Veja bem. Há uma quantidade limitada de elementos possíveis na ficção. Cabe ao autor utilizar esses elementos de uma forma sábia, para construir uma história legal. Eventualmente você pode até descobrir um elemento novo, mas não veja isso como obrigação.
Aqueles que propõem a Jornada do Herói como um paradigma obrigatório estão, porém, muito errados.
Comecemos pelo óbvio: impor a Jornada como um método para construção de narrativas significa criar uma receita de bolo, abolir a criatividade do autor, enfiar todo mundo numa forma.
Se uma história pode ser criada apenas seguindo um esquema, então para que o autor é necessário?
Você já entendeu que quando idolatra a Jornada você está diminuindo o seu papel e desvalorizando o seu trabalho? Já entendeu ou quer que eu desenhe?
Existem vários problemas com a Jornada, alguns dos quais eu já abordei em uma série de artigos anteriores aqui do blog, mas é impossível falar sobre ela sem lembrar de mais problemas.
Um desses problemas é o conservadorismo religioso. A Jornada se baseia em mitos. Mitos são a religião que ninguém mais segue (essa é, basicamente, a única diferença entre mito e religião). Isso quer dizer que ela é esquemática porque os mitos foram originalmente pensados como uma explicação teológica da natureza. O herói tem um papel religioso. Nas histórias mais antigas, ele encarna um povo. Muitas vezes o herói é uma espécie de cordeiro sacrificial.
O esquemão da Jornada explora, assim, os elementos mais profundos do cérebro humano, os centros mais primitivos do instinto. Dizer que isso é conservadorismo é até eufemismo.
A Jornada acaba se revelando machista (mesmo se o personagem é mulher) porque o herói é um paradigma de homem. A heroína é apenas um arquétipo masculino de gênero invertido. A Jornada é um reflexo do patriarcado. Ela expressa os valores das religiões criadas para justificar uma cultura machista.
Deveria soar alguns alarmes na cabeça das pessoas quando são aconselhadas a pensar suas histórias segundo os mesmos paradigmas dos mitos gregos, mesopotâmicos, egípcios, etc. Afinal, estas mesmas pessoas não seguiriam a medicina desses povos e certamente acreditam que sua matemática ou arquitetura não servem mais para nós. Por que o modelo mental dos antigos ainda serve?
Serve porque alguém descobriu que estruturar histórias segundo este modelo dá dinheiro. Não importa se também perpetua o atraso e divulga valores da Idade da Pedra, atrapalhando a mudança das relações sociais. Dinheiro lava tudo.
Mas um dos papeis da literatura é questionar. É revolucionar. Enquanto autor, você tem uma certa responsabilidade de não ser parte de um rebanho tocado por algum pastor, ou por instintos arcaicos. Você é um ser humano, dotado de um telencéfalo altamente desenvolvido (“Ilha das Flores”) e de capacidade de abstração. Você deveria ser capaz de fazer mais do que seguir receitas. Deveria ter coragem de ir a lugares diferentes daqueles aonde todo mundo vai.
A Jornada do Herói é uma prisão mental na qual muitos jovens autores voluntariamente se encastelam, na ilusão de que vão ganhar tanto dinheiro quanto George Lucas se fizerem o que George Lucas supostamente fez.
Quando essa modinha passar, terá deixado um grande deserto na literatura do século XXI, um grande deserto no qual as verdadeiras vozes e os verdadeiros dilemas de nossa época não foram testemunhados pela literatura, que estava mais ocupada em narrar estruturas do tempo em que o homem da caverna caçava mamute com pedra pontuda.