Caetano Veloso, que já foi melhor sintonizado com tal “espírito do tempo”, indagou dia desses se é preciso que o artista seja progressista. A pergunta, claro, surgiu por causa da campanha feita por alguns artistas ― entre eles Roger Waters ― para que ele e Gilberto Gil não participassem de um festival de música em Israel. Embora eu acredite que o artista tenha o direito de tocar em Israel se quiser, a maneira como Caetano reagiu à cobrança que lhe fizeram foi extremamente danosa à sua biografia:
Alguns colegas nossos são líderes de atitudes reacionárias públicas. Por que artista tem que ser de esquerda ou progressista? Isso é besteira. Eu sempre achei besteira. Esse negócio de que você tem que ser atrelado automaticamente está errado.
Em primeiro lugar, claro, o artista não tem que ser progressista ― seja lá o que for que Caetano quis dizer com o termo. A história de todas as artes está recheada de gente conservadora, reacionária, obscurantista etc. Artistas são pessoas que fazem arte. Pessoas são boas ou más conforme circunstâncias, raramente alguém é uma coisa só pela vida toda. Fazer arte não eleva ninguém moralmente acima do restante da humanidade, não gera nenhuma obrigação moral com o mundo. Portanto, que Caetano Veloso durma tranquilo: em nada afeta a sua arte ele ser um progressista ou outra coisa. O problema de que Caetano tentou fugir não é uma questão artística, mas ética.
Ética é uma dessas coisas que todo mundo acha que sabe o que é, mas ninguém realmente explica. Minha definição pessoal, com base no que já li do assunto, é a de que ética consiste naquilo que pode ser aceito como apropriado a um contexto, de uma forma universal. Ou seja: diferentes pessoas, de diferentes culturas, terão opinião semelhante sobre o mesmo caso, em um mesmo contexto. Por exemplo: a filmagem de uma criança sendo espancada na rua causará reações negativas de toda e qualquer pessoa, de toda e qualquer cultura, que não seja ela mesma isenta de ética. Agredir gratuitamente a criança será considerado antiético pelas pessoas éticas da Rússia, da Colômbia, do Japão, do Brasil, da Índia, da Bósnia, do Irã e até de Marte. Em cada um desses lugares haverá, claro, pessoas que aplaudirão o espancamento, mas o que dá universalidade à ética não é ela ser aceita por todos os seres humanos, mas ser aceita em todas as culturas pelas pessoas que possuam valores positivos. Filhos da puta existem no mundo inteiro, e o que eles pensam sobre bater em crianças não altera em nada os aspectos éticos envolvidos.
Se ele tivesse defendido sua ida ao festival, ninguém poderia questionar a sua ética. Afinal, é possível justificar eticamente muita coisa que aparentemente é injustificável. Ele poderia ir a Israel para “levar uma mensagem de tolerância”, poderia dizer que espera que a ida de mais artistas ao país ajude a dar mais cosmopolitismo à sua cultura, poderia achar vários modos, enfim, de apresentar sua ida ao festival como algo ético… até progressista. Ou poderia dizer, simplesmente, que precisa do dinheiro. Ou poderia não dizer nada.
Mas ao escolher confrontar as cobranças com essa indagação, escorregou feio. Porque ninguém lhe cobrou que fosse de esquerda ou direita, nem que se atrelasse automaticamente a coisa alguma. Foi-lhe feito um apelo em nome de uma causa, foram apresentados argumentos, que ele preferiu ignorar, sem dar satisfação. Considerando quem Caetano Veloso foi, no passado, sua reação é decepcionante porque recuou de ideais que tinha. O homem que compôs “Podres Poderes” agora se coloca em uma posição conservadora, negando que haja perseguição contra as religiões afro-brasileiras, e se contenta com uma postura alienada: Eu, pessoalmente, não penso em fazer nada [nenhuma manifestação política]. Eu penso em fazer o show.
Realmente o artista não tem obrigação de aliar-se a nenhuma ideologia específica, mas o que todos esperamos de pessoas públicas é que sejam coerentes com as suas biografias. A atitude de Caetano e Gil, insistindo em ir mesmo diante de educados e respeitosos pedidos para não irem, revela um fechamento ao contraditório, uma recusa a ponderar, um autoritarismo que, no caso de Caetano, já se manifesta há alguns anos. O que Caetano acabou dizendo, e isso, sim, foi danoso à sua imagem, é que o artista não precisa ter preocupações éticas e nem precisa ser sujeito do mundo, contentando-se com uma postura subserviente, sem questionamentos. Um covarde, enfim, provavelmente preocupado apenas com quanto vai ganhar.
Eu confesso que mesmo essa atitude não denigre a obra de um artista, mas como a gente estranha que este discurso saia da boca do autor de tantas canções afiadas!