“Ó amiga e companheira da noite, ó tu que te regozijas no ladrar dos cães e no sangue derramado, que perambulas por entre as sombras entre as tumbas e trazes terror aos mortais! Gorgo! Mormo! Lua de mil faces, contempla favoravelmente os nossos sacrifícios”
― H. P. Lovecraft (em “O Horror em Red Hook”)
A porta se fechou e Beatrix suspirou o temporário alívio da primeira noite. Mas não se recostou para dormir, sabia-o impossível. Como recostar a cabeça em um travesseiro antecipando que o segundo dia não seria mais apenas a exibição de instrumentos e seus efeitos? Preferiu aproximar-se da janela estreita da torre e contemplar o prado anoitecido, salpicado de fogueiras isoladas e luzes de aldeias. Assim sonhava com algum cavaleiro que chegasse de Vyones com novidades que poderiam inocentá-la da horrível acusação que os padres lhe imputavam.
A acusação. Lembrou-se outra vez das palavras enojadas do abade Pierre de la Fournaise diante do Inquisidor Mór. Cada sílaba proferida pelo ascético monge se gravara a ferro quente em uma lembrança.
“Poucas vezes o Santo Ofício se viu diante de um ato tão deplorável, tão merecedor da plena extensão das penalidades seculares” ― dissera ele.
Eram palavras que asseveravam mais do que uma condenação. A sentença de morte era sempre o mínimo que se esperava nas acusações de alta bruxaria. Mas a invectiva do abade sinalizava que a Santa Madrasta Igreja não se satisfaria somente com o sangue, pelo menos não queria que fosse precoce o seu derramamento.
Se pelo menos não estivesse dentro de uma cela tão hermética, se conseguisse acesso aos seus livros, poderia conceber alguma espécie de armadilha para confundir os fanáticos e assim escapar.
Estava a ponto de começar a chorar quando o vento frio pareceu trazer um murmúrio suave, que vinha das profundezas de sua infância já esquecida. Cobriu a cabeça grisalha com o xale de lã, mas não evitou tremer. O outono começava a decair para o inverno e, se tivesse sorte, poderia gear na madrugada e o frio a pouparia de amanhecer para as operações previstas no segundo dia.
Então ouviu um rascar de metal contra pedra vindo de fora e teve um sobressalto. Aproximou-se novamente da janela e confirmou a impressão inicial. Mas as paredes do castelo eram grossas demais para que pudesse alcançar o exterior e ver quem subia. Minutos depois um vulto apareceu fora, ainda oculto pela sombra das nuvens que abraçavam a lua. O vulto retirou do bolso alguma coisa que luzia levemente e despejou algo líquido nas grades. Um chiado intenso e um cheiro acre penetraram a cela. Por fim as mãos do vulto empurraram as grades para dentro e Beatrix as puxou com força e cuidado, começando a ter o alívio da salvação. Não teria, afinal, que se sentar na Cadeira de Judas, nem enfrentar o Funil, não seria girada na Roda e não teria os mamilos torcidos por torqueses em brasa.
Mas, ó! Seu corpo um tanto roliço de matrona dificilmente passaria pela janela estreita. Mas esse aperto era menor problema do que ter os dentes quebrados e as unhas arrancadas.
― Venha, Beatrix. Temos pouco tempo antes das nuvens se dissiparem. Só posso recorrer a mais um sortilégio nessa noite.
Reconheceu a voz. Jeannelynne aprendera muito desde que chegara à sua casa uma pobre órfã piolhenta de cabelo tosado sem capricho e roupas de menino. Talvez ainda não soubesse tanto de fórmulas e encantos ― posto que encantadora nunca realmente fora ― mas possuía uma esperteza que Beatrix, já além da juventude, ou esquecera ou não tivera.
Sabia o que fazer. Despiu-se completamente, pôs a roupa à frente e entrou pela passagem estreita, usando o próprio suor e as secreções acumuladas na pele como lubrificante para facilitar sua saída. Teve também a ajuda das mãos fortes e calosas de Jeannelynne, que a puxaram com um vigor quase másculo até que finalmente apontou na parte externa do muro. Ainda faltava desprender a cintura quando a lua começou a despedaçar as nuvens negras de tempestade.
― A lua sai. Ai de nós! Seremos vistas!
― Não seremos se eu ainda conseguir pronunciar um sortilégio, querida. Não me limito mais ao aprendido consigo. Tenho muito visto e muito ouvido.
Jeannelynne estava presa pela cintura a uma corda que se fixava em um grampo de metal inserido entre as pedras da muralha. A janela ficava a mais de cem metros do fosso, que andava seco pelo pouco uso militar que ainda se dava ao castelo. Naquela altura e situação teria sido impossível cozer uma poção, decantar uma mezinha ou preparar um ritual. Mas a jovem virago desenvolvera um talento que parecia talhado para vencer exatamente aquela ocasião.
De dentro do bolso da camisa de caçador sacou uma gema semitransparente e encostou-a no olho direito, pronunciando:
― Pela clemência da Rainha do oceano lunar, cujo olho incorruptível vê através dos talismãs dos sábios e de suas esposas. Por meio da salamandra, da mandrágora e do poder das ondinas, evoco Saturno, o anel e o céu, para guiar-nos, os que vemos com os olhos fechados. Tu me reconhecerás, ó Pai Terrível, pela minha lente negra.
A escuridão das nuvens começou a se fechar de novo em torno da lua, como se a Rainha recaísse em sua modorra, permitindo ao mundo continuar banhado em trevas densas.
― Evoco a ti, Saturno, árvore de onde todas as coisas presentes derivam, para empoderar a minha lente de quartzo e fazê-la dobrar a luz, para que eu possa empregar a corda contra quem enforca, o fogo contra quem queima, o metal contra quem fere. Para dobrar a vontade dos Sábios e suas esposas.
A lente brilhou no olho de Jeannelynne e a escuridão do mundo se apaziguou como se nunca tivesse havido lua. Mas nenhum raio se via no horizonte, nem o ribombo de nenhum trovão.
Beatrix ficou impressionada e assustada, mas não perdeu tempo com dúvidas. Nada seria melhor do que pender da gaiola até os pássaros virem devorar seu corpo.
― Para onde vamos?
― No momento, para baixo. Depois pensamos.
Beatrix sempre gostara do espírito prático e gradual da jovem. O primeiro ato seria a descida, é claro. Nenhum plano tinha sentido se não chegassem ao chão em segurança.
A jovem desceu primeiro e ficou segurando a corda para que Beatrix descesse com mais calma. Beatrix enrolou as mãos nas roupas e permitiu-se deslizar pela corda para chegar mais rápido.
Depois de se vestir, mas ainda em camisola, que era tudo o que lhe haviam permitido conservar de suas roupas, Beatrix acompanhou Jeannelynne em uma fuga desconcertada pelas vielas da aldeia próxima ao castelo, tomando o máximo cuidado para não produzirem ruído que despertasse alguém. Mas àquela hora, duas ou três da manhã, até mesmo os ladrões deviam dormir.
Quase meia légua além da cidade, na direção de Vyonnes, uma carruagem negra as aguardava, puxada por dois cavalos que escoiceavam, impacientes de esperar, mas obedientes.
Jeannelynne subiu à boleia e tocou os cavalos ainda enquanto Beatrix se acomodava como podia num dos bancos de trás. Foi então que percebeu o pacote flácido envolto em lona escura.
Os cavalos trotavam loucamente, fazendo a carruagem sacudir nos desníveis e buracos da estrada. E o pacote rolava de um lado para outro, como um saco de cebolas. Mas não eram cebolas.
― Jeannelynne, você pode me explicar o que….?
― Eia! ― os cavalos diminuíram o ritmo ao comando e a carruagem entrou à esquerda na terceira encruzilhada, bem antes da metade do caminho.
― O que é aquilo?
― Ainda temos tempo, Beatrix. Ainda temos tempo.
A carruagem parou em uma planície erma, em cujo centro restava um bosque onde parecia arder uma fogueira, mas que se notava somente pela pluma de fumaça que formava um pilar entre as árvores.
― Vamos? ― convidou Jeannelynne.
Um sorriso se abriu no rosto de Beatrix. Não supunha as intenções da amiga. Não teria adivinhado.
― Terei a grande sorte de completar a minha missão?
― Certamente. Traga-o.
Soltos os cavalos para que pastassem em paz, as duas pegaram o pacote escuro e foram ao bosque. Aproximando-se das árvores sentiram a repulsa do círculo. Beatrix conjurou a fórmula de abertura e a náusea desapareceu. As duas caminharam para dentro e se dirigiram à fogueira. Lá estavam onze irmãs, já despidas como se adivinhassem a hora exata em que chegariam as fugitivas.
― Iä! Iä! Iä! ― saudaram-se reciprocamente.
O embrulho foi aberto sobre o altar improvisado em uma pedra. Era o abade de la Fournaise, em trajes de Adão. Amarraram-no de costas sobre a pedra nua e levaram um frasco de cristal às suas narinas, fazendo-o despertar, com frio e assustado, cercado por treze mulheres nuas, de todas as idades.
― Libera me Domine de manu malefactorum!
As irmãs riram e o cercaram enquanto ele imprecava inutilmente as potestades dos céus, silenciosas atrás da cortina de nuvens. Começaram a manipular indecentemente seu corpo, demolindo a couraça de continência e celibato que restava naquele pobre corpo alquebrado pelas penitências.
― De profundis clamavi ad te, Domine; Domine, exaudi vocem meam. Fiant aures tuæ intendentes in vocem deprecationis meæ.
Vendo-o perder-se as irmãs ainda o provocaram mais um pouco, com as mãos, as bocas e outras partes, até que o frade só conseguia chorar e repetir versículos de salmos misturados, que eram interrompidos blasfemamente pela saudação angelical:
― Benedicta tu in mulieribus.
Vendo-o finalmente vencido, elas se afastaram, puseram as mãos no chão e Beatrix, com as suas estendidas sobre o corpo exausto do frade, sentenciou:
― Infernālis terrēnaque et caelestis, venī, Bombō. Compitālis, trivia, lūcifera, noctivaga, inimīca lūcis, noctis autem amīca et socia, laeta canum lātrātū atque sanguine flāvō, per cadāvera vadēns per sepulcrētum dēfunctōrum, sanguinis dēsiderāns, terrōrem mortālibus ferēns, Gorgō et Mormō et Lūna et multiformis, veniās propitia ad nostrā lībātiōnē.
A espada de Jeannelynne abriu o peito de Pierre de la Fournaise e seu sangue jorrou para dentro das bacias e taças. Então a Lua, finalmente, abriu um sorriso entre as brumas e as nuvens, iluminando o festim infernal.