Toda vez que assisto um vídeo do Nando Moura eu me lembro da parábola de Apeles e do sapateiro. Moura é um músico que gosta de mencionar um extenso currículo musical para embasar suas críticas ao funk, ao sertanejo e ao black metal; mas também se mete a falar de filosofia, que confessadamente aprendeu com Olavo de Carvalho, política e até padrões de tomadas. Suas críticas musicais são bastante justas — ainda que sejam mais ou menos o que qualquer bípede implume dotado de telencéfalo altamente desenvolvido faria, embora talvez com boa educação — mas quando se mete a falar de outros temas ele parece entrar em um frenesi escatológico sem sentido, talvez para disfarçar a falta de originalidade — e de base teórica.
Conta-se que Apeles, famoso pintor de murais da antiga Grécia, apresentava suas obras ao público e ficava por perto escondido para ouvir o que delas se dizia. Um dia um sapateiro comentou que os calçados de Aquiles estavam desenhados incorretamente. O pintor percebeu seu erro e naquela mesma noite fez a correção sugerida pelo sapateiro. No dia seguinte, o sapateiro, ao ver que seu comentário tinha motivado a mudança, começou a comentar outros aspectos da pintura. Apeles então saiu de seu esconderijo e mandou-lhe calar-se: “Sutor, ne ultra crepidam” (palavras citadas por Plínio, o Velho, de quem sabemos de sua existência, ou seja, “Sapateiro, não passe dos sapatos”).
Nando Moura ganhou algum respeito pelos seus muitos anos de estudos musicais, sua capacidade de ordenhar uma guitarra e sua boa cultura geral. Usou isso para fazer vídeos de aulas musicais, fazer críticas ousadas e corajosas ao universo pop e adquiriu certa subcelebridade. Daí se revelou cristão, reacionário, mal humorado e boca suja — características herdadas, talvez, de suas “aulas de filosofia” com Olavo de Carvalho. Além do estranhamento de ver tanto cristianismo na boca de alguém que se julga roqueiro “tr00” a ponto de desancar o black metal e querer cagar regra, esta outra vertente de seu pensamento está cheia de pensamento reacionário (que já abunda na net) e de conhecimentos superficiais de filosofia, regados a ausência de tatuagens e abstinência de cerveja.
Acredito que muita gente já lhe deve ter dito que ele não deveria ir além dos metafóricos calçados, mas o que é um bom conselho para quem acredita que usar palavrões é uma forma de argumento e não tem quase nenhuma demonstração de bom humor? Esse talvez seja o mal da internet: ter potencializado ideias tolas que a gente tem, e que antigamente só compartilhava com dois ou três amigos enquanto bebia cerveja. O mundo era menos complicado quando bobagens que a gente pensa mal chegavam à esquina, mas hoje qualquer um tem sua caixa de sapatos virtual para subir em cima e disparar “opinião” sobre mais que os sapatos de que entende.
A democracia trazida pela internet tem seus defeitos, e o principal deles é que não existe filtro nem maneira de convencer as pessoas a falarem só do que sabem. Cabe-nos apenas esperar que todos ajam com bom senso — mas eu mesmo o tenho muito pouco, em geral só de segunda a sexta.