Invariavelmente os debates sobre literatura nas redes sociais são contaminados por falácias e por atitudes infantis, que impedem que opiniões discordantes convivam amigavelmente. Este artigo analisa três destas grandes falácias, apontadas pelo escritor Osmarco Valladão, em uma postagem do grupo “Escritores Ajudando Outros Escritores” e uma quarta que eu mesmo detectei no mesmo tópico do debate.
1. Criticar a obra também significa criticar o seu autor.
Quando eu era adolescente, um dos medos que me apavoravam em relação à literatura era que as pessoas pegassem os meus escritos, lessem e achassem que eram pensamentos meus postos em papel. Acredito que boa parte dos mais jovens sentem algo parecido se estão começando, por isso eles não apenas sentem medo parecido como transferem esse medo aos autores de que gostam. Trata-se da ideia (equivocada, como quase toda ideia popular) de que há uma identidade entre o autor e a obra. Daí se imaginar que o autor é pessoalmente atingido quando sua obra recebe algum tipo de crítica, especialmente se a crítica pegar pesado.
Este pensamento não está exclusivamente nos leitores, não se estende somente até os jovens autores: há autores profissionais que ainda estão impregnados disso — especialmente em um país como o nosso, no qual profissionalismo e amadorismo se confundem. Mas a popularidade não muda a sua falsidade: não deveria haver essa identificação tão extrema e tão idealista entre o autor e sua obra. Ou seríamos forçados a pensar que autores de romances policiais precisam ser policiais, que poetas românticos precisam ser ingênuos, que autores de terror precisam ser sádicos ou paranoicos ou que autores de comédias precisam ser engraçados em sua vida pessoal. Não são, não precisam ser.
Claro que todos devem ser orgulhar do que produzem, mas quando somos apresentados aos defeitos e limitações do que fazemos, isso não deveria implicar em uma dúvida quanto aos nossos defeitos e limitações enquanto pessoas. Um péssimo autor ainda pode ser um cara legal e um calhorda pode ser um ótimo escritor. Quanto menos acreditarmos na identificação mística entre autor e obra, melhor para o autor e melhor para o debate literário.
2. Criticar a obra também significa criticar o seu leitor.
Se é pelo menos compreensível que o autor se sinta atingido pela crítica, é um tanto estranho que o leitor o seja. A leitura de uma obra deveria ser um mero ato de consumo, com o ocasional efeito transformados que o contato com o conhecimento nos traz: não deveria surgir nenhum tipo de relação de dependência entre o leitor e a obra que lê.
Porém, mesmo assim, é comum que os leitores se sintam atingidos. Se eu digo que acredito que “50 Tons de Cinza” é um livro idiota os leitores se sentem chamados de idiotas. Como se pessoas normais (“não-idiotas”) não pudessem fazer coisas idiotas por diversão. Eu, por exemplo, gosto de ouvir hard-rock oitentista mesmo sabendo que aquilo ali já era considerado lixo naquela época. É um lixo melhor do que o que se considera hoje como tal, mas, ainda assim, era lixo. Gostar de lixo faz parte da formação de toda pessoa normal. Ninguém se cria somente com o bom e o melhor tal como ninguém se cria, rico que seja, comendo caviar em toda refeição. Existe um custo na qualidade, um custo não apenas monetário mas também intelectual. Quando lemos um livro difícil e exigente nos sentimos um tanto exauridos e podemos querer o conforto de umas leituras leves por uns tempos, até mesmo algumas leituras tolas. |Isso não nos torna menos espertos. O que realmente nos torna idiotas é quando assumimos a defesa de uma obra ou de um autor apenas porque nos sentimos associados a uma obra que idolatramos. Isso sim é vergonhoso.
3. Criticar a obra é exercer uma censura do gosto alheio.
Talvez fosse didático pegar a juventude de hoje e fazer com que ela vivesse, de verdade, por algumas semanas em uma ditadura cheia de censura como a nossa “ditabranda” de 1964. Talvez assim parassem de usar em vão o termo “censura” para se referir a qualquer atitude ou opinião com que não concordam.
Na verdade, “censura” é a que pretendem exercer aqueles que tentam deslegitimar o direito de expressar crítica sobre aquilo de que gostam. Projetinhos de ditadores são estes que não suportam que existam pessoas que pensem diferente.
Afinal, ninguém precisa se sentir proibido de ler um autor que recebe uma crítica. No máximo, deveria se sentir convidado a refletir sobre o teor da crítica, para aceitar ou não as teses defendidas por quem criticou. O problema de se convidar à reflexão pessoas que não gostam de refletir é que elas encaram esse desafio intelectual como uma ameaça à segurança de seus conceitos. Uma violação de sua zona de conforto.
Se eu digo que acho “O Alquimista” um livro mal escrito os fãs de Paulo Coelho surtam dizendo que eu estou tentando censurar o seu gosto, como se houvesse alguma opressão sobre a maioria. A censura nunca é exercida contra o pensamento dominante, mas sempre contra o pensamento desviante. Aqueles que estão surfando a onda da preferência popular no momento não estão sofrendo senão a censura que os controladores da cultura popular exercem sobre os que produzem visões culturais minoritárias.
4. Qualquer critério valorativo é uma forma de opressão.
Uma das características do pensamento pós-moderno aplicado à literatura (e às artes em geral) é o de que a liberdade absoluta de expressão é um valor em si e que a busca de critérios valorativos é um retorno ao academicismo — uma forma de opressão, portanto. Na opinião destas pobres almas, a liberdade consiste na ausência de regras. Como na literatura isso é bem mais difícil de aplicar (qual o equivalente literário a esguichar tinta aleatoriamente em um quadro ou colocar uma cadeira presa no teto?), eles se contentam em defender que a expressão encontrada pelo autor deve ser aceita pelo seu valor nominal, sem que pretendamos enquadrá-la em critérios “arbitrários”.
Aqui temos dois erros fundamentais: o primeiro é a crença na necessária arbitrariedade dos critérios da crítica literária (ou de qualquer crítica) e o segundo é a ideia de que o autor possui uma legitimidade para avaliar a própria obra que o crítico não detém.
Digo que é um erro a crença na “necessária” arbitrariedade dos critérios porque este é um prejulgamento generalizante. Dizer que um critério é arbitrário não é absurdo, dizer que qualquer critério (existente ou que venha a ser criado) sempre será arbitrário é uma posição obscurantista, é um argumento pela ignorância, um non plus ultra intelectual. E é também uma fuga ao debate, pois quem assim pensa se exime do ônus de criar um critério alternativo ao que está criticando.
Digo que é um erro atribuir excessiva legitimidade ao autor por dois motivos: 1) é uma forma de, aí sim, exercer censura, limitando as interpretações de uma obra àquelas que o autor determinar como possíveis e 2) parte-se do princípio de que o autor expressa apenas ideais conscientes, nunca cometendo nem atos falhos e nem posteriormente mudando de ideia a respeito do que escreveu em uma fase anterior da vida. Na prática, negar legitimidade à crítica e entregá-la, toda, na mão do autor equivale a impedir totalmente o debate sobre a obra, que deixa, assim, de ser uma criação interativa e passa a ser uma expressão unívoca da vontade de quem a escreveu.
Na prática, como até mesmo se vê no grande mercado de fanfics e obras derivadas, é extremamente natural que as pessoas tenham interpretações diferentes — por que somente o crítico não poderia ter as suas? Como se ao escolher o que lerá, este leitor confuso que tem tais ideias não estivesse exercendo um critério valorativo todo seu, embora assistemático.
Conclusões
Na prática o que este debate produz é apenas obscuridade e mártires. Suprime-se o jogo limpo das ideias em nome de idealismos bestas que apenas nos emburrecem coletivamente. E quando confrontados com os limites, de conhecimento e de capacidade intelectual, os defensores destas ideias se “imolam” saindo dos grupos, deletando seus perfis ou entrando em modo berserkr para que sejam expulsos pelos moderadores.
Seria interessante que as pessoas encarassem os livros de uma forma mais casual e menos religiosa, e aceitassem conversar sobre eles de forma madura. Aceitando, inclusive, que ler livros idiotas é uma fase e pode ser um momento na vida do mais intelectual dos indivíduos e que, portanto, há espaço para toda forma de literatura, embora o espaço da “boa” literatura tenda a ser menor porque a massa não alcança a prateleira de cima.
Só não deveria, a massa, querer quebrar a prateleira e queimar o que tem nela.