado ao saco alheio). Comentei, na época, a entrevista em que Draccon deu suas opiniões, mas confesso que o fiz no escuro porque, apesar da “fama” de que o autor desfrutava, para mim ele era um “famoso quem?” Nunca havia lido nada escrito por ele e nem interagira com ele nas redes sociais. Posteriormente, comecei a ter medo de estar a cometer uma injustiça, mas deixei quieto, porque não se revoga palavra dita, nem se repara caco quebrado. Mas tive, recentemente, a oportunidade de ler uma obra de Raphael Draccon. Com o livro em mãos, veio-me à cabeça, imediatamente, a ideia de reavaliar o que eu dissera, agora à luz de meu conhecimento de seu trabalho. Este texto é fruto disso.
Não é de se espantar que Draccon proponha encargos extraliterários aos aspirantes escritores com quem interage: seus maiores talentos são estes que ele propõe como essenciais aos novatos. É um autor que pode ter muita influência nas redes sociais e nas editoras, muito poder, talvez muito dinheiro, mas se abstrairmos estes fatores, todos eles acessórios em relação à literatura em si, o que sobra é um autor que não merecia ser publicado, pois o seu texto não possui nenhuma qualidade. Embora eu tema desintegrar o universo afirmando tal temeridade, tive a sensação de que Draccon escreve pior, e muito pior, do que Paulo Coelho. Apenas em seu favor resta a impressão de que que seu livro sofreu alguma revisão, diferente do Mago, que nos brinda normalmente com os seus rascunhos.
Dizer que o autor não tem qualquer mérito literário é exagerado, reconheço. Mesmo porque “qualidade” é tida como um conceito subjetivo. Pode ser, mas a subjetividade existe quando tentamos definir a literatura a partir do seu lado de cima. É como tentar definir quais árvores de uma floresta são mais bonitas. Quando descemos das copas e analisamos o chão, é bastante objetivo que um cogumelo não é uma “árvore bonita”. A ausência de mérito literário em Raphael Draccon não decorre de ele não atingir os píncaros, mas de ele não ultrapassar a redação escolar, a não ser na quantidade de palavras, que nunca foi régua para se medir coisa nenhuma, a não ser o custo de impressão.
Antes de explicar porque acredito que o texto dele não tem valor, acho importante dizer ao leitor porque me dou a este trabalho. Nesse exato momento devem existir no país e no mundo milhares ou milhões de pobres-diabos (como eu fui um dia) que se sentam para escrever algo sonhando serem descobertos, reconhecidos, pagos e admirados. Normalmente iniciantes escrevem atrozmente mal, e em sua maioria não melhorarão muito. Dizer que um jovem de quatorze anos escreveu uma “porcaria” não tem nenhum sentido. Espera-se que jovens de quatorze anos escrevam pura porcaria, interessante seria se algum conseguisse, tão cedo, uma obra relevante. Esses jovens de quatorze anos são apenas aprendizes, normalmente mal orientados (como eu fui), que ainda vão sofrer muita incompreensão e gastar dinheiro tentando comprar elogios. Nenhum destes jovens é “editor”, nenhum deles é incensado como “revelação” da literatura nacional, nenhum deles se propõe como “modelo” para outros jovens, nenhum deles tem um séquito de admiradores e nenhum deles tem o poder de articular reações positivas ou negativas a autores amigos ou desafetos.
Tudo isso é Raphael Draccon. Editor de um selo de fantasia, e portanto se supõe que reconheça a qualidade para poder selecionar e publicar. Jovem autor celebrado, tido e havido como modelo para muitos escritores novatos, uma personalidade influente na internet, cuja palavra é ouvida até mesmo em entrevistas a jornais mainstream. E Raphael Draccon parece gostar disso, tanto que se propõe a determinar um novo paradigma de autor, à sua imagem e semelhança (e com a bênção de Paulo Coelho, diga-se de passagem). Gosta disso a ponto de se deleitar em fazer ameças a quem o critique:
Fazemos uma varredura da vida online da pessoa. Se houver um post sequer dela falando mal de outro autor ou comprando briga na internet, ela é cortada na hora.
Portanto, Raphael Draccon não é uma pessoa qualquer, é alguém que conquistou o poder, que se propõe como modelo, que exerce o poder com gosto e ambiciona encontrar outros como ele mesmo e formar seu feudo (“panelinha”, como prefere o Paulo Coelho) dentro do mercado editorial nacional. Como ele não é uma pessoa qualquer, não é covardia eu gastar tinta metafórica para demonstrar que ele está nu.
O texto em questão é um PDF promocional de Dragões de Éter: Corações de Neve, disponibilizado pelo próprio autor em seu site. Observemos, então, que não se trata de um texto qualquer, mas de uma obra que o próprio Draccon escolheu divulgar como “degustação” (argh!) de seu trabalho, para convencer potenciais leitores de que vale a pena comprar seus livros. O autor não pode, de forma nenhuma, alegar que a seleção desta obra para comentário seja, de alguma maneira, tendenciosa. Comento aquilo que ele escolheu compartilhar como exemplo do que faz. De qualquer forma, é a obra mais conhecida e divulgada dele.
Quem é esse autor que, tendo conseguido poder através do cargo de editor de um selo literário, se propõe a “cortar na hora” de suas relações os autores que criem polêmicas ou critiquem outros autores? A censura é uma arma daqueles que temem as críticas. Raphael Draccon em bons motivos para temê-las: seu texto é uma composição escolar esticada em vários volumes.
É difícil começar a apontar onde estão as falhas do livro, porque estão praticamente em toda parte. Começam pelo título tosco e clichê, continuam pela diagramação do PDF feita no Microsoft Word, passam pela obsessão em colocar o nome do autor no rodapé de cada página e chegam a um texto que parece escrito para estudantes de quinta série primária (mas é vendido como “young adult”).
Raphael Draccon não escreve como escritor, mas como um jornalista semianalfabeto que tem paciência para digitar muito. Sua linguagem não tem cor, não tem sabor, não tem delícias e nem surpresas. ẂÉ um texto que flui quadrado o tempo todo, telegráfico, torto. Seu texto é um enfileiramento mecânica de vocábulos sempre empregados no sentido literal, a não ser quando o autor se distrai e incorpora uma metáfora que virou lugar-comum. Nele coexistem todos os motivos que tornam um texto chato e ruim.
Comecemos pelo didatismo. Raphael Draccon começa o livro explicando o que é o outono. Sério, está lá:
Ainda era outono naquela época. Essa palavra, outono, não simboliza apenas a época das colheitas; trata-se também de um termo que representa o período da vida em que uma pessoa se encaminha à velhice.
Esta frase inicial já é suficiente para alguém que já tinha lido outro livro na vida sentir algo estranho. Literatura não é assim. Isso é livro escolar. Na verdade até tenho a sensação de ter lido algo assim num livro didático qualquer.
Mas poderia ser um caso isolado. Não! Logo a seguir Raphael
Draccon se dedica a nos explicar o que significa “sede”: Era o
Reino-sede, a base, o Reino de Todos os Reinos.
O autor imagina que seus leitores não são letrados o suficiente
para saber que o “reino-sede” seria “a base” ou o “reino de todos
os reinos”. Mas eu posso estar implicando. Haverá outros exemplos?
Sim! O ar de professor ensinando fica mais claro um pouco adiante
no mesmo segundo parágrafo: E com base nessa informação, você
poderá melhor entender…
Esse tom permanece em todo o texto. O autor sobe num pedestal e de lá conta a sua história aos leitores, adotando uma atitude superior. Precisa explicar para os imbecis que o leem o que significa outono e que sentidos figurados a palavra pode ter, precisa reforçar neles o entendimento do conceito de “sede” e precisa dar-lhe um pito se não estiverem prestando atenção devidamente. O autor sequer imagina que seus leitores tenham assistido filmes ambientados na Idade Média e na Renascença, pois precisa explicar-lhes algo tão básico sobre etiqueta cortês que a impressão professoral só faz se acentuar:
E todos provavelmente já devem bem saber que, quando um Rei resolve se pôr a falar, qualquer pessoa, em qualquer local, e de qualquer posição social, se cala.
Ademais do didatismo, que poderia ser um defeito menor se a qualidade da obra em si não ficasse abaixo do orgulho quase pedante do autor, notamos uma linguagem, como já foi dito acima, telegráfica. Antigamente se chamava de telegráficos os textos que usavam o mínimo possível de letras, abreviando palavras quando necessário, porque na emissão do telegrama se pagava por caracteres transmitidos. Embora não seja econõmico com palavras, Draccon dá uma impressão telegráfica porque a narrativa é “seca”: ele não se dedica a descrever cenários ou personagens, vai enfileirando fatos e conceitos sem se dedicar a aprofundar nenhum deles, até que, por fim, percebemos que a narrativa avança aos solavancos, sem nos dar chance de sentir os personagens. A cena de coroação do rei Anísio é assim: um enfileiramento de nomes engraçados que misturam italiano, alemão, português e alguma língua inventada, que nada fazem a não ser contemplar, que pensam mas nada dizem, que ficam, mas não fazem, enquanto o rei repete palavras vazias, que são parte do ritual (e que, portanto, não acrescentam drama nenhum).
Esta impressão de telegrafia surge porque Draccon permanece sempre na superfície da narrativa e dos personagens. Tudo o que ele nos conta é explícito. Não há subtexto, não há sutileza, não há entrelinhas a interpretar. É um texto em que pau é pau e pedra é pedra. Tragédia maior não pode sobrevir a uma obra de FANTASIA do que castrar a imaginação do leitor com uma narrativa sem lacunas para fantasiar, matando assim a iniciativa deste. Até mesmo os pensamentos e motivações dos personagens são explícitos, pornográficos quase. Não há espaço para o leitor ter dúvidas se um personagem é vilão ou mocinho. O exemplo acabado disso está na menção a Victon Ferrabrás:
O Rei que baniu sua coroa, extinguiu a monarquia de Minotaurus e sagrou-se Imperador, dizem mais pela força que pela lei, observava Anísio com os olhos apertados, como se uma ventania de grãos de areia estivesse lhe cortando a face, e mantinha uma expressão atípica no semblante do rosto sem cabelos.
Em seu interior, apenas uma certeza: no futuro, ainda iria bater de frente com Anísio Branford.
Não há espaço aqui para o leitor sequer hesitar em formar uma imagem negativa deste personagem. Ele é declarado inimigo desde a primeira vez que o vemos. Não há como simpatizar com ele porque o autor, declaradamente, nos diz que devemos odiá-lo. Pode ser que futuramente Victon Ferrabrás seja revelado um herói, mas isso não muda a maneira desastrada com que Draccon o apresenta. Dizendo quem ele é, em vez de permitir que tomemos nossas conclusões. Aqui o grande autor da ficção fantástica nacional viola o princípio básico do “show, don’t tell” (demonstre, não diga):
“Show, don’t tell” é uma técnica empregada em vários tipos de textos para permitir que o leitor experimente a história através de ações, palavras, pensamentos, sentimentos e sensações, em vez da exposição, explicação, descrição ou sistematização pelo autor. O objetivo é não afogar o leitor em adjetivos pesados, mas permitir que ele mesmo interprete detalhes significantes do texto. — Adaptado da Wikipedia
O princípio do “Show, Don’t Tell” é recomendado por pessoas que Raphael Draccon não poderia desqualificar: Ernest Hemingway, Orson Scott Card, Chuck Palahniuk. Se é verdade que, como toda técnica, esta não deve ser abusada, também é verdade que a apresentação do personagem Ferrabrás é um exemplo clássico de lugar onde ela deveria ser empregada para obter o efeito de suspense.
Isto porque não é, tampouco, um caso isolado. O narrador de
Dragões de Éter é tão onisciente que ele nos irrita. Não contente
em saber de antemão tudo o que vai acontecer e de nos lembrar o
tempo todo que ele já sabe e nós não (Afinal, para isso, você
até estaria preparado. Mas não para o que viria logo em
seguida
), o narrador faz questão de desnudar os pensamentos dos
personagens o tempo todo, bloqueando qualquer tentativa nossa de
interpretá-los o simpatizar com eles.
Outro fator que incomoda é que o autor, ao mesmo tempo em que
tenta incorporar à sua narrativa o maior número possível de seres
mitológicos que estejam em domínio público, nem sempre tem
suficiente conhecimento destes personagens para empregar
corretamente sua referência, chegando a cometer erros de
ortografia em seus nomes, como ao se referir ao Reino
sombrio comandado pelo soturno mago-linche Oscar
Zoroaster
(em vez de lich ou liche).
O mesmo autor que nos introduz em uma só história tudo e mais a pia da cozinha em termos de criaturas mágicas e temas de ficção fantástica, até o livro ficar parecendo escrito com um baralho de Magic: The Gathering, parece ter uma dificuldade para empregar o vocabulário adequado ao cenário medieval-fantástico que concebeu. Assim, o rei Anísio recebe um “bastão de ouro” ao ser coroado, não um “cetro”, e sua coroação não é anunciada por arautos e nem por clarins, mas por “corneteiros”. Pela falta de vocabulário específico, o autor, que está tão preocupado em dizer o tempo todo o que os personagens pensam, deixa de nos informar visualmente sobre os fatos que acontecem, pois em vez de nos dizer que gesto é usado para saudar o rei coroado, só sabemos que se trata, vagamente, de uma “reverência”.
Este não é o único trecho em que a semântica portuguesa parece
alheia ao autor. Em vários trechos ele emprega palavras que não
combinam com as ações e sentimentos que pretende descrever, o que
cria imagens engraçadas, como: Anísio esperava ainda que seu pai
vivesse muito mais anos do que as folhas de um carvalho.
Estranha forma de desejar longevidade a alguém, posto que a maioria
das espécies de carvalho são caducifólias (perdem as folhas no
outono) e mesmo as que têm folhas perenes não servem de bom
exemplo, porque a perenidade é do conjunto das folhas, não das
folhas individualmente. Quão mais fácil não teria sido dizer, com
simplicidade e elegância, que Anísio esperava que seu pai vivesse
mais que um carvalho. Só que dizer as coisas de forma simples e
elegante não é a praia do Draccon, e isso é evidente em cada
linha.
Ao mesmo tempo em que simplifica ideias e contextos para não forçar a mente débil de seus leitores (é assim que ele os trata, a julgar pela maneira como escreve), Raphael Draccon parece ser incapaz de concisão. Não falo aqui da concisão exagerada e estilosa que alguns autores gostam de praticar. Falo da concisão de se empregar uma quantidade razoável de palavras para dizer o que se quer dizer. Enquanto economiza adjetivos que dariam brilho ao texto e descrições que seriam úteis para situar o leitor, Draccon comete períodos tão verbosos quanto vazios. Tenho a certeza de que as 19 páginas do arquivo-amostra poderiam ser reduzidas a menos de 15 com uma simples revisão que eliminasse a verbosidade desnecessária do autor. Ao final deste artigo incluo uma tal revisão, que reduz o texto das duas primeiras páginas em mais de 30% sem prejudicar o entendimento.
A falta de familiaridade com o vocabulário é causa de sua
verbosidade. Inseguro com as palavras, o autor sente necessidade de
reforçá-las, faz questão de determinar que sabe exatamente o que
está dizendo, porque não sabe muito bem. Vemos isso quando ele diz
que o falecido rei fora lançado ao trono nas graças do povo
(aqui eu imaginei populares sorridentes segurando-o pelos braços e
pernas e atirando-o sobre um imenso trono acolchoado e cheio de
travesseiros.
Esta falta de conhecimento mínimo sobre o que está falando leva
Draccon a cometer inanidades em praticamente todo o parágrafo, tais
como acordes sincronizados
(se são acordes, é porque estão
sincronizados), não darei ênfase ao fraquejo
(parece que o
autor desconhece o verbo “fraquejar”), ou o impagável trecho em que
compara a fala do novo rei era como se uma orquestra invisível e
inaudita rufasse seus instrumentos intangíveis
, ou seja, uma
orquestra invisível, nunca ouvida, “rufando” todos os instrumentos
(em vez de só os tambores), que, aliás, não podem ser rufados
porque são “intangíveis”.
A sensação de que o autor está forçando a barra acima do que
consegue alcançar fica evidente quando faz o rei pronunciar um
estranho voto, para um rei que parece ser o grande herói, ou pelo
menos é apresentado como tal: E, por fim, juro que separarei o
justo do injusto quando isto for inevitável.
O rei-herói de Raphael Draccon promete que somente diferenciará o justo do injusto quando isto for estritamente necessário e for a isso obrigado. Não sendo assim, justos e injustos que se ajustem. Este é um dos muitos trechos do livro que evidenciam a falta do trabalho de um bom leitor-beta ou de um bom revisor (ou, se houve tais processos, da falta de humildade por parte do autor em acatar sua sugestões). Um leitor-beta teria percebido que o rei, no contexto da história, deveria justamente prometer justiça quando necessária e não omissão enquanto possível.
A minha impressão inicial de que Draccon escreve muito pior do que Paulo Coelho é fácil de explicar. Embora o mago seja tão incompetente no uso da língua quanto o “novo talento” da literatura fantástica nacional (pobre dela!), pelo menos ele se inspira em fontes de melhor qualidade. Não há como produzir algo totalmente ruim quando você está plagiando As Mil e Uma Noites, A Demanda do Santo Graal, a obra de Khalil Gibran e outros elementos do imaginário fantástico orientalizante ou arabizante. Mas Raphael Draccon parece inspirado em manuais de RPG, autores americanos de baixa ficção e roteiros de videogames. Não tem como sua obra ser melhor do que é.
Tendo dito tudo que disse até aqui, é quase supérfluo mencionar o tipo de linguagem empregado pelo autor, que é tido como modelo pelos jovens (ai deles!), mas não seria completa a minha apreciação de seu trabalho sem comentar também isso, ainda mais porque o prometi lá no começo.
A linguagem de Raphael Draccon, como dito, é a de uma composição escolar nível sexta série, só que muito estendida — e não necessariamente a composição do melhor aluno da turma. Além dos problemas literários já apontados, existem outros que se referem aos níveis básicos de manipulação do idioma, erros que evidenciam falta de comando do código linguístico que o autor se pretende a utilizar.
No primeiro parágrafo já vemos um continente onde um Rei […]
iria se consagrar
. Não é que Raphael Draccon desconheça o
futuro do pretérito, ele o emprega em outros lugares, mas ele
desconhece como variar o uso de suas formas sintética e composta
para obter o melhor efeito literário. Neste trecho, em particular,
a forma sintética soaria melhor, onde um rei se consagraria
,
mas muito melhor ainda soaria a voz passiva, onde um rei seria
consagrado
.
Draccon também evidencia dificuldades com os pronomes oblíquos,
especialmente em seu uso reflexivo, comentendo uma batatada como
Sobrenome nascido plebeu, se sagrado nobre, e
iluminado pelo semidivino
. Quero crer que tenha sido falha do
revisor, porque essa construção equivale a tascar “eu se chamo” no
meio texto.
Por fim, para cumprir minha promessa, e tento reduzir as duas primeiras páginas do PDF em 30% do total de caracteres, sem retirar uma vírgula da informação necessária ao entendimento da história:
Era outono, símbolo também do ocaso da vida. E Ocaso era o continente onde se consagraria um jovem rei em um outono.
Em Nova Ether não havia reino mais importante que Arzallum, cujos monarcas influíam internamente em todos os outros. Por isso, naquela tarde de outono, todos os povos do continente Ocaso oravam a seus deuses e semideuses que iluminassem o príncipe Branford, que seria coroado.
Branford, um sobrenome plebeu enobrecido e divinizado. O patriarca se chamara Primo e se tornara uma lenda: o caçador de bruxas, salvador das fadas. Entronizado pelo povo, jazia em seu túmulo, ao lado da rainha-fada Terra. Cometera muitos erros, por ser humano, mas cometera muito mais acertos, por ser herói.
Anísio Branford, preferido da nobreza, seria coroado rei. Seu irmão mais novo, Axel, era querido da plebe, mas ainda era uma criança. Somente Primo fora amado pelo povo e pelos nobres. Desde cedo Aníso fora treinado a manejar a lança, a espada e o escudo, aprendera a montar e a falar, a portar-se na mesa e a liderar. Aprendera história, geografia e matemática. Axel também aprendera muito, mas como não seria rei, o fardo de Anísio sempre fora maior.
Ao se olhar no espelho e ajeitar a capa, o príncipe Anísio teve medo de não estar preparado, apesar do árduo treinamento e da bela capa vermelha. Qualquer súdito diria que estava, mas ele mesmo preferia que seu pai tivesse vivido mais que um carvalho.
Se pelo menos sua mãe estivesse viva! Mas até as fadas podem morrer.
Minha versão do texto ficou com 253 palavras, contra 615 do original. Uma absurda redução de 59% do tamanho do texto, sem que nenhuma informação essencial fosse retirada. O que nos faz sentir muita pena das árvores que poderiam ter sido salvas, das horas de leitura que foram desperdiçadas.