Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Alienação no Processo Criativo

Publicado em: 10/02/2016

Os autores, especialmente os mais jovens, mas não somente eles, costumam reagir com certa amargura quando o tema “alienação” é colocado em discussão. A ideia de que o conceito sequer exista ou possa ser aplicado à literatura lhes parece ofensiva, como se alguns autores quisessem colocar-se em um pedestal moral — o que nunca é simpático. Essa reação instintiva ao conceito de alienação reflete uma dificuldade para refletir sobre o próprio fazer literário, que é, em grande parte, causada pela generalizada ignorância daqueles que querem escrever a respeito dos aspectos teóricos e técnicos do fazer literário. Em suma: como o autor sequer sabe o que é alienação e de que formas ela deve ser abordada, ele se deixa contaminar por preconceitos e ilusões que o levam a atirar no mensageiro… ou seja, naquele autor que tenta trazer o tema ao debate.

Para que alguns autores não fiquem pensando que debater sobre alienação é uma forma de menosprezá-los e outros não se sintam de alguma forma “melhores” por apenas mencionarem o tema, vou tentar, neste artigo, levar o debate às últimas consequências, partindo das definições mais básicas.

Lembrando que isso não quer dizer que você não possa escrever ou consumir coisas do exterior. A história é sua, a preferência é sua e você escreve, lê ou assiste a merda que quiser.1

Esses garotos precisam parar para pensar que uma proposta de debate é um convite a pensar, não uma censura. Se você se sente intimidado pelos outros estarem pensando, é porque você provavelmente não está.

E é parede de texto, sim. Não tá a fim de ler, vai assistir meia hora de Big Brother e não encha a minha paciência.

Conceitos Originais

Comecemos por um conselho: descarte o dicionário. Normalmente o dicionário é uma ferramenta útil para o escritor, ao permitir-lhe conhecer melhor os sentidos das palavras que emprega. Porém, ele deixa de ser útil em duas situações:

No primeiro caso o dicionário é desaconselhável porque ele apresenta as palavras sem contexto, não oferecendo um conhecimento orgânico delas. Autores que catam palavras em dicionários não conseguem utilizá-las com propriedade e facilmente caem no ridículo ou na ostentação vazia. No segundo, o dicionário é perigoso porque, pela sua própria natureza, ele é forçado a oferecer definições curtas e superficiais; que podem ser úteis para uma referência rápida, mas não proporcionam a profundidade de que se precisa para realmente entender um conceito além do óbvio.

A Alienação Segundo Marx

O termo alienação deriva de Karl Marx — e talvez por isso seja tão criticado e rejeitado nesses tempos de debate político tão carregado. Porém, a discordância em relação à ideologia do autor não tem a mais remota importância como julgamento da validade dos conceitos que ele propõe. Julgar em bloco a obra de alguém a partir um posicionamento político é burrice (e aqui, sim, eu pretendo ofender).

Para Marx, a alienação seria a separação entre o trabalhador e o fruto de seu trabalho. Ela pode ser entendida melhor quando analisamos, por exemplo, a situação de um operário em uma fábrica. Os bens produzidos ali não pertencem a nenhum trabalhador em particular, ou mesmo ao conjunto dos trabalhadores. Tudo o que a fábrica produz pertence ao seu proprietário. Esta situação ocorre porque os trabalhadores apenas alugam a sua força de trabalho, mas os bens de capital (máquinas, prédios, etc.), estes chamados por Marx de “meios de produção”, pertencem ao dono da fábrica.

Observe que o conceito de alienação em Marx é absolutamente incontroverso: a menos que você queira afirmar que, sim, os trabalhadores são donos do que produzem, não lhe resta alternativa senão aceitar que é característica do capitalismo que o trabalhador não possua e nem controle o resultado de seu trabalho. Você pode, por razões ideológicas, afirmar que essa falta de controle não é relevante, que ela não necessariamente seja injusta ou retire do trabalhador a sua autonomia, mas a separação em si, a “alienação”, é um fato real.

Caso você não seja capaz de admitir a realidade do conceito acima explicado, recomendo fortemente que não leia o resto, pois o artigo tende a levá-lo para cada vez mais longe do seguro cercadinho intelectual em que vive.

Outras Formas de Alienação

Além da alienação enquanto conceito econômico, proposto por Marx, temos outros dois conceitos análogos, a “alienação mental” e a “alienação cultural”.

Do primeiro, que é quase tão antigo quanto Marx, talvez até mais, quase nada falaremos pois ele não interessa tanto a esse artigo, que é sobre alienação cultural. Sobre ele, basta dizer que, assim como a alienação econômica implica na transferência a outrem do controle e/ou da propriedade do produto do próprio trabalho, a alienação mental implica na transferência do controle sobre a própria mente a uma força externa. No caso, a medicina e os tratamentos que esta propõe para remediar a aflição do paciente.

A alienação cultural, por sua vez, seria a separação do indivíduo em relação à própria identidade, tornando-o incapaz de uma relação crítica com o mundo. Sobre ela é que falaremos mais a seguir.

A Alienação Não Significa Falta de Caráter

É muito importante dizer, neste ponto já não tão prematuro, que debater alienação não é uma forma de menosprezo. Eu não poderia ter escrito isso antes, sem explicar os conceitos de alienação, porque existe uma opinião preconceituosa, principalmente entre os que se julgam não alienados, de que ser ou não alienado é algo que pode ser objeto de algum tipo de juízo de valor. Não é.

Ser alienado não é ser intelectual nem moralmente inferior, é simplesmente não ter autonomia, é ter uma relação de subordinação em relação a um “outro” (alies, em latim) que efetivamente detém o poder que lhe é negado pelo sistema. Não ser alienado não significa ser “melhor” ou “maior” porque não existe tal criatura iluminada: no sistema capitalista somos todos em alguma medida alienados. O que nos diferencia é nossa atitude perante o status quo.

Como Ocorreu a Alienação

Marx acreditava, e eu concordo com ele, que a alienação ocorreu como consequência do desenvolvimento dos sistemas de produção em massa. Antes disso, o trabalhador (qualquer trabalhador, posto que o literato é um “operário das letras” tanto quanto o peão de fábrica é um “operário das máquinas”) controlava não somente a posse do produto de seu trabalho mas também, e isso é importante, o ritmo da produção e a qualidade do que se produzia.

No entanto, o crescimento populacional e a necessidade de oferecer mercadorias em quantidade maior e a preço menor para atender a toda essa gente significaram uma pressão para a economia de escala. Inicialmente os artesãos individuais se organizaram em guildas, que posteriormente se transformaram em oficinas coletivas, em manufaturas e, por fim, em fábricas. Os membros das guildas eram teoricamente iguais (inclusive na posse das ferramentas), os participantes de uma oficina coletiva ainda eram iguais (ainda que as ferramentas fossem compradas de forma centralizada, a partir de suas contribuições individuais), os empregados das manufaturas já não estavam em condições de igualdade (porque já obedeciam ao ritmo e às especificações determinadas pelo proprietário da oficina) e os trabalhadores das fábricas, por fim, já não são nada iguais porque nada controlam, sequer podem ir ao banheiro sem pedir licença.

A alienação mental, obviamente, não decorre de nenhuma mudança econômica, ainda que, em muitos casos, a situação social e econômica leve alguns indivíduos ao desespero e à loucura. Mas a alienação cultural decorre de um processo semelhante ao da econômica, e é por isso que este é um conceito mais facilmente análogo ao original.

Aprofundando o Conceito

A alienação cultural pode ser entendida como a ruptura da identidade do indivíduo, causada por uma situação na qual ele é forçado a deixar de se ver como parte da própria comunidade. É um fenômeno relativamente recente, que pode ser entendido como resultante da chamada “globalização”.

Segundo Marshall McLuhan, a globalização teria o potencial de criar uma esfera cultural (a “aldeia global”) que existiria à parte das culturas individuais. Indivíduos por demais imersos na “aldeia global” se afastariam de suas identidades originais e se tornariam “cidadãos do mundo”. Ocorre que, diferentemente do que McLuhan acreditava, algo ingenuamente, a aldeia global é um espaço de exercício da hegemonia cultural de alguns povos sobre outros. Nela não somos todos igualmente cidadãos. Para a maioria das pessoas, aquelas especialmente originárias dos chamados “países periféricos”, o ingresso na “aldeia global” somente pode ocorrer mediante a adoção unilateral de valores diferentes daqueles pertencentes à sua cultura original. A “aldeia global” não está tão interessada em você quanto você está interessado nela.

Essa relação assimétrica entre você, indivíduo, e a “aldeia global” é a causadora da alienação, pois você, para ser aceito como “cidadão do mundo”, deve remover de si, mesmo que transitoriamente, nos momentos em que estiver interagindo com os demais “aldeões”, os traços que lhe são originários e peculiares. Em busca da aprovação do “outro” representado pela coletividade da “aldeia global”, você se adapta e deixa, mesmo que somente em aparência, de ser quem era.

Nesse processo você transfere o controle de sua própria identidade para um ente externo. Para ser aceito você precisa deixar de ser quem é. Se não gostam de seu cabelo, mude-o ou pinte-o. Se não gostam de sua língua, aprenda outra. Se não gostam de sua roupa, adote outra. O “você” que transita na aldeia global é um outro ser, construído a partir dos valores e percepções de outras pessoas a respeito do que seria o verdadeiro cidadão global. Este outro ser não é realmente você, mas um “você” entre aspas.

Percebe que, se consideramos que a palavra “alienação” deriva de uma raiz latina que significa “outro”, esta “outrificação” que o leva a criar um “você” globalizado é um processo alienante. A essência da alienação cultural é essa construção de uma identidade ditada pela globalização, que se sobrepõe à identidade original sua.

Estratégias de Negação

Antes de prosseguir, é preciso entender que ninguém gosta de ser chamado de “alienado”, por mais que o conceito tenha a intenção de ser meramente descritivo, em vez de ofensivo. Por causa disso surgiram muitos argumentos de negação utilizados para desqualificar a acusação.

Exotismo

Este argumento se baseia na longa tradição de exotismo existente na literatura ocidental. Desde praticamente o período medieval a literatura de viagens, primeira manifestação do exótico, alimentou a imaginação europeia. Seríamos herdeiros desta tradição, na qual um francês (Bizet) escreve uma ópera sobre a Espanha (Carmem), um austríaco (Mozart) escreve outra sobre a Itália (Don Giovanni), um inglês (Rudyard Kipling) escreve sobre a Índia (toda a sua obra) e um brasileiro (Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan) escreve sobre a Arábia.

Ocorre que o exotismo, embora contenha certos elementos comuns à alienação, não é uma forma de alienação. O exotismo é uma busca pela novidade em outra cultura, por um ato de vontade do autor, que escolhe seu tema a partir de um fascínio pessoal. O exotismo também é assimétrico, mas no sentido justamente contrário: trata-se de uma cultura que se julga superior ou igual que está contemplando outra cultura sob um prisma de admiração genuína.

Uma produção exótica pode ter duas formas: aquela que se baseia em forte pesquisa bibliográfica e de campo, e resulta em uma obra que não somente reflete, mas homenageia, a cultura alvo, e aquela que se baseia em uma idealização a partir de elementos de fácil acesso.

Escrever bem sobre um local onde você não vive é absurdamente difícil. Se hoje eu decidir escrever sobre a Espanha, eu estou fodido, mesmo sabendo mais ou menos como a Espanha funciona.2

A alienação seria o contrário: uma cultura em posição subalterna contempla outra como modelo por uma falta de ressonância com a própria identidade:

Eu por exemplo, não gosto daqui e não me sinto confortável escrevendo sobre coisas daqui, por isso não o faço. Isso não quer dizer que eu sou um adorador da cultura americana e “Brasil lixo, país bom mesmo são os EUA”… É conveniência mesmo.3

Globalização

Uma coisa que acho curiosa: Há todo um discurso em relação à globalização, não existem mais fronteiras etc. mas quando o coleguinha vai escrever é sempre EUA-Inglaterra-França, mas principalmente os cenários de Hollywood pasteurizados. O.K., as fronteiras foram abolidas e você só se esconde embaixo da asa dos filmes pop de cinema?4

A globalização, como já foi dito, se baseia na ideologia da “aldeia global” de McLuhan. Ocorre que nem todos os cidadãos dessa entidade estão em igualdade. Alguns se encontram em posições culturalmente dominantes, por serem parte de culturas amplamente difundidas (e mesmo entre eles existem os que se sentem alienados do discurso dominante) e outros estão em posições subalternizadas, por serem partes de cultura que se relacionam de forma assimétrica com o centro.

Dito de forma mais simples: a ideologia, os valores e a cultura da aldeia global são construídos de forma desproporcional, privilegiando algumas culturas (ocidental, algo-saxônica) em detrimento das demais.

Falar em alienação cultural é reconhecer isto e buscar um posicionamento.

Liberdade criativa

Para alguns jovens autores, a própria proposta da “alienação” como um problema é uma tentativa de cassar-lhes a liberdade criativa, tal como esta resposta:

Sinceramente, não entendo a razão de postagens como este que vem imbuídos de “verdades definitivas”. Porque nós vivemos no Brasil, mas antes de mais nada somos terráqueos, podemos escrever sobre qualquer aspecto e lugar do nosso planeta que é válido. Autores estrangeiros também escrevem sobre o Brasil, por exemplo, e não os vejo sendo criticados por isso — pelo contrário. Agora, ser tachado de alienado porque os personagens da história não são cariocas ou porque a história não se passa na Amazônia, isso sim acho alienação: o mundo é grande, tem muita história pairando por aí. Se você encontrou uma bela história que se passa no Pará, lindo! Se por um acaso o cenário perfeito for no México, por que não? Ah, gente, a vida é curta para sermos tão limitados.5

Este é um questionamento significativo, que precisa ser melhor abordado. Por um lado, existe a questão do exotismo brasileiro, que merece uma seção à parte, por outro, faz-se referência ao exotismo propriamente dito e, por fim, a ideia de que a liberdade criativa cancela o aspecto alienante. Não se trata disso. A verdadeira liberdade criativa realmente existe quando o autor é livre para escrever sobre o Brasil, o México, Marte, a Bósnia-Herzegovina ou Verdúria. Mas ela não existe de fato quando uma parcela importante dos novos autores escreve sobre um cenário anglo-saxônico semelhante ao propagado pela cultura pop. Deixa de ser liberdade e passa a ser condicionamento.

Só queria acrescentar que, baseado na citação da postagem, ser alienado, no sentido de não procurar um mundo autêntico ou de ter vergonha de sua realidade, não é necessariamente ruim. Toda arte de vanguarda é de certo modo alienada, não?6

Quando a ideia de alienação cultural é proposta em um contexto de debate sobre literatura, o que se quer não é ridicularizar o que alguém em particular esteja escrevendo, mas convidar os autores a refletirem sobre os valores que perpetuam e sobre a própria relação com a cultura que consomem. Ver nisso uma censura é uma manifestação de aversão à intelectualidade. Tampouco se quer negar o valor da obra de arte alienada enquanto arte. O que se questiona é se a arte deve ir além da arte ou limitar-se ao aspecto técnico, entre outras coisas, como, por exemplo, a relação assimétrica entre a arte alienada e os modelos que copia.

Superioridade intelectual

Para outros, a proposição do conceito de “alienação” revelaria um posicionamento de superioridade, seria uma forma de “arrotar grandeza” ou “cagar regras”, ou mesmo falta de humildade. Da mesma forma que a negação anterior, esta se baseia no irracionalismo e na anti-intelectualidade (posições que não combinam com um produtor de cultura).

Em primeiro lugar, superioridade não se reivindica, se demonstra. Quando uma pessoa evidencia possuir mais formação, conhecimento e técnica, ela não está “se fazendo de superior”, ela efetivamente o é. A falta de humildade não está em qualquer tipo de afirmação embasada, mas está em rejeitar o diálogo com aqueles que têm algo a ensinar.

Mesmo porque, conforme dito lá no início, o conceito de alienação não foi criado para humilhar ninguém, mas para descrever um fato das relações humanas. Citar este fato não é uma forma de se mostrar superior, mas um convite a uma tentativa de entender melhor o mundo e nosso lugar nele. Uma vez mais: rejeitar este convite é fechar-se à reflexão.

Você não é índio para ser nacionalista

Este argumento é um ataque pessoal abusivo (ad hominem) do tipo compartilhamento da culpa (tu quoque). Encontrar este tipo de argumento em um debate costuma ser muito desagradável, porque geralmente significa que a pessoa que o usa abandonou completamente a pretensão de racionalidade argumentativa e passou para a agressão.

A ideia é de que somente os índios seriam realmente nacionais e nós, por sermos descendentes de colonos, não temos o direito a uma identidade, que precisamos permanecer presos a uma lógica colonizadora. Normalmente eu não transcreveria um argumento do tipo, porque não há mérito a se reconhecer em quem o emprega, mas há vezes em que a argumentação vem bem disfarçada, quase se podendo ignorar a falácia:

O ponto da Globalização é uma realidade mesmo. Bem como, a meu ver, é importante salientar a miscigenação. Acredito que só os índios — e olha lá — são brasileiros de fato puros. Todos nós temos raízes ancestrais em outros países, ao redor do globo.7

A refutação mais simples deste “argumento” é que a identidade cultural não é uma questão racial, mas uma forma do indivíduo construir a sua relação com o mundo. Além disso, a alienação não se manifesta exclusivamente naquilo que vulgarmente se chama “colonização cultural”, mas, de uma forma mais relevante, na perda de uma capacidade crítica em relação ao mundo. Desta forma, este ataque pessoal pode ser, também, entendido como um desvio de algo (falácia do espantalho).

Gosto não se discute

Este é um dos anti-argumentos mais utilizados para negar o valor da crítica literária. Baseia-se na presunção de que não há e nem pode haver critérios objetivos para avaliar uma obra de arte e, portanto, a crítica se exerce como uma forma de censura ou preconceito, que é preciso abolir.

Mas eu não teria dito melhor que isso:

Quando uma quantidade enorme de escritores escreve dessa forma bizarra, há um padrão. Logo: há um condicionamento, uma padronização da subjetividade.

Significa que você não se conhece a si mesmo.
Significa que você não tem gosto próprio.
Significa que sua subjetividade é adestrada.
Significa que é alienado,
Pensamento e vontades de quem acha que “decidiu gostar”,
mas não: são parte de um adestramento geral de postura.8

O gosto é livre, realmente. A crítica não tem o poder de demover as pessoas de gostarem do que gostam — e nem tem esse objetivo. Vociferar contra a crítica por expressar a sua opinião é um comportamento bizarro. Assim como você tem o direito de gostar do que gosta, o crítico tem o direito de não gostar. Se a sua experiência de gostar é de alguma forma afetada pelo fato de alguém não gostar, então há algo muito estranho em sua relação com as coisas de que gosta.

A Alienação como Problema

O indivíduo que somente existe como um constructo ditado pela expectativa dos outros sobre o que ele deveria ser é um indivíduo que não é mais capaz de fazer escolhas informadas, ele escolhe, em vez disso, aquilo que lhe dará mais aceitação perante o outro. Tão grave é essa perda de autonomia (“alienação”) que o indivíduo gradualmente se afasta da própria cultura e se sente mais próximo da cultura global, ainda que subalternizado, visto que nela ele não tem o poder de escolher a própria identidade, mas apenas a obrigação de se adequar a um papel previamente determinado.

O problema que existe na alienação é bastante óbvio: ela significa um genocídio cultural quando ela avança significativamente no seio da sociedade. À medida que as pessoas adotam essa personalidade global, perdem suas especificidades. Isto, em si, não seria grande problema se junto com essas especificidades não fosse também perdida a capacidade de autorreflexão e autorreconhecimento.

A perda destas capacidades significa que o indivíduo se torna instrumento de um ente externo, pessoas, governos, culturas, memes. O indivíduo culturalmente alienado não é um cidadão de seu próprio país e nem um membro pleno de sua própria comunidade, mas um quinta-coluna de um sistema externo.

É impossível falar em alienação sem recair no aspecto político, visto que o termo traz em seu bojo a ideia da luta de classes, apenas transposta para outro contexto. Este contexto, por sua vez, deriva de outra elaboração neomarxista: a divisão internacional do trabalho.

O autor, enquanto membro de uma coletividade cultural e política, não tem como fugir a um posicionamento político face à realidade da alienação. Ele deve enfrentá-la ou deve aceitar-se submisso.

Importante ressaltar que o enfrentamento não precisa se fazer por um ato político ou mesmo por uma valorização nacionalista. Dificilmente alguém chamaria Jorge Luis Borges de um autor alienado, e no entanto as suas obras possuem uma universalidade que muitas vezes escapa aos limites da sociedade argentina. Borges não escreveu uma literatura nacional argentina, mas foi um argentino que escreveu uma literatura universal. Além disso, conservador e até reacionário que era, nunca teria usado termos como “alienação”. Ainda assim, é um exemplo de posicionamento possível face ao fenômeno da alienação.

Basicamente o que se quer dizer é que você não precisa sonhar em entrar no trem da civilização para viajar de terceira classe.

Abordando a Alienação

Se o alienado é vítima, não vilão, seria injusto declará-lo como o inimigo. Se a “aldeia global” é um fato dado, precisamos de uma estratégia para coexistir com ela e, possivelmente, fazer uso dela para negar os efeitos mais profundos da alienação. Seria imprático sonhar, como os comunistas, com a tomada revolucionária dos meios de produção capitalista. Isto faz ainda menos sentido na cultura do que na economia.

Gostei muito de ler as reflexões de vocês. Com certeza serão respeitosamente ignoradas em meus textos.9

Existem somente três possíveis posições diante do fato dado da alienação cultural:

Negação

Não tendo argumentos contra o conceito bem apresentado, o autor parte para a afirmativa de que nada faz sentido, já que combater uma coisa é o mesmo que se aliar a ela:

“Toda vez que leio ou ouço a palavra”alienação”, me lembro de que a desalienação também aliena, e quantos estão alienados na ideia de não serem/estarem alienados. Enfim, tudo é alienação, ou como diria o outro sábio: ‘tudo é vaidade’“.10

A negação é uma ilusão de que a alienação não existe ou não é viável qualquer resistência. Render-se é o caminho de menor esforço.

Adesão

Aqui temos a aceitação de que a alienação é algo desejável, o que só se explica por um grau avançado de alienação, no qual o autor nunca chegou a ter real consciência de si, e de tal forma que a sua própria identidade já é alienada de sua cultura. Ou, alternativamente, que o autor se sente mais ameaçado pelo questionamento do que por sua posição subalternizada.

Reação

Não é necessariamente uma postura revolucionária, mesmo porque seria besteira imaginar a literatura como uma ferramenta de luta popular, mesmo que você seja um comunista comedor de criancinhas. A reação diante da alienação pode ser de várias formas, inclusive a mais bem sucedida delas é a busca de brechas no sistema através das quais inserir debates reais e temas periféricos, como uma cunha no consenso globalizado, o que significará a nossa contribuição à aldeia global — como o fez Jorge Luis Borges. Felizmente, a aldeia global não é refratária a novas contribuições, apenas impõe condições.

De fato pode ser mais produtivo agir assim do que abraçar o aspecto nacional, produzindo que já se chamou “macumba para turista”.

Exotismo Nacional

Quando falamos em “macumba para turista” estamos nos referindo às manifestações culturais que apelam para o senso exótico de consumidores estrangeiros. É uma estilização do nacional segundo um filtro alienado. Uma obra baseada na cultura nacional, mas assim baseada apenas porque o autor achou que seria conveniente conforme o mercado literário é tão alienada quanto qualquer novelinha ambientada em New York.

O conceito de alienação não se confunde com nacionalismo (é preciso repetir várias vezes, e ainda assim haverá quem martele isso). Reagir à alienação não é escrever sobre pretos velhos e cangaceiros, é tentar oferecer a própria contribuição à literatura em vez de apenas regurgitar o que a cultura pop nos envia.

Proposta

Tal como, nas palavras de Marx, “o trabalhador nada tem a perder senão as suas correntes”, o autor alienado, ao se propor a reagir, nada tem a perder senão a ilusão da criatividade, que é o grande grilhão que escraviza a todos nós. A ilusão da criatividade significa o pensamento ingênuo segundo o qual o que nós criamos é original, novo e interessa à aldeia global. A ilusão de criatividade vai de braços dados com a expectativa de aceitação fácil.

Uma vez arrancando de nós estas ilusões, passemos a produzir uma literatura mais reflexiva, mais baseada em questões reais (ainda que situada em reinos de fantasia) e mais culturalmente enriquecedora.

E paremos, principalmente, de criar tribos e partidos em torno de coisas secundárias. A literatura já é um desafio suficientemente grande para todos nós, não precisamos, Sísifos que já somos, escolher pedras maiores ou morros mais íngremes para empurrá-las até em cima.

Através da interação produtiva e de uma posição mutuamente respeitosa, mesmo quando for preciso mandar alguém àquele lugar, devemos buscar criar um espaço nosso na aldeia global. É possível. Até a Islândia, com menos de 300.000 habitantes, está conseguindo. Não é possível que sejamos, coletivamente, tão inúteis a pontos de sermos menos relevantes que a Islândia.

Eu tenho outra teoria para quem prefere escrever sobre o exterior: é mais fácil e mais comestível. Não que eu critique isso. Mas é uma zona de conforto, sim. Escrever sobre o Brasil pode ser um grande desafio para algumas pessoas passivo-culturais que esperam a cultura chegar até elas, e sabemos que a cultura americana é mais eficiente nesse quesito.11

Não conseguiremos ser melhores que a Islândia se não superarmos a ingenuidade. Se não reconhecermos que a aldeia global nos condiciona e nos massacra e que precisamos encontrar caminhos para, diante de tantas mordaças, dizer, gritar, ou mesmo apenas murmurar, aquilo que precisamos dizer.

Agradecimentos e Notas

Todas as citações usadas foram submetidas a correção ortográfica e gramatical, bem como adaptadas ao padrão de linguagem deste texto, a fim de não ridicularizarem seus autores. Eventuais alterações não tiveram, porém, o objetivo de deturpar a intenção do autor. Se você foi citado e acha que o texto não faz jus ao que pretendeu dizer, por favor deixe um comentário com a sua reclamação e eu mudarei o texto de forma a satisfazê-lo.


  1. Megumi Xing↩︎

  2. Rodrigo Oliveira↩︎

  3. Rodrigo Oliveira↩︎

  4. Arthur Duarte↩︎

  5. Felipe Henrique Peixoto↩︎

  6. Joel Machado Júnior↩︎

  7. Felipe Henrique Peixoto↩︎

  8. João Paulo da Síria↩︎

  9. Lucas Rocha↩︎

  10. Bruno Ferreira Anastácio↩︎

  11. Lucas Rocha↩︎

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