Participando no Facebook da comunidade Escritores Ajudando Outros Escritores sempre nos deparamos com os famosos “tópicos-treta”, como esse de hoje, com um questionamento muito interessante:
Interessante a enorme quantidade de autores brasileiros que seguem a seguinte característica: 1 - Publica o primeiro livro. 2 - Divulga dicas de como escrever bem, de como criar universos, personagens cativantes, estrutura narrativa, de trama, como fisgar leitores, como publicar, obter sucesso e vender milhares de cópias. Sério mesmo. Essas pessoas que só publicaram um livro, por acaso têm alguma ideia do que estão falando? Quem aqui acha que alguém seria plenamente capaz de “dar aulas” com tão pouca experiência? Teriam algumas pessoas se aproveitado de boas dicas colhidas em outros lugares e passado adiante como se fossem baseadas em experiências pessoais?
Em essência, podemos resumir a indignação em três grandes dúvidas:
- Qual é, objetivamente, a diferença entre “ser publicado” e ser inédito?
- Quais as credenciais que embasam a credibilidade para ensinar o que faz?
- Por que a compulsão para sair ensinando, tão logo começa a despontar?
A primeira pergunta é a mais tretosa, mas é fácil de responder. Em termos práticos, sou de opinião que publicar envolve três fatores:
- conhecer as pessoas certas,
- aproveitar raras oportunidades ou
- ter dinheiro para pagar.
Acredito que a diferença entre publicar ou não, pelo menos no Brasil, jamais foi a qualidade. Bons livros permanecem inéditos enquanto medíocres se publicam e, às vezes, chegam a vender bem e ser reeditados.
Publicar livros, no Brasil, continua sendo, como sempre foi, uma coisa relacionada ao poder, não à competência. Pessoas poderosas (políticos, por exemplo) escrevem e publicam livros para exibirem um verniz de cultura. Analise as breves biografias dos membros e ex membros da Academia Brasileira de Letras e verificará uma quantidade desproporcionalmente grande de políticos, advogados, médicos e funcionários públicos graduados. Um joão-ninguém, como Lima Barreto, jamais foi sequer cogitado, mas um político influente, como José Sarney, elegeu-se facilmente mediante a publicação de um sofrível volume de versos (“Marimbondos de Fogo”) e de um romance que não só é considerado a pior obra de ficção da história da literatura nacional como tem a quantidade mínima de páginas para ser considerado “livro” (“Brejal dos Guajas”). E não voltou a escrever.
Qual é exatamente o critério que autoriza alguém a considerar José Sarney melhor escritor do que Ronaldo Brito Roque, Márcio Ferrari ou Emerson Teixeira Cardoso (companheiros meus de Cataguases, inéditos e todos bons com as palavras)? Há uma diferença importante, Sarney é um político poderoso, enquanto esses três são pessoas de classe média-baixa ou baixa.
Claro que existem “raras oportunidades” para ser pescado e ter a chance de entrar na roda. O sistema precisa oferecer estas oportunidades para manter a própria legitimidade. Se a “descoberta de talentos” não existisse, a ideia do mérito literário não existiria e, portanto, não haveria nenhum galardão em publicar livros. Então os políticos poderosos não poderiam mais ornar suas biografias citando obras publicadas. Entenda: concursos literários e oportunidades reais de ser descoberto para o mundo literário são concessões. Nós, que somos selecionados, entramos como penetras na festa apenas porque a festa precisa parecer democrática.
Porém, mais do que nos permitir entrar, o sistema seleciona quem entra segundo os seus próprios critérios. Certa vez colecionava uma série de discos sobre a história do blues que vinha acompanhada de fascículos de texto. Num destes fascículos se contava o depoimento de um dono de gravadora sobre os bluesmen negros que o procuravam para gravar:
Eles chegam, sujos e com péssimos instrumentos. Damos-lhes banhos para não empestearem o estúdio e permitimos que toquem em instrumentos novos. Eles se sentam e mostram dezenas de suas composições, das quais somente quatro ou cinco prestam. Nós as gravamos e arranjamos, selecionamos duas e fazemos um compacto. Não precisamos pagar-lhes nada, apenas lhes damos cinco ou seis exemplares e eles se vão felizes. Esta foi a coisa mais parecida com ser presidente dos Estados Unidos a que podem aspirar.
Não se enganem, é assim que muito dono de editora encara os novos autores. Hoje o que nós conhecemos do blues foi selecionado por homens como esse dono de gravadora, temos de confiar em seus critérios sobre o que “presta” e nem podemos supor a razão pela qual as outras composições “não prestam”.
A editora não está lá apenas para nos dar “raras oportunidades”, ela também dá um caminho, uma fôrma, um modelo e espera que correspondamos. Se somos de acordo com o que ela quer, ela nos pega. Se não, ficamos de fora. E isso não tem nada a ver com qualidade, mas com adequação a um preconceito. Tal como os bluesmen descalços que tinham de tomar banho para entrar no estúdio do homem branco.
Claro, somos mais afortunados que os bluesmen dos anos vinte, porque está mais fácil pagar, sempre se pode pagar. Especialmente nos últimos anos. Antigamente a opção era muito cara, com o que se perderam muitas obras de qualidade. Hoje em dia está muito barato, daí ninguém dá valor. Na época em que a publicação paga era inacessível, as pessoas não tinham preconceito contra os autopublicados porque eram raros. Hoje, tem editora em cada esquina praticamente, se você tiver cinco ou dez mil reais para gastar, ou gráficas por demanda que exigem menos (e oferecem também menos).
Resumindo, nunca a diferença entre publicado ou não foi tão irrelevante – e eu nem toquei em Wikidbook, Wattpad, Blogger, Wordpress e outras formas de “publicar”.
Se a primeira resposta foi tretosa, mas simples, a segunda é um pouco mais complexa. São diferentes as competências para fazer e ensinar. Se para ensinar fosse necessário fazer, ninguém aprenderia a ser homem-bomba.
Tal como o livro deve ser julgado pelo seu valor literário intrínseco – e não porque você gastou muito tempo escrevendo, não porque você é simpático, não porque ele ganhou esse e aquele prêmio, não porque ele fala de Deus, não porque ele ensina uma lição, não porque ele virou filme, não porque o autor é da ABL, não porque vendeu muito etc. – o ensino deve ser julgado pela sua validade. É possível que um autor de péssimos livros seja um bom professor de literatura, tanto quanto um bom autor pode ser um péssimo.
Tanto está errada a suposição de que os autores de um livro só não têm competência para ensinar a escrever quanto está errada a suposição de que publicar mais livros lhe dá mais credibilidade como professor. Walt Whitman publicou um, único, livro em vida – “Folhas de Relva” e é considerado um dos maiores poetas da língua inglesa. Ao mesmo tempo, um dos maiores poetastros da nossa literatura, Gonçalves de Magalhães, publicou dezenas de obras, todas horríveis. Whitman se correspondeu com metade do mundo e influenciou gerações de autores, não só poetas. Gonçalves de Magalhães, mesmo ridicularizado em vida por sua torpeza literária, é um nome importante de nossa cultura porque escreveu e produziu teatro (foi o pioneiro desta arte), traduziu obras do inglês e do francês (traduções mancas, mas as primeiras que tivemos) e, mais importante, foi um bom editor e preceptor de outros poetas e autores, tendo apoiado (até financeiramente) gente melhor que ele, como Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias. A quantidade de obras publicadas não significou nada, nesse caso. Lembremos, também, que Fernando Pessoa e H. P. Lovecraft são notáveis escritores do século XX que só publicaram um livro em vida (mas seus casos são menos impressionantes, porque morreram com a metade da idade de Whitman).
O problema não é o publicador de um livro só aparecer ensinando, é ele aparecer com a ideia de que descobriu algo novo e revolucionário. Ensinar conservadoramente é bastante fácil. Você nem precisa ter publicado livro algum para compartilhar os ensinamentos que outros deixaram no passado. Então, se você é orador de discursos alheios, é tolo quem atacar o discurso por sua causa. Temos que ver de onde vêm as ideias que você propaga. Se as está tirando de trás da orelha, então elas provavelmente fedem, mas se as está trazendo de lições melhores, deixadas por autores que têm ou tiveram credibilidade, então você está numa posição confortável.
E isto nos leva ao terceiro eixo: por que a compulsão de ensinar?
Acredito que isto seja principalmente para defender o que se faz. Quando um autor jovem escreve alguma coisa, ele se expõe muito. Ainda mais hoje em dia, em que todo mundo tem pressa de defecar uma obra cedo. A insegurança vem da falta de maturidade, aliada a editoras do tipo “pagou-publicou” e ao generalizado mau gosto do público (constituído, no Brasil, predominantemente por analfabetos funcionais, conforme recente pesquisa do IBGE, que revelou que menos de 20% dos brasileiros adultos leem e escrevem sem esforço).
Então, quando você publica, instintivamente sabe que a sua obra tem pés de barro ou um calcanhar de Aquiles. O fato de não o apontarem, você desconfia, é só por educação, amizade ou irrelevância. As pessoas não te desancam porque não querem te ofender, porque são suas amigas, ou porque não tomaram conhecimento da sua existência. O que pode ser pior que essa sensação?
Para combatê-la, você precisa se credenciar. Isso você já fez quando se filiou previamente a um movimento literário, incorporou “referências” transparentes ao que “todo mundo gosta”, adotou o formato de maior prestígio (romance e novela se confundiram no conceito de “livro”) e gastou os tubos para imprimir sua obra em papel de primeira qualidade, com capa laminada, fonte bonita, ilustrações, orelha, foto sua em pose de modelo na contracapa e o escambau. Afinal, um livro tão bonito não pode ser ruim, não é mesmo?
Mas não basta isso, é preciso assumir uma posição de superioridade. A posição de superioridade não está mais em “ter publicado” o livro, porque você instintivamente sabe que está fácil para quem tem as amizades certas, cabe na fôrma esperada pelas editoras ou tem grana para pagar. A superioridade está, então, em aparentar cultura, e nada melhor para isso do que ensinar o que aprendeu, mesmo que seja pouco. Um pouco de conhecimento, bem trabalhado, pode ser esticado numa aula de cinquenta minutos. Só que você não tem a obrigação de dar sessenta e quatro destas ao longo do ano, durante anos, você só precisa de uma ou duas dessas lições bem construídas e já se constrói como aparente autoridade. Se você insiste, publica, é bem comentado, é bem seguido, você logo estará se sentindo uma referência, e muita gente vai achar também. Não se esqueça que, se você tem curso superior, “obras publicadas” valem como títulos na hora de se candidatar a uma posição docente em faculdade. Conheço gente que lecionou literatura brasileira em faculdade porque publicou três ou quatro livros.
Portanto, as pessoas querem ensinar porque:
- não perdem nada com isso,
- não são cobradas pelas merdas que falem,
- não precisam sustentar o que dizem e
- podem ganhar alguma coisa.
Ocorre que, da mesma forma como se desenvolveu uma estrutura para escrever o que as editoras esperam (“receita de bolo” é algo muito confortável para quem tem paúra de errar, e os editores não querem porque não têm margem para isso), há também uma fórmula para se ensinar a escrever. Porque os editores terceirizaram a doutrinação.
Eles não querem se desgastar, não querem ser questionados quanto às suas credenciais. Melhor que os autores contratados por eles façam as honras aos que podem vir a ser. Os autores assimilaram o discurso quando se “adequaram” para entrar na editora, então o repetem para outros que pretendem entrar. “Eu estou aqui porque fiz assim, faça também.”
Na prática, essas dicas são parte das estratégias de marketing e relações públicas das editoras, e é possível que os autores fazendo isso nem sempre o façam porque querem, mas porque lhes foi pedido, ou porque acharam que deviam fazer.