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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Como Seria a Vida sob o Comunismo?

Publicado em: 06/10/2016

O artigo a seguir é um exercício de imaginação, baseado nas obras de Karl Mark e Lênin. Não se trata de uma descrição da vida na União Soviética porque esta jamais atingiu o estágio do “comunismo ideal”, embora tenha sido o estado que dele mais se aproximou. Algumas das coisas citadas aqui existiram na União Soviética, outras nunca saíram da teoria revolucionária. A diferença entre uma e outra eu deixo como um exercício para o leitor interessado.

Esta foi originalmente uma resposta que dei a uma pergunta no Quora.com. Alguns usuários que foram cidadãos da União Soviética fizeram certos comentários que eu levei em conta para aperfeiçoar a resposta. Um destes comentários em especial lembrou que o “comunismo ideal” seria um estágio pós-civilizado, que ele não poderia coexistir com o estado, nem mesmo um estado mantido sob a “ditadura do proletariado”. Não mudei o título do artigo, por amor da polêmica que a palavra “comunismo” atrai (e certamente este artigo em algum momento receberá comentários cheios de ira e de espírito cruzado feitos por pessoas que não tiveram tempo de ler mais que o título…). Porém, neste segundo parágrafo eu ressalvo o que os russos me contaram: a sociedade aqui descrita, efetivamente muito parecida com o que realmente existiu na União Soviética, exceto em detalhes e em dois ou três tópicos, deveria ser chamada de “socialista” em vez de “comunista”.

Meu objetivo aqui não é nem defender e nem atacar o comunismo ou o socialismo, mas meramente entender e explicar em nome do que os socialistas e comunistas travam suas lutas. Alguns leitores considerarão que eu descrevi uma utopia. Outros se horrorizarão, dizendo que é a mais horrível das distopias. Certamente há muita coisa aqui que é desejável em qualquer sociedade, e os comunistas as quererem não diminuiu o seu valor. Outras certamente são indesejáveis e nenhuma contorção ideológica as dourará.

Fase Inicial: Ditadura do Proletariado

Marx de fato não sabia como seria uma sociedade comunista. Ele teorizou a respeito, mas nunca chegou a detalhes porque estava muito mais ocupado tentando entender o capitalismo do que propondo utopias. Marx era um homem de ideias práticas, não um “sonhático”. A falta de dados em Marx é a principal razão pela qual surgiram depois diferentes interpretações de socialismo e comunismo: os marxistas tentaram preencher as lacunas, frequentemente empregando fontes e métodos menos racionais e científicos que os de Marx, de que resultaram “desvios” doutrinários (como a social-democracia, fascismo e revolução islâmica) e os “revisionismos” (trotskismo, stalinismo, maoismo, eurocomunismo, ideologia juche e socialistas não alinhados).

Para fins de minha resposta eu estou considerando somente o marxismo ortodoxo (as obras do próprio Marx) e o marxismo-leninismo (que não é ortodoxo, mas não apresenta desvios doutrinários, apenas práticos). Minha resposta se baseia nas seguintes fontes:

Comecemos pela fase de implantação do comunismo. Segundo Marx isto só poderia acontecer depois do triunfo de uma revolução, que tomaria o poder do estado burguês e o poria nas mãos de um partido revolucionário. Então teria início a “ditadura do proletariado”, cujo objetivo central é desmontar as bases do estado burguês para criar um estado socialista. Isto seria tentado da seguinte forma:

  1. Abolindo a propriedade privada da terra e destinando toda a renda das terras públicas para fins públicos.
  2. Adotando um imposto de renda pesadamente progressivo a fim de lentamente expropriar as classes mais abastadas.
  3. Abolindo o direito absoluto de herança, substituindo-o por um sistema no qual ainda é possível legar bens (móveis principalmente) e direitos aos sucessores, mas mediante certas condições (das quais falaremos depois).
  4. Confiscando a propriedade de todos os emigrados e dos que resistam à implantação do socialismo.
  5. Centralizando todo o crédito nas mãos do estado, criando um banco nacional controlado pelo estado e com monopólio da atividade bancária.
  6. Centralizando os meios de comunicação e de transporte sob controle do estado.
  7. Investindo em fábricas e meios de produção pertencentes ao estado, abertura de fronteiras agrícolas em terras devolutas e desenvolvimento do solo conforme um planejamento racional.
  8. Determinando uma obrigação universal ao trabalho e estabelecendo “exércitos industriosos”, especialmente para a agricultura.
  9. Combinando a agricultura com a indústria manufatureira, abolindo gradualmente a diferença entre campo e cidade através de uma uma mais igual distribuição da população pelo país.
  10. Garantindo educação gratuita e universal para todas as crianças, em escolas públicas e abolindo o trabalho infantil. A educação se basearia na sinergia entre estudo e produção.

Estas medidas, pensadas no contexto da Revolução Industrial do século XIX, eram tremendamente avançadas e contribuíram para grandes progressos dos direitos trabalhistas. A própria ideia de educação universal surge por influência do socialismo.

Comentários sobre a Ditadura do Proletariado

Agora comentemos cada uma dessas ideias para entender seu significado e suas consequências:

  1. Isto é o que é comumente entendido como a “coletivização” da propriedade imobiliária. Como a agricultura produz alimento para toda a população, ela não deve ser explorada apenas para fins econômicos, mas deve ser destinada ao bem comum. Um estado comunista provavelmente incorporaria toda a terra arável em unidades como os kibbutzim e moshavim de Israel ou os kolkhoz e sovkhoz da antiga União Soviética.
  2. Esse imposto de renda é claramente uma medida transitória: uma vez alcançado o objetivo de diminuir a desigualdade, o caráter agressivo do imposto poderia ser atenuado. Isto porque um tal imposto não faria sentido se todos ganhassem igual (política da “panela de ferro”, adotada na Revolução Chinesa). Podemos concluir, então, que um estado socialista ainda toleraria diferentes salários, embora a diferença de renda entre os mais e menos bem pagos seja menor, muito menor, do que a conhecemos. A ideia de diminuir a desigualdade através do imposto não é realmente brilhante e nem funcional. Nada impediria que sucessivas gerações de uma mesma família ocupando cargos de rendimento maior levasse os membros de tal clã a terem mais cultura, mais propriedades e mais poder do que a média da população. Então haveria a necessidade de outras medidas além do imposto — medidas que talvez o tornassem desnecessário. Uma das maneiras de evitar essa concentração (que de fato aconteceu na União Soviética) seria um sistema fortemente meritocrático de seleção de talentos. Seria preciso garantir educação igual e de alta qualidade para todos e manter abertas oportunidades de carreira sem fazer distinção de origem social e sem nepotismo. O nepotismo seria um problema, pois tenderia a dissolver os efeitos de tais políticas. Na União Soviética, a política meritocrática permitiu a filhos de pessoas humildes ascender a altos cargos políticos e se tornarem personalidades.
  3. Esta é uma medida mais efetiva para impedir a acumulação de riqueza entre membros de uma mesma família. A proibição se aplica principalmente à propriedade imobiliária (a visão de mundo de Marx era um tanto limitada porque em seu tempo não havia tantas categorias de propriedade quanto hoje), mas podemos extrapolar para outros campos. Provavelmente não haveria restrições a herança de bens móveis, como joias, eletrodomésticos, utensílios, ferramentas, dinheiro vivo, livros, roupas, mobília, automóveis, obras de arte etc. Porém, considerando que o direito de herança não seria uma pedra fundamental do direito civil, tais heranças seriam geralmente informais, toleradas pelo estado, possivelmente até reguladas dentro de bases mínimas, mas jamais asseguradas. O que se sabe é que uma família não poderia possuir duas residências, mas poderia acumular uma residência urbana e uma chácara (dacha). O estado proveria apartamentos para os que não possuíssem casas próprias, mas estes apartamentos teriam de ser desocupados no caso de o residente herdar uma casa, alternativamente o herdeiro poderia vender a casa herdada, dentro de um ano, para permanecer no apartamento. O mesmo prazo de venda se aplicaria no caso de herdar uma segunda casa.
  4. Isto faz sentido se você pensar que no período pós-revolucionário todo mundo que tivesse emigrado ou fugido de sua cidade de origem estaria provavelmente em rebelião contra a revolução ou tentando de alguma maneira ajudar os rebeldes. Confiscar a propriedade dos opositores da revolução é uma forma de impedir que eles financiem a guerra civil. Foi uma medida eficaz para estrangular o apoio dos russos brancos no contexto da Guerra Civil Russa. Além disso, a propriedade dos exilados, e suas rendas, poderia ser usada para corromper o sistema ou para atrair apoiadores para causas contrarrevolucionárias. Disso podemos concluir que a emigração seria fortemente desencorajada, podendo resultar em expropriação de seus bens.
  5. Como os bancos são as forças mais importantes da burguesia, Marx teorizou que ao abolir os bancos privados o estado burguês ficaria mais afastado.
  6. Para Marx, “meios de comunicação” eram os jornais, mas ele tinha alguma presciência do que hoje vivemos, pois preconizou que todos os tais meios estariam sob controle direto ou indireto do estado (os que não fossem diretamente propriedade do estado deveriam estar submetidos ao controle ideológico do estado). Marx entendeu que os meios de comunicação são ferramentas de combates ideológicos e faz sentido engar sua propriedade aos inimigos da revolução. Como todo burguês é um inimigo do estado socialista, nenhum burguês poderia possuir meios de comunicação. Por meios de comunicação Marx se referia a ferrovias, bondes e navegação, dificilmente a rodovias, que eram raras e pouco importantes em sua época. O controle estatal de ferrovias e navegação faz sentido, mas as rodovias são algo menos claro para se ter e controlar.
  7. Aqui vemos que o desenvolvimentismo faz parte do socialismo. O estado não deixaria sem uso a propriedade tomada à burguesia, mas atuaria para aproveitá-la e estendê-la. Não só em termos de produtividade, mas também em expansão real (adeus Mar de Aral). Concluímos assim que o progresso é também uma ideologia presente no socialismo.
  8. Se você já ouviu falar “de todos conforme sua capacidade, a todos conforme sua necessidade” você entende o conceito básico. Este é o resultado prático. Para que todos possam ter sua parte é exigido que todos trabalhem. Trabalhar é um dever cívico (e aqui falamos de “trabalho” no sentido literal, não do fazer artístico) porque todos usufruem os benefícios do trabalho alheio (saúde, educação, televisão, cadeia, polícia, programa espacial…). Enquanto, em termos gerais, isso não parece ruim, as coisas ficam um pouco menos róseas quando chegamos ao fim: “exércitos industriosos, especialmente na agricultura”. Estamos aqui falando daquelas brigadas de jovens cubanos que vão cortar cana durante a safra, por exemplo. Você pode ser designado para fazer um determinado trabalho que você não quer fazer porque a coletividade precisa que ele seja feito. Negar-se, obviamente, é uma péssima ideia, pois sugere que você é um “parasita” (termo efetivamente empregado no jargão comunista).
  9. Aqui temos uma mescla de coisas. A primeira proposta é criar uma melhor sinergia entre agricultura e indústria (não tão ruim, é isto o que a maioria das nações procura fazer, comunistas ou não: você planta tomates onde tem uma fábrica de molho por perto). A segunda, porém, pisa no território do medo. “Uma mais igual distribuição da população pelo país” é exatamente o que o Khmer Vermelho tentou fazer no Camboja, com os conhecidos resultados. Então você nem pode acusar o Khmer Vermelho de não ser ortodoxo. No máximo, deve reconhecer que a obra de Marx não é Bíblia para se levar ao pé da letra. Tentar força uma realocação populacional levaria qualquer país de volta ao século XVIII.
  10. Este é certamente o mais aclamado dos ideias comunistas (Marx foi um dos primeiros autores importantes a defender abertamente o ensino universal). Ele até concebeu as “escolas técnicas”.

Fase Intermediária: Estado Socialista

Marx em seguida diz que a dissolução final das diferenças de classe, com toda a produção concentrada nas mãos de uma “vasta associação de toda a nação”, levaria à extinção do caráter político do estado. Isto, claro, implica em completar a transição para um regime de partido único. Por isso, em todos os lugares onde o socialismo chegou ao poder através de alianças com partidos simpatizantes (“companheiros de viagem”), ocorreu um processo de fusão destes partidos ao partido socialista que liderava o processo. Assim foi na URSS, onde o POSDR (Partido Operário Democrático Socialista Russo) se transformou no PCUS (Partido Comunista da União Soviética) ao incorporar outros partidos de esquerda da Rússia e partidos socialistas de outras “repúblicas” que vieram a formar a União.

Isto aconteceria porque, segundo Marx, os diferentes partidos nada mais são do que ferramentas através das quais a burguesia organiza a divisão no seio das classes populares a fim de permitir a opressão. Sabe de onde ele tirou essa ideia?

A dominação alternada de uma facção sobre outra, agudizada pelo espírito de vingança, que é natural às dissensões partidárias, que em diferentes eras e países tem perpetuado as mais horríveis brutalidades, é ela mesma um despotismo terrível. Mas ele finalmente conduzirá a um despotismo mais formal e permanente. As desordens e misérias que resultam dele gradualmente inclinam as mentes dos homens à busca da segurança e do repouse no poder absoluto de um indivíduo; e cedo ou tarde o chefe de alguma facção prevalente, mais hábil ou mais afortunado que seus competidores, voltará esta disposição ao propósito de sua elevação pessoal, para ruína da Liberdade Pública.

Para quem não sabe, essas são palavras do discurso de despedida de George Washington da presidência da República dos Estados Unidos. Contrariamente ao que muitos pensam, Marx não era um radical em sua época, e suas ideias se baseavam no pensamento político mainstream.

Em vez de um sistema de partidos, Marx imagina que a ditadura do proletariado, ao atuar contra as distinções de classe, facilitará a extinção natural dos partidos. Se não há mais classes em conflito, não haverá partidos que as representem. Sem classes, o proletariado terá abolido a sua própria supremacia. Então, o domínio absoluto de uma classe (ditadura do proletariado) naturalmente dissolverá todas as bases do domínio absoluto até que se esqueçam as próprias idiossincrasias da luta de classes.

Parece idealismo demais? Concordo. Mas o socialismo, em toda a sua história, sempre foi mais uma meta a se perseguir, como a pureza angélica proposta por Jesus Cristo, do que um fato.

Em “Socialismo: Utópico e Científico”, Marx tenta sumarizar suas ideias a respeito desse processo de uma forma mais breve:

  1. Revolução Proletária — Solução de todas as contradições. O proletariado toma o poder público e, por meio deste, transforma os meios socializados de produção, que saem das mãos da burguesia para a propriedade pública. Através desta ação, o proletariado liberta os meios de produção do caráter de capital que eles adquiriram e dá ao seu caráter social a completa liberdade para se desenvolver. A produção socializada através de um plano predeterminado se torna então possível. O desenvolvimento da produção torna a existência de classes diferentes um anacronismo a partir de então. Proporcionalmente, à medida que a anarquia da produção social desaparece, a autoridade política do estado se esvai. O homem, finalmente o mestre de sua própria organização social, se torna simultaneamente o senhor da Natureza e o seu próprio — livre.

Combinando estes conhecimentos com a minha vaga noção de como era organizada a vida na União Soviética, assumindo também que estamos tentando prever o que teria ocorrido se todos os estágios de todas as políticas de uma revolução comunista fossem implementadas plenamente, creio que poderíamos descrever um estado comunista conforme na próxima seção.

Fase Avançada: O Estado Comunista

Alguns comentaristas soviéticos que conheceram a vida sob o regime “comunista” argumentaram que de fato esta não chega a ser uma sociedade comunista plena, mas uma forma avançada de socialismo. Este comentário serve de testemunho para dois fatos:

  1. Quão difícil é imaginar uma sociedade realmente comunista, quando vivemos em uma sociedade tão embebida de capitalismo. É um esforço equivalente ao de conceber a vida na Roma Antiga a partir de alguns poucos livros de história e alguns filmes de época.
  2. Quão difícil é atingir o estágio plenamente comunista, visto que mesmo esta exagerada tentativa de extrapolar o dito “socialismo real” em direção aos seus objetivos não conseguiu conceber uma sociedade idealmente comunista.

Feitas estas considerações, passemos a descrever a vida sob a coisa mais parecida com comunismo que eu pude imaginar, a partir das obras de Marx e Lenine.

  1. Onde quer que você tenha nascido, e sejam quais forem os seus pais, você recebeu assistência médica gratuita desde o nascimento e foi bem-nutrido porque nunca houve escassez de comida no país e os seus pais ganham o suficiente para adquirir o necessário à sua sobrevivência.
  2. Você frequentou obrigatoriamente a escola dos 4 aos 17 anos. Durante todo esse tempo a escola era em tempo integral, de oito às dezoito horas. Além de todas as matérias escolares normais que nós estudamos no Brasil (matemática, português, ciências, história etc.), você também teve educação física (com grande ênfase e geralmente com orientação militarista), arte (voltada para a identificação de talentos) e conhecimentos práticos úteis no dia a dia (jardinagem, culinária, marcenaria, mecânica, eletricidade, direção de veículos, primeiros socorros etc). Você também teve aulas de educação sexual com modelos realistas, livros bem explícitos e professores bem sinceros. As meninas aprenderam a usar pílula e outros métodos. Os meninos aprenderam a usar preservativos. As aulas foram dadas conjuntamente, para que os meninos entendam as meninas e vice-versa.
  3. Ao terminar a escola você é um autêntico McGyver, capaz de “se virar” na vida em quase todo aspecto. Você provavelmente consertará o próprio carro em uma emergência, saberá reparar instalações elétricas, cozinhará a própria comida, socorrerá um camarada acidentado e saberá dirigir tudo, de automóveis e caminhões a colheitadeiras e tanques de guerra. Isso inclui as meninas também, pois a educação é rigorosamente igualitária.
  4. Você pode se dedicar integralmente aos estudos, sem nunca precisar trabalhar para completar a renda em casa. Porém, o trabalho é parte do currículo escolar. Você provavelmente cultivou a horta escolar, consertava o prédio, varria a rua das quadras ao redor da escola e ocasionalmente “se voluntariava” para ajudar na colheita ou transporte da produção agrícola (se em cidades pequenas) ou para apoiar a produção industrial.
  5. Graças à educação sexual sem censura, quando você chega à puberdade você e todas as meninas e meninos que conhece estão no mesmo patamar de conhecimento da vida. Vocês sabem tudo o que há para saber sobre o jogo de partir corações. Mas se você e alguma garota forem bastante idiotas para ainda arranjarem uma gravidez, haverá a possibilidade de abortar de graça em uma clínica local (depois de uma severa advertência, que provavelmente resultará em sua separação obrigatória e ao envio de ambos a campos de trabalho por algumas semanas).
  6. Você nunca foi à igreja, a não ser para visitar aquelas que são museus ou que foram convertidas para uso laico e agora são bibliotecas ou teatros.
  7. Todas as cidades têm bibliotecas, escolas de balé, teatros, apresentações musicais, bailes populares etc. A vida cultural é intensa, embora um pouco careta no modo de vestir. Mas depois de tirar a roupa todo mundo deixa de ser careta.
  8. Embora não lhe seja exigido vestir um uniforme, a não ser na escola, você provavelmente se veste parecido com os seus amigos e com quase todo mundo, pois as roupas são produzidas em massa a partir de poucos modelos e cores e a moda é um conceito quase desconhecido. As pessoas lutam contra essa caretice das vestimentas fazendo seus próprios tingimentos em casa ou aprendendo a costurar suas próprias peças. Mesmo assim, a disponibilidade de tecidos e pigmentos é tão padronizada que isso pouco resulta.
  9. Apesar de ser chato vestir roupas caretas, o sistema de produção em massa citado acima resulta em peças baratíssimas que qualquer um pode comprar, então ninguém precisa usar roupas puídas ou andar mal vestido.
  10. Quando você termina a escola você já foi provavelmente identificado como um talento em certa área. Se concordar com a opinião de quem o avaliou, você terá um caminho aberto para seguir essa carreira. Infelizmente, a avaliação envolve não apenas as suas habilidades e talentos, mas também a demanda profissional do país. Isso quer dizer que em vez de ser engenheiro podem querer que você seja professor de matemática ou em vez de biólogo, um médico. O lado ruim disso é a dificuldade para seguir seus sonhos se você não aceitar o caminho sugerido (pois não há escolas ou universidades privadas) e o lado bom é que mesmo na eventualidade de só o acharem adequado para varredor de rua você ainda terá um salário digno, afinal, todo trabalho é honrado e todos ganham o bastante para viver. Então não chore, garoto…
  11. Embora não haja escolas privadas, há grupos privados de estudo por interesse, onde você encontrará pessoas que têm os mesmos objetivos seus. Nesses grupos você poderá estudar autonomamente e tentar entrar na universidade pelo seu próprio mérito (o que não está proibido, claro). Porém todos os mais brilhantes e com mais potencial JÁ estão na universidade e nesses grupos você dificilmente encontrará bons professores. Depois dos trinta anos de idade é pouco provável que você entre em uma universidade (menos provável ainda uma boa) pois o estado prioriza o desenvolvimento dos melhores talentos e você ficou como segunda ou terceira escolha. Mas o seu grupo de estudos ainda é um lugar onde você poderá aprender sobre o que gosta, mesmo não tendo muita chance de usar.
  12. Ao terminar os estudos, caso não tenha entrado para o exército ou a universidade, espera-se que você adentre a “vida civil” e vá trabalhar. Caso não o faça, será visto como um preguiçoso, um sanguessuga, um folgado, um parasita, um inimigo do povo.
  13. Há emprego para todos, embora em alguns casos os empregos sejam praticamente inúteis ou improdutivos, como o de carteiro de uma vila onde só há trinta casas, segurança de uma fábrica abandonada, dobrador de roupas em uma loja ou guarda de trânsito em uma esquina sem movimento.
  14. Você pode se casar quando quiser e com quem quiser. Isto inclui “nunca”. Mas tanto seus pais querem netos quanto o estado deseja novas gerações de cidadãos e soldados. Seu dever para com as futuras gerações lhe será lembrado, e ele começa por se tornar progenitor de alguns membros para elas.
  15. Não é uma boa ideia ser abertamente homossexual, mas o estado não ligará para o que você faz da vida depois que já tenha tido filhos.
  16. Se você é um rapaz, não achará estranho namorar uma moça que é soldado do Exército Vermelho, açougueira, metalúrgica ou motorista de tratores em uma fazenda. Se você é uma moça, não achará estranho namorar um rapaz que é dançarino de balé, florista, costureiro ou cabeleireiro. Ninguém achará estranha a carreira que você resolver seguir. Não há mais profissões “de homem” ou “de mulher”, ainda que certas profissões sejam preferidas mais por eles do que por elas, e vice-versa.
  17. O seu casamento será baseado no mútuo consentimento e se assemelhará mais a um contrato registrado em cartório (muitas vezes por prazo determinado) do que uma cerimônia. Nenhum dos cônjuges espera que o outro o obedeça e o divórcio é a coisa mais fácil do mundo. Caso o casamento se dissolva os filhos ficarão sob a responsabilidade da mãe, mas serão mantidos o dia inteiro em uma creche estatal (mais tarde na escola), e não impedirão a mãe de continuar a trabalhar. O pai poderá visitar seus filhos na creche ou escola, ou poderá passear com eles nos fins de semana.
  18. Você está acostumado à ideia de que a polícia está em todo lugar. Não somente porque há pessoas de uniforme por toda parte, mas também porque há uma rede de agentes civis à paisana que relatam por telefone o que veem. Cada quarteirão tem pelo menos dois ou três destes, e eles podem ser qualquer pessoa que não esteja entrevada em uma cama.
  19. Você está acostumado a ter amigos que trabalham em várias diferentes profissões. Os caras com quem você toma cerveja depois do trabalho incluem um paraquedista militar, um fazendeiro, um engenheiro civil, uma enfermeira, um metalúrgico, um pedreiro, um guarda de trânsito, um escritor, um professor primário e um varredor de rua. Todos vocês têm algo em comum para conversar porque frequentaram as mesmas escolas, acampamentos, fraternidades, clubes e (ocasionalmente) cadeias.
  20. Você não ganha muito, seja qual for a sua profissão, mas não se importa com isso porque não há muito que você realmente precise comprar. A lista do que recebe de graça no centro local de distribuição inclui quase tudo que importa: alimentos mais básicos, remédios de uso contínuo, uniformes profissionais. Muito do que você usa em casa é herança de seus pais ou comprado em mercados de pulgas. Você não acha que as coisas velhas são obsoletas se elas ainda funcionam bem. Alguns conhecidos seus têm carros com cinquenta anos de idade.
  21. Como não há muito com que gastar o que ganha (roupas são baratas, comida básica e remédios são de graça) e não faz sentido ficar empilhando dinheiro em casa, você provavelmente o gastará em festas e turismo. Como as jornadas de trabalho são mais curtas do que em um estado capitalista, as pessoas estão menos cansadas e as festas costumam ser arrasadoras.
  22. Festas são festas em todo lugar. Bebida, comida, música e paquera. As pessoas se vestem de um jeito careta, mas não parecem mais tão caretas quando tiram a roupa. E todo mundo sabe se prevenir de doenças, camisinhas são gratuitas e ninguém vive com medo do dia seguinte.
  23. O turismo, sim, é um problema. Você só pode viajar a outros países também comunistas. Mesmo nesse caso a viagem precisa ser bem combinada antes porque há lugares feitos para receber turistas e lugares aonde turistas não podem ir.
  24. Você provavelmente traiu sua mulher algumas vezes desde que se casaram. Ela também. E vocês não ligam para isso.
  25. Você tem muito tempo livre. Depois da jornada de trabalho, especialmente em dias de semana, não há realmente muita coisa para se fazer se você é solteiro ainda. Mas há bibliotecas, cinemas, teatros, festas, museus, e festas! Às vezes você é convocado para exercícios militares ou trabalho comunitário. Em tempos de paz, essas ocasiões costumam terminar com grandes festas também!
  26. Você não tem dívidas e mal consegue compreender o conceito. Você está acostumado a comprar coisas em prestações, mas geralmente você termina de pagar antes de receber o bem, então você não deve nada, de fato. Consumismo é algo que você estuda em livros de História e dicionários, se estuda. Muita coisa que você não possui você prefere pedir emprestado a um vizinho ou amigo.
  27. O dinheiro tem pouca função na sociedade. Muita coisa pela qual você pagaria os serviços de um profissional você mesmo faz (como consertar os vazamentos de seu banheiro, já que você estudou encanamentos na escola). Se não é bom nisso, você pede a um vizinho ou amigo que faça para você, e ele fará pela amizade ou em troca de você fazer por ele algo que você faz bem (como, talvez, consertar a janela dele, já que você é melhor marceneiro do que encanador). Por consequência disso, é possível a um “parasita” (isto é, um desempregado voluntário) viver durante anos sem ter um emprego, exclusivamente comendo a comida básica do centro de distribuição e suprindo o resto através deste sistema de troca de favores.
  28. Se ficar doente, você procura uma clínica local, mostrando sua carteira de identidade, e pede tratamento. Você talvez seja atendido por um ex colega de escola ou por um cara com quem você já tomou cerveja no bar. Se o tratamento for mais complexo, será enviado para um hospital maior. Tudo será de graça.
  29. Você compra tudo às dúzias ou grosas. Você ainda tem alguns lápis da caixa que seu pai lhe comprou quando você entrou para a escola. Mesmo depois de trinta anos eles ainda não acabaram. Você tem meia dúzia e calças iguais e duas dúzias de camisas brancas. A maioria dos produtos é indistinta e sem graça (os lápis são de madeira nua, as calças são de umas quatro ou cinco cores padrão e só há uma marca de bicicleta).
  30. Você participa do conselho local (“soviete”), seja como representante de seu prédio, de seu quarteirão, de seu bairro ou de sua profissão. Certa vez você foi eleito deputado ao conselho municipal. Talvez sua mulher esteja no soviete nacional das costureiras e tenha de ir à capital de vez em quando. Vocês consideram realisticamente a possibilidade de um dia serem membros do soviete supremo. Mas as eleições só são diretas no primeiro nível. A partir daí, cada conselho elege seus representantes nos conselhos acima.
  31. Não há partidos políticos e nem “campanha política”. As votações se baseiam nas reputações dos candidatos e em suas relações sociais.
  32. Se o estado ainda não foi dissolvido, existe um Conselho Supremo (Soviete Supremo), que é o último nível de poder. Em teoria ele é o responsável por nomear o Presidente, o Secretário-Geral, o Ministro do Interior etc.
  33. As principais funções do governo envolvem defesa e planejamento centralizado. Todo o resto é decidido localmente. Mesmo a polícia evita interferir em certos tipos de situações. Se o seu filho bater no filho do vizinho, é normal que as famílias resolvam o caso entre si e a polícia só apareça se o caso sair do controle (na opinião do inspetor de quarteirão, que a tudo observa, incógnito).
  34. Quando envelhecer você deixará voluntariamente sua casa para um de seus filhos e se mudará para um asilo.
  35. Você será provavelmente enterrado em uma sepultura temporária e mais tarde os seus ossos serão exumados e postos em um ossuário. Túmulos permanentes só são erguidos para celebridades.

Conclusões

Embora usualmente descrito como uma utopia, o comunismo imaginado por Marx e pelos principais teóricos do marxismo ortodoxo poderia ser facilmente visto como distópico. A vida neste estado comunista parece, às vezes, um tanto medonha, ou apenas sem graça. Mesmo assim, caso tal estado venha mesmo a existir, seria de fato uma utopia para muita gente.

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