Em 1989 o humorista, cartunista, tradutor, poeta e cronista brasileiro Millôr Fernandes publicou uma série de pequenas crônicas sobre a obra do então presidente José Sarney. Estes textos, em seu conjunto, formam a mais demolidora crítica literária jamais publicada em português. Não somente pela notoriedade dos envolvidos — um presidente da república e o outro colunista da revista de maior circulação no país — mas também pelas incríveis tiradas com que Millôr brinda o texto criticado, o que acaba por eternizar a ruindade de uma obra que era então elogiada (por puxa-sacos e gente paga para aplaudir) e deixa em péssimos lençóis perante a história gente do calibre do acadêmico Josué Montello, que prefaciou o livro e foi o indutor de Sarney à ABL.
A crítica de Millôr se dirige ao “romance” Brejal dos Guajas e Outras Histórias, publicado por Sarney em 1988, seguindo uma antiga tradição nacional: a de pessoas poderosas que pagam para publicar o que escrevem. Começar a ler as “notas” de Millôr é embarcar num carrossel de ofensas e críticas de uma acidez inacreditável e inspiradora, que comprovam que o crítico tinha muito mais expressividade (e expressão) literária que o criticado. Nas mãos de Millôr, Sarney, o todo poderoso presidente, é reduzido à sua expressão mais simples, humilhado e enxovalhado até não restar pedra sobre pedra de sua reputação literária. De lá para cá, nunca mais se comentou livro nenhum de Sarney.
Logo no começo Millôr se desculpa com os que lhe pedem para criticar Marimbondos de Fogo, um volume de poemas anterior, de autoria de Sarney. Millôr diz que nesse livro Sarney apenas “atingira a mediocridade” e que só em Brejal atingiria a oligofrenia literária, o bestialógico em estado puro. Esta frase, sozinha, já contém um potencial ofensivo maior do que 90% dos leitores alcançam. Dizer que Sarney “atingira” a mediocridade é sugerir que ele, sem um grande esforço, normalmente reside abaixo dela. Seguida da afirmativa sobre Brejal, o que se tem é já de cara a sutil afirmação de que o romance é uma obra que fica muito abaixo do medíocre.
A partir daí as tiradas são incessantes. Millôr diz que Sarney “atingiu a presidência por pura levitação” e que “depois de tudo que já fez ao país, Sarney ameaça agora abandonar a política para se dedicar inteiramente à literatura”. Notem o verbo “ameaçar”. “Não se pode confiar o destino de um povo, sobretudo neste momento especialmente difícil, a um homem que escreve isso” — diz o crítico. “Em qualquer país civilizado Brejal dos Guajas seria motivos para impeachment” — isso é lá verdade.
Mas Millôr não se limitou a adjetivar, ele fez questão de exemplificar:
Há solecismos em penca, as ideias nunca se completam e sempre se contradizem. A cidade, que não tem escola, tem professora e alunos, não tendo telégrafo transmite telegramas, não possuindo edifícios públicos tem prefeitura, câmara de vereadores, juizados de casamento, dois cartórios, ostenta uma força policial de pelo menos 12 homens (relativamente, o Rio teria que ter uma força policial de quase meio milhão de policiais), é dominada por dois primos por pais diferentes (!!!!), “ricos e poderosos”, e, tendo só duas ruas (quase uma impossibilidade urbanística; eu sei como desenhar uma cidade de duas ruas, Ele não sabe), tem duas orquestras (ele quer dizer bandas), e comporta ainda mercado, lojas, igrejas matriz, etc. O verdadeiro milagre brasileiro! Tem mais, essas duas espantosas ruas de 120 casas (com o que Sir Ney quer significar um vilarejo perdido do mundo ), por meus cálculos matemáticos irrefutáveis, abrigam uma população de 15.272 pessoas, o que faz do Brejal, em 1945, época da istória, talvez a maior cidade maranhense, depois de São Luís.
Nas raras ocasiões em que Millôr parece elogiar, ele está sendo irônico: “Só um gênio conseguiria fazer um livro errado da primeira à última frase.”
Lá pelas tantas Millôr se propõe a revisar a primeira página do livro, e então diz, com amarga ironia: “Fiz também ligeiras alterações de sentido, preparando a base lógica do futuro. Coisa que o autor não soube fazer, nem no Brejal, nem no Brasil.”
Os erros de concordância sintática e morfologia abundam, mas são piores os erros lógicos e os lapsos. O autor diz que certo personagem era de um jeito, mas depois o descreve de outro. Diz que dois personagens são primos, depois diz que são “de pais diferentes” (o que é óbvio, pois se o pai fosse o mesmo, seriam irmãos). Pela descrição da cidade, ele deveria ter uns setecentos metros de lado a lado, mas o autor se refere a ela como se fosse tão grande que precisasse a notícia “correr” por toda ela, e levava uma tarde. Analisando a cronologia interna, Millôr diz que “a história se passa mais ou menos em 1960, por certas dicas do autor. Mas ele não sabe.” Isto porque o autor fala de várias eleições em períodos quinquenais (a primeira desse tipo no Brasil foi em 1945), mas situa a história duas décadas antes.
A crítica de Millôr a Sarney, apesar de assistemática e sem rigor científico, conseguiu demolir a reputação literária do autor de uma maneira definitiva, e de quebra arrebentou com a de quem o elogiava: João Gaspar Simões, Jorge Amado, Carlos Castello Branco, Josué Montello, Luci Teixeira, Antônio Alçada Baptista, Lago Burnett. Particularmente chamuscados saíram Jorge Amado, que ainda desfrutava da fama de comunista, e Josué Montello.
Este episódio permanece como uma evidência de que é preciso muito pouco para expor a ruindade de uma obra, e que quando o público leitor possui capacidade intelectual para acompanhar a crítica, é muito difícil que ela falhe o alvo.
Infelizmente, porém, esta foi praticamente a última vez que a crítica literária brasileira funcionou. De lá para cá, temos uma enxurrada de péssimos autores que conseguem pairar acima da crítica. Quando alguém tenta atacá-los como Millôr, acaba sofrendo nas mãos dos fãs. Isso porque o público de hoje já não lê aquilo de que discorda. Como ninguém quer aceitar o que não está de acordo com seus preconceitos, ninguém lê uma crítica com a alma desarmada. O resultado é a perda da eficácia da crítica, e esse matagal degenerado de maus autores que desgraçam a nossa literatura.
Quem queira ler a íntegra do texto do Millôr, ele está no UOL.