O ódio a Machado de Assis é muito frequente entre jovens que alegam terem sido “forçados” a lê-lo na escola. Aparentemente os jovens acreditam que a função da escola é exclusivamente dar-lhes o que gostam e o que escolhem, daí a revolta por receberem uma tarefa tal. Certamente Machado de Assis é difícil, mas para quem não tem boa vontade, não há facilidade em nada a não ser no nada. A culpa que o Machado tem é a de ser um sucesso e ainda ser lembrado pelos educadores — mas se o autor fosse outro, o ódio seria o mesmo. O ódio dos jovens a Machado de Assis não se dirige ao Bruxo do Cosme Velho, mas à própria ideia de ter de se identificar com o passado.
Machado de Assis, sim, representa um pedaço fenomenal de nosso passado. Um belo lírio que floresceu no brejo de uma época triste, desesperançada e suja. Ele é parte do que fomos, do que somos. Seus contemporâneos são os nossos avós e bisavós, pessoas que, em um país avesso à genealogia, nós não conhecemos mais.
O brasileiro é um povo sem memória, como se propaga há muito tempo. A amnésia coletiva da nacionalidade nos condena a viver em um tempo anistórico, que se nos apresenta como cíclico e não como um processo. A figuração da mentalidade brasileira é a de uma mandala imperceptível, na qual só existe o passado imediato, o presente onipotente e o futuro próximo. Todo o resto pertence ao tempo do mito, é como se fosse parte de outra civilização.
Tal é a natureza de nossa relação, mesmo a dos jovens autores, com os clássicos literários. Eles são trambolhos inúteis porque não mais nos reconhecemos neles. Não captamos sua importância porque estamos presos à mandala imediatista que nos sonega o pertencimento ao tempo histórico. Este modo de pensar reflete o modelo mental tribal propugnado por Marshall McLuhan — que consiste justamente na falta da concepção de linearidade do tempo e do encadeamento das ideias entre antecedentes e consequentes. A lógica argumentativa e a filosofia são ferramentas características da civilização do alfabeto, que destribaliza o homem ao integrá-lo na evolução do tempo histórico.
Daí a valorização do impermanente, do mediato e do cíclico. Não acreditamos que o passado nos possa falar porque ele saiu de nosso círculo. Tal como não concebemos usar uma roupa que foi da moda do verão passado, não aceitamos ler uma obra escrita no estilo de uma época antiga. O pensamento anistórico desenvolve a ideia de que só podemos compreender e aproveitar o presente, é um pensamento diferente da ideia de progresso linear, que nos faz abandonar o passado por imperfeito. O passado não é imperfeito, ele simplesmente não nos fala mais.
A falta de formação humana, histórica e cultural nos impede de decifrar o passado, assim é esperado que o consideremos desconfortável (porque o desconhecido nos é desconfortável), deselegante (porque não apreciamos uma moda que passou), inútil (porque não mais nos identificamos com as mensagens que ele nos traz) e então descartável (porque se a obra não consegue mais nos falar e nos ensinar, ela se tornou vazia de propósito).
Este tipo de julgamento, porém, diz mais sobre quem o faz do que sobre a obra que vitima. Diz muito sobre as limitações culturais do crítico, sua falta de respeito pela herança cultural do país, sua imensa sobre sua falta de sensibilidade artística, entre outras coisas — das quais a mais pavorosa é a revelação de um modelo mental tribal, sobre o qual o efeito civilizador da educação não conseguiu agir.
O ódio simbólico a Machado de Assis é um símbolo do ódio que o estudante carrega, por toda a vida, por ter sido ludibriado em um sistema educacional criminosamente capenga e limitador. Machado, coitado, acaba sendo bode expiatório da raiva que os jovens têm ao perceberem que seu tempo gasto na escola foi em sua maioria desperdiçado em aulas superficiais, conteúdos sem conexão com a realidade e vivências sem profundidade filosófica. Um sistema educacional que não educa, não amadurece, não ensina e não prepara para o mercado de trabalho.
A escola brasileira, de fato, serve para muito pouco. Pouco além de uma creche plus onde os pais deixam os filhos por algumas horas. Pouco mais que uma desculpa para receber assistência social do governo. Pouco mais do que um meio para se fingir de cidadão honesto e cumpridor de seus deveres. O marginal que morreu “era estudante”. Nada é tão fútil quanto o rótulo. Em muitos casos o aluno seria menos marginal e teria mais proveito se estivesse fazendo outra coisa. Um sistema educacional que sequer consegue dar aos alunos mais segurança do que teriam na rua…
Há uma diferença enorme entre não gostar de uma obra e denegri-la. Não gostar é direito de todo mundo, fazer ataques é privilégio de quem pode fundamentá-los. Os estudantes, em geral, não podem. Para eles é como se o mundo estivesse por detrás de uma neblina, e a forma fantasmagórica de um homem mulato vestindo um fraque e uma cartola é uma assombração dentro dela. É preciso atirar nessa figura, afugentá-la, matá-la se impossível… (sic). Mas com que arma, se nossa escola é tão inócua que deixa 78% de analfabetos funcionais na população em geral?
O ataque a Machado de Assis, aqui um mero símbolo do que se rejeita — o passado e a identidade nacional — acaba, então, pela sua incompetência, refletindo mais as limitações de quem o inicia do que os defeitos, certamente existentes, da obra do autor. Em geral o que se comete é um rosário de falácias e impropriedades gerais. Anacronismo, por exemplo, pois se compara com o padrão de hoje um romance escrito há 120 anos. Mas o que pensar de quem vê em uma obra de cunho satírico um texto “penoso” e “triste”? Somente que a falta de preparo e sensibilidade impediu o entendimento. Assim fica difícil detectar o valor de uma obra que não é óbvia, mas esfíngica.
O profundo irrita principalmente a quem não tem ferramentas para escavar. O enigma frustra a quem não o adivinha. A complexidade de uma obra a torna um inimigo na visão daquele que não a pode abordar. É natural que tenhamos, sempre, multidões de jovens que odeiam os autores do passado, é natural porque o conhecimento necessário para fruí-los não é adquirido por todos — por uma questão de gostos, oportunidades, capacidades ou seja lá o que for. Mas se o sistema escolar conseguisse dar mais do que uma mão simples de caiação cultural sobre os jovens, haveria menos pessoas impedidas de perceber, ao menos, que Machado de Assis não merece ser xingado, mas admirado.
Esses são os jovens que enxergam exibicionismo linguístico em uma forma literária que reflete o uso do idioma em um século passado, que enxergam superficialidade no decoro descritivo de um autor sujeito a todo tipo de censuras sociais e que enxergam infantilidade em um texto que preserva a dignidade de uma época em que a vulgarização não destruíra ainda o relacionamento interpessoal. O que fica destes jovens e seus argumentos é a imensa distância entre a qualidade de muitos autores brasileiros e o público. E é preocupante que autores que antigamente eram lidos com certa facilidade por alunos de segundo grau (conforme eu li) sejam recebidos assim pela juventude de hoje, com paus e pedras. Isso testemunha o imenso fracasso de nosso sistema educacional (que produziu, entre outras coisas, essas opiniões).
É muito preocupante que as novas gerações não tenham ferramentas (culturais, formais, argumentativas) para apreciar, ainda que superficialmente, a riqueza de nossa cultura. Parecem arrancadas de nossa história, limitadas ao presente. Não conseguem olhar para trás, e nem para si, por isso olham tanto para fora, para obras e modelos importados.
Esse tipo de distanciamento faz parecer que o português do século XIX está tão distante de nós quanto uma outra língua, que houve uma ruptura cultura, como se os brasileiros daquela época não fossem brasileiros. A juventude de hoje, de fato, olha para esses homens e mulheres como se fossem personagens de um país que existiu e que não é nosso. Não são os nossos avós e bisavós, são criaturas enigmáticas de uma outra dimensão.
Essa alienação pavorosa é uma barreira intransponível a partir de certa idade, porque o mundo sempre nos parece terminar onde estão as nossas limitações. Preferimos as certezas do que já sabemos. Enquanto a escola não for capaz de salvar as crianças, não haverá futuro para os adultos.