A formação psicológica do ser humano passa por fases nas quais é natural e esperado que tenha “ídolos” em quem se espelhe. Autores, enquanto humanos que são, passam por isso. O amadurecimento do autor é um processo que passa pela superação da idolatria, substituindo-a por uma reflexão mais profunda sobre a arte. Esse processo implica em deixar de ver uma imagem única do ídolo e de sua obra.
Para muitos jovens autores, a ideia de que obra e autor possam estar tão separados soa chocante, afinal a ideia do senso comum é a de que os autores retiram sua obra de dentro de si mesmos.
Quando eu era adolescente, a minha família lia as coisas que eu escrevia e se preocupava. Achavam que eu tinha algum tipo de distúrbio psicológico, pensavam em mandar-me a um seminário ou sanatório para “curar-me” de meus demônios interiores.
Embora seja inegável que há muitos jovens que abrigam em si demônios realmente assustadores e que precisariam ser curados, não se pode imediatamente associar o autor e sua obra de uma maneira tão próxima. Primeiro porque nós não escrevemos sobre quem somos, mas sobre nossa interação com o mundo, real ou imaginário. Segundo porque, mesmo que a escrita contenha os demônios reais do autor, sempre será melhor que estes sejam sublimados na forma de versos ou histórias do que acumulados até se expressarem em episódios de violência. A ideia de que se deve reprimir as manifestações de incoformidade inocentemente transformadas em escrita é fruto dos preconceitos extremos de uma sociedade profundamente ignorante, que ainda tem uma relação fetichista com a escrita, ainda vista entre nós como algo mágico.
Há quem acredite que a relação entre o jovem e seus ídolos e modelos se tornou ainda mais complexa por causa do “mundo virtual” ao qual estamos hoje mais relacionados, mas o espaço virtual propiciado pela eletrônica não é essencialmente diferente do espaço imaginário antes trazido pelos livros e pelos relatos orais de terceiros. Não muda a natureza, mudam apenas a intensidade e a amplitude. Tal como hoje os jovens estão conectados ao “virtual” pelo computador, os jovens do passado estavam conectados ao imaginário através dos livros e das lendas. Há quem diga que o mundo virtual sobrevaloriza a imagem em detrimento da realidade e cria uma vivência incorpórea. Nesse ponto, a diferença relevante não está no meio, material ou virtual, mas na natureza da mensagem, verbal ou icônica.
Falando especificamente de jovens escritores, eles têm seus ídolos assim como os adolescentes “normais”. A grande diferença é que a literatura, diferentemente da cultura pop, possui uma memória mais longa, o que permite que os jovens interajam, apreciem e se conectem com pessoas e obras de muitas décadas ou séculos atrás. Assim, jovens do século XXI conhecem e se identificam com obras “atemporais” escritas por autores como Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Robert E. Howard, Stephen King, Lewis Carroll, Mary Shelley, Bram Stoker e outros. À parte o papel que a cultura pop tem na disseminação desses nomes anglófonos em detrimento de autores oriundos de nossa própria base cultural, segue verdadeiro que esses autores representam para os jovens de hoje um desafio muito interessante no nível intelectual e não devemos desestimular que sejam lidos.
A leitura é um hábito muito ameaçado pela experiência “virtual”, ela precisa ser cultivada e estimulada, em vez de criticada e rotulada. Ainda mais a leitura de autores do passado, que, mesmo trazidos até nós por um filtro “pop”, carregam uma bagagem de língua e de conhecimento capazes de enriquecer os jovens. Quem poderíamos colocar no lugar desses autores? Kéfera e Raphael Draccon?
Evidentemente os autores do passado apresentam desafios que vão além da complexidade da língua (que os jovens só aceitam quando são obras estrangeiras, por paradoxal que isso seja). Entre esses está a presença de escolhos que parecem incompatíveis com os valores de hoje. Há autores do passado que perpetraram racismo, eurocentrismo, machismo ou simplesmente teses científicas que depois se mostraram absurdamente erradas. Ler esses autores confrontará o jovem com esses problemas. Mas esses autores ainda precisam ser lidos. Na verdade, os jovens deveriam ler mais desses antigos autores, de origens mais diversas, com problemas ainda mais desafiadores. Por que limitar-nos somente aos ingleses e americanos? Por que não ler também franceses, portugueses, gregos, russos, japoneses, espanhóis, brasileiros, suecos…? No entanto, se tentamos barrar os jovens logo na entrada, que são os nomes oferecidos pela difusão pop, como esperamos que eles avancem para dentro da “casa” da literatura?
Preocupa-me a campanha que se faz hoje contra autores do passado por causa de suas imperfeições. Nabokov e Carroll, os pedófilos. Lobato e Lovecraft, os racistas. Kipling, o imperialista. Stoker, o antissemita. Esse hábito representa uma tendência perigosa dos tempos de hoje, uma vontade de rejeitar o passado, relegá-lo a algum “buraco da memória” e reescrever um “bravo mundo novo”. Porém aqueles que ignoram o passado tendem a repeti-lo.
Enxergamos a cultura e os indivíduos que viveram no passado como impuros, ignorantes e preconceituosos; ao mesmo tempo em que nos recusamos a enxergar o que temos nós mesmos, hoje, de impureza, ignorância e preconceito.
Tal como Quixote, arremetemos contra moinhos de vento achando que são gigantes. Tal como um desastrado oficial da Primeira Guerra Mundial, torpedeamos golfinhos por medo de submarinos.
É extremamente fácil identificar e rotular os erros dos mortos. Não somente porque eles não se defenderão, mas porque eles não podem mais corrigir-se. Uma pessoa viva pode fazer autocrítica, pode dar explicações. O morto permanece silencioso enquanto interpretamos suas palavras à sua revelia.
Mas essa luta contra as nuvens é um exemplo claro de alienação cultural e de obscurantismo. Fixamo-nos em coisas alheias e distantes, e irrelevantes, em detrimento da realidade imediata e premente. A literatura é um prazer optativo e privado, diferentemente do cinema e da música, cujas obras oferecem experiências coletivas e têm grande poder de penetração, até involuntária, devido à dificuldade de se conter o som e a imagem, meios que se expressam sem necessidade de decodificação ativa pelo receptor — contrariamente à literatura.
O possível dano causado por um livro é pequeno, se comparado ao imenso dano causado por programas de televisão e rádio, ou por filmes. Mesmo porque, a leitura é um processo muito mais reflexivo. A relação do leitor com o livro é muito mais questionadora do que com as obras audiovisuais, que penetram em nós de maneira sub-reptícia, sem argumentação, e vão nos entortando a seu bel-prazer.
Porém o benefício trazido pela leitura é imenso, se comparado ao pequeno dano trazido pelos escolhos contidos nas obras literárias. Toda leitura literária confronta o leitor com opiniões diversas das suas. Opiniões que cobram reflexão, que cobram esforço para entender. Ao tentar imaginar cenários, descrições, distâncias e relações; o leitor ativamente cria em si um mundo que pode não ser o mesmo que o escritor criou. Não é uma imagem pronta da realidade. A interpretação que cada um dá às palavras do autor é um “lugar” seu, no qual o autor, especialmente o autor morto, já não tem nenhum poder.
O leitor tem o poder de ressignificar uma obra. Não apenas por interpretá-la à sua maneira, mas também por reagir a ela. Faz parte da cultura literária o inconformismo do leitor com o “final frustrante”, com o pequeno papel deste ou daquele personagem que tinha bom potencial, com o desastroso desenlace do clímax. Se os jovens de hoje já não são tão rebeldes e questionadores do que leem, a culpa disso não é das suas leituras e nem do hábito de ler. Não é a leitura que devemos desestimular. O germe desse mal vem de outros lugares e hábitos.
Por isso é extremamente importante que estimulemos os jovens a ler, mesmo que leiam obras perigosas. Não tenho medo de leitores de obras acusadas de racismo ou coisas piores, mas de pessos que cresceram em uma cultura que ainda fetichiza o livro a ponto de se imaginar que o leitor é um imbecil cordeiro que deve seguir como religião aquilo que está nas páginas da obra de um escritor morto há muito tempo. Temos que criar nos jovens a ideia de que os livros trazem prazer, informação e fantasia, mas que a verdade é uma descoberta que cada um deve fazer.
Por isso, leiam. Leiam principalmente os livros perigosos. O dano que eles lhes podem trazer são ínfimos. Especialmente se vocês lerem com diversidade e com rebeldia.
O mal não está em lermos, mas no mundo de hoje aparentemente achar que o certo é ter aquela mesma velha opinião formada que, se está num livro velho, está confirmada e deve ser seguida.
Vai lá ler, ó bicho-preguiça.