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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Tratamento de Recuperação

Publicado em: 12/12/2015

Despertou-me o silêncio. A noite parecia cortada ao meio, sangrando ainda, quando meus olhos se arreganharam para as trevas. Havia um silêncio espesso empoçado no quarto, o suor secava e me causava frio, na calma intensa da madrugada eu ouvi meu coração bater tão levemente que me senti ainda falecido, como se a minha alma mesma ainda revoasse por alturas possíveis. Mas não, eu estava ancorado à cama e à carne. Tentei me virar, mas a dor do movimento foi demais para minha pouca vontade. Quis ficar tão imóvel quanto impossível, senti minhas pernas pouco a pouco esticando, meus músculos totais relaxando.

Por um instante brevíssimo meus olhos caíram de novo, mas eu não sei quanto durou. De fato fazia pouca diferença em tamanha escuridão. De repente eu me senti caindo como um tijolo, o colchão sacudiu com o meu peso, meus músculos moles e meus membros se desenrolaram como cordas.

Havia alguém no quarto? Ou somente um inseto violinista? Deslizei pelo lençol até a beira da cama, minhas inúteis pernas ainda dormindo. Meu pescoço pendeu fora do colchão, ouvi o sangue espremido em minhas veias, rugindo em meus ouvidos.

Arrependido do movimento, chamei por alguém. Ninguém pareceu ouvir. O silêncio não desistiu de mim. Mas estava chovendo quando dormi? Ou não estava. Voltei a me deitar. Com algum custo me apoiei na parede e me sentei, passei a massagear minhas coxas e canelas, voltei a senti-las. Devia ter dormido muito, muito mesmo, para elas estarem tão amortecidas.

Então senti um arrepio cavalar na espinha, como se alguém sussurrasse tão perto de mim que eu ouvisse o bafo e a respiração como uma coisa só, distante e ainda silenciosa, apesar de audível e assustadora.

Praguejei que a tomada da luz ficasse perto da porta, tão longe da cama. Por sorte deixara o celular perto do travesseiro, para que o despertador me acordasse com mais facilidade. Tateei pelo lençol amarrotado e meio desencaixado de seu lugar, o maldito aparelho poderia ter se enfiado numa dobra do universo e ido parar em qualquer outro lugar.

A sensação me acossava, já podia sentir o calor de uma presença escura, no quarto totalmente negro, na noite absurdamente quieta, a calada completa que se diz não haver mais. Meus dedos tropeçaram em algo. O formato e o peso eram certos. Apertei o botão lateral, a luz da tela não acendeu. Apertei de novo, e de novo, freneticamente. A luz não acendeu apesar de a bateria ter estado cheia no momento em que me deitara.

Olhei em volta, olhos arregalados, à espera de me acostumar com o breu e conseguir ver alguma coisa, ainda que furtivamente. Quarenta pavorosos segundos com aquela sensação de presença tão perto e meus inúteis olhos, coalhados de medo, não conseguiam penetrar a parede preta da noite.

Senti que minhas pernas já não dormiam tanto. Inclinei-me para a frente como o agente que desvia magicamente de uma bala do inimigo e, por calcular mal a minha posição, dei de cara com o chão em vez de encontrar o pé da cama. Levantei com rapidez para acertar a nuca no puxador da gaveta do guarda-roupa.

Praguejei de novo, esfregando a nunca com uma mão enquanto a outra tentava descobrir se meu nariz sangrava ou não. Com esforço me levantei e me sentei na beira da cama. A sensação de presença parecia desaparecida. O quarto deveria estar vazio… a menos que…

De pé, finalmente, abri os braços e comecei a tatear em direção à porta. Dei numa parede. Virei-me à direção oposta e finalmente encontrei a penteadeira. Maldita Laís! Mudou a posição dos móveis enquanto eu dormia! Encontrei a parede ao lado da penteadeira e rastejei meus dedos por ela, com cuidado para nada derrubar, e finalmente achei a porta, ao lado dela o interruptor.

Olhei em volta novamente. Não sentia mais a presença. Mas tinha um receio curioso de acionar a luz e descobrir o que haveria no quarto, se algo havia. Mas logo deixei de lado tudo isso de medo e frescura e acionei o interruptor, com tanta força até, que ele entrou em curto-circuito: nada se acendeu nem fagulhou e tampouco soou.

Meu estoque de palavrões já estava bem curto, por isso me desinteressei de xingar e saí do quarto, procurando o interruptor da sala. Dei uma topada numa mesinha de centro que eu poderia jurar que não estava lá antes que eu dormisse e finalmente achei a porta de casa, ao lado dela o interruptor duplo. Acionei-o repetidas vezes, mas as trevas não foram sequer atenuadas, e nada ouvi.

Ao menos do lado de fora haveria luar, alguma coisa de luz se filtraria mesmo entre as mais grossas nuvens. A porta estava, porém, trancada. Se aquela era a minha casa, no entanto, eu saberia onde estavam as chaves.

Do lado oposto havia o corredor que conduzia a cozinha. Tateei por ele. À esquerda estava a entrada da biblioteca e a subida para o segundo piso, à direita o banheiro social. Na parede da cozinha, ao lado da porta que dava para o corredor, encontrei o porta-chaves. O chaveiro familiar, com a semente falsa confeccionada em couro e madeira.

Voltei pelo corredor, cheguei à sala, tateei a porta, achei a fechadura e com alguma dificuldade a abri.

Do lado de fora havia trevas totais. Nenhum silêncio menor que o da morte poderia ser tão completo. Encostei a porta por trás de mim e ouvi, pela primeira vez, algum ruído que não me assustou: patas. Algo gordo e feliz correu pela ardósia da garagem e veio lamber minhas pernas. O toque familiar de Peludo me acalmou um pouco, me amarrou de novo à sanidade. Eu estava em casa, afinal, era apenas uma noite silenciosa durante um apagão. Nada diferente disso.

Então me deparei com a parede.

Lisa, fria, limpa, mais alta do que eu. Seguia em torno de toda a casa, conforme verifiquei. Esta descoberta me desnorteou de novo. Que merda era aquela, afinal. O ar começou a me faltar, a sensação de que a minha casa, a minha vida, até o meu cachorro, tudo tinha sido posto dentro de uma inefável caixa que me bloqueava toda luz e quase todo som. Mas havia algo além de meu bicho comigo: eu sentira em meu quarto, talvez isso me acordara.

Então me lembrei de algumas partes.

“É uma operação bastante simples. Sedação e anestesia raquidiana. A extração não dura mais do que vinte ou trinta minutos. A sonda é retirada praticamente sem traumas. Para seu maior conforto, será mantido sedado até a retirada dela. Depois terá alta. Vida normal. É apenas um cálculo.”

Deitado na sala de cirurgia, contemplando os instrumentos que bipavam, os enfermeiros contando piadas de futebol, o médico lavando as mãos em uma generosa pia de álcool puro e lembrando a excelente cerveja artesanal que experimentara em um lugar que mal conseguia ouvir, pois a sedação já começava.

“Eu só não entendi, doutor…”

“Psiu.”

“Ele já está dormindo, veja. Eu só não entendo como um cálculo renal se mexeria dentro do paciente daquele je…”

Eu estava despertando de uma sedação prolongada.

Corri as mãos pelo corpo, por debaixo do pijama, não encontrei cicatriz. Mas tampouco ouvi o pulsar estranho ou senti a dolorosa movimentação em meu abdome.

Ouvi um ruído então. Novo, diferente, inexplicável. Alto também, e monstruoso, prolongado.

Quando já imaginava estar cego, uma faca luminosa cortou a pretidão daquela caixa como se removessem uma tampa. O rasgo amarelo alaranjado parecia revelar um céu vespertino bonito. Levei as mãos aos olhos, incrédulo, e percebi, para meu espanto, que estavam cobertos por uma grossa remela que os selava quase. A custo eles tentavam se abrir e eu dolorosamente arranquei cavacos daquela substância asquerosa, até eles finalmente conseguirem arregalar-se para a linda nuvem rosada que boiava pelo céu amarelo.

Estava em casa.

A casa é que não estava em casa.

Meu cão estava mais magro, mas parecia bem. A coisa rastejava até mim. Era, meu deus, os restos de um homem, usando um jaleco verde de médico. Lembrei da sensação estranha dentro de mim, agora ausente. Eles haviam tocado um mistério, ousado o que não podiam. Tive pena do pobre médico.

Ele abriu uma chaga pustulenta e sussurrou através de uma garganta dolorida:

“Não era um cálculo, você sabia! Maldito!”

Eu sabia? Sabia?

O céu amarelo foi cortado pelas asas alaranjadas de uma passarosidade. Que logo mergulhou sobre o quintal da casa. Refugiei-me dentro, o pobre médico não teve como. Mas foi uma misericórdia.

Agora vou dormir, sonhando em acordar de novo em minha vida.

E se eu tiver outra crise, não me operem.

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Assuntos: lovecraft terror