Falácias são erros lógicos em uma argumentação. Um argumento bem estruturado e válido precisa basear-se em elementos reais (postulados válidos) e ter uma relação clara de causa e efeito entre as premissas (as etapas do argumento) e a conclusão final. Quando, mesmo com postulados verdadeiros, a conclusão é absurda, temos um erro de lógica, a falácia.
A grande maioria das pessoas argumenta exclusivamente com base em falácias. É o que você ouve nas conversas de bar, nos debates políticos da televisão, nas conclusões a que normalmente as pessoas chegam no dia a dia. O pensamento lógico e racional é uma exceção no ser humano. Tanto o é que a reação normal a uma expressão lógica e racional é quase sempre hostil. Diga algo que faz sentido e todos em volta o verão como um “esquisito”, se sentirão ofendidos pelo seu argumento, ou meramente ficarão em silêncio e se afastarão. Pessoas que argumentam racionalmente costumam ficar isoladas. Argumentos racionais costumam ser combatidos com tochas e forcados. Coletivamente, a humanidade só segue o caminho da razão quando, mais do que ser o único caminho, é o último caminho.
Este artigo, porém, parte do pressuposto de que o leitor já saiba alguma coisa dos métodos lógicos de argumentação e que seja capaz de diagnosticar um raciocínio falacioso à primeira vista. Se não for o seu caso, é uma boa ideia dar uma olhadela no Guia de Falácias do Stephen antes de começar.
Mais do que isso, parte do pressuposto de que você já tenha lido sobre a Jornada do Herói, e que possivelmente até a adote como seu evangelho. Se não for o seu caso, Deus me perdoe por lhe apresentar ao conceito, mas aqui está um bom texto introdutório.
Certamente há motivos para se gostar da Jornada do Herói e até mesmo motivos para empregá-la às vezes, porém todo autor deve ter como seu paradigma e objetivo maior superar o arquétipo oferecido pela Jornada, especialmente em sua versão pedestre, popularizada por Hollywood. Motivos não há, porém, para aferrar-se a esse paradigma como a solução final da literatura, como “um método para a todos governar”. A simples ideia de que em qualquer arte exista um método único e definitivo equivale a decretar a morte daquela arte. Se nada mais é possível além do já conhecido, então a arte deixa de ter função e sentido.
Apesar dessa conclusão tão óbvia, são muitos os jovens autores que se embevecem pela Jornada. Por que?
A principal razão me parece ser que a defesa da Jornada do Herói é feita através de raciocínios que são falaciosos em si mesmos ou que permitem uma interpretação falaciosa. Como a grande maioria das pessoas somente analisa a realidade através de raciocínios lógicamente inválidos, é natural que se identifiquem com um conceito de tão fácil correspondência.
Existem coisas no mundo que só podem ser defendidas de maneira complexa, e necessariamente lógica; e por isso só são aceitas e entendidas por uma pequena minoria da população. Outras coisas podem ser assimiladas e defendidas de forma simples, absurda e ilógica; por isso alcançam um número maior de pessoas. É muito mais fácil defender a pena de morte do que a reabilitação do criminoso, é muito mais fácil defender uma sociedade de classes do que uma sociedade igualitária. No terreno intelectual, é muito mais fácil convencer as pessoas de que elas não precisam esforçar-se do que convencê-las a agir, é mais fácil convencê-las de que não é possível obter fruto algum através do esforço do que explicar os motivos pelos quais elas, individualmente, não colheram fruto nenhum. O mais sedutor dos argumentos, para o ignorante, é aquele que defende que o conhecimento não existe.
A aplicação da Jornada do Herói à literatura é um desses conceitos simples e fáceis, extremamente acessíveis e por isso mesmo tão universalmente aceitos. Dê a um jovem autor um trabalho literário de extraordinária qualidade e desafie-o a competir com ele, isso o intimidará. Mas diga-lhe que aquele trabalho foi feito ligando o ponto “A” ao ponto “B”, depois ao ponto “C” — e assim sucessivamente — e esse mesmo jovem autor se sentirá tentado a recriar um trabalho equivalente. Digo “recriar” porque, a partir do momento em que temos o conhecimento do método pelo qual algo foi feito, nosso primeiro esforço será sempre a cópia, a improvisação de melhorias é um passo posterior que, para a maioria das pessoas, nunca virá.
Todos os argumentos em favor da Jornada do Herói que você lerá a partir de agora são falaciosos, ou seja, são estritamente inválidos do ponto de vista lógico. São absurdos, vergonhosamente o são. No entanto, se você os empregar em um debate em qualquer comunidade de literatura, obterá muitos likes. De fato, você conseguirá até mesmo encontrar referências para se embasar: embora eu não tenha pesquisado especificamente nenhum desses argumentos, é quase certo que cada um deles já foi empregado, mais de uma vez, em vários blogs de jovens autores. Então vamos à lista.
- Você precisa utilizar a Jornada do Herói.
- Há milhares de anos todas as mais significativas obras da literatura universal seguem um padrão.
- Este padrão foi identificado por um antropólogo americano, Joseph Campbell, em uma obra originária de sua tese de doutorado, chamada “O Herói de Mil Faces”.
- Depois que George Lucas o utilizou para criar o roteiro de “Guerra nas Estrelas”, o roteirista de Hollywood Christopher Vogler adaptou o conceito para uso literário.
- Desde então, a maioria dos filmes de maior sucesso tem roteiros escritos seguindo esta fórmula.
- A Jornada do Herói funciona porque ressoa nos aspectos mais profundos da psique humana, evocando os arquétipos mais antigos da humanidade, conforme definidos por C. G. Jung.
- Essencialmente, segundo Campbell, todos os mitos seguem um mesmo padrão (monomito).
- Então Vogler criou uma versão do monomito para ajudar os roteiristas a criarem melhor suas histórias.
- George Lucas estudou a fundo o conceito antes de escrever o roteiro de Guerra nas Estrelas, por isso o filme foi um sucesso tão grande.
- Hoje em dia, não empregar a Jornada do Herói significa excluir-se da literatura moderna e resistir à ela pode lhe trazer inimizades no meio literário.
À primeira vista, esses argumentos parecem bastante sólidos. Eles não são significativamente diferentes daqueles que você encontra na introdução de muitas postagens de autores em seus blogs, nos quais defendem com unhas e dentes (uma péssima linha de argumentação, diga-se de passagem…) a sua opção por seguir o monomito de Campbell.
Porém, todos esses argumentos são irracionais. Eles não se baseiam em conclusões lógicas, mas em apelos rasteiros aos bugs do cérebro humano, que tende sempre a encontrar a solução mais simples, não necessariamente verdadeira. Demonstremos então.
Dizer que você deve começa a usar a Jornada do Herói é um apelo à multidão. O ser humano se sente mais confortável na presença de muita gente, sem se perguntar se essa multidão está fazendo algo correto. É a mesma lógica que permite a pessoas de bom caráter participarem de saques e linchamentos, que levou o povo alemão a apoiar o nazismo. Racionalmente falando, você não precisa seguir o que a multidão está fazendo. Como diz a Bíblia, mil cairão à sua direita, dez mil à sua esquerda (ou o contrário, não me lembro), mas você não precisa ser atingido. Basicamente o que esse argumento sugere é que você deve abandonar aquilo que acha correto e que até então fazia, passando a seguir aquilo que a multidão faz.
O segundo parágrafo é composto. Ele começa com um bem evidente argumento pela antiguidade (ad antiquitatem), sugerindo-lhe que algo que a humanidade faz há milhares de anos deve estar certo. Se formos reduzir esse argumento à sua expressão mais simples, ele pode ser definido como “os antigos não erravam”. Uma pessoa racional rejeita o argumento pela antiguidade quando consegue identificá-lo porque nós sabemos, instintivamente, que nossos pais estavam errados a respeito de muitas coisas e sabemos, pelas aulas de história, que a humanidade já cometeu muitos erros no passado. Como podemos acreditar que os antigos não erravam se foram eles que inventaram a guerra, o estupro, o racismo, as mutilações genitais e outras coisas? O simples fato de algo ser antigo não lhe confere nenhuma validade. O segundo elemento presente nesse parágrafo é o argumento pelo sucesso (ad crumenam), contido na sugestão de que todas as obras mais significativas da literatura universal seguem a Jornada do Herói. A insinuação aqui é a de que estas obras são significativas porque foram feitas segundo a Jornada do Herói. Podemos também verificar, no mesmo parágrafo, um raciocínio circular (as obras são significativas porque seguem a Jornada do Herói? Ou é a Jornada do Herói que se apresenta significativa por estar presentes nas obras mais significativas?) do tipo confusão entre correlação e causa. O fato de duas coisas coincidirem em um mesmo objeto não quer dizer que uma é causa da outra, podendo ambas ser causadas por um terceiro fator. Falaremos mais sobre esta falácia mais adiante.
Em seguida vemos um apelo à autoridade. Considerando que nós estamos falando de literatura, não de antropologia, seria até possível qualificar de “apelo a autoridade irrelevante”, visto que Campbell não era ficcionista, mas não vou ser tão agressivo. A questão é que uma autoridade não tem o poder de determinar a validade de algo. Na filosofia e nas ciências, a autoridade deriva da capacidade de encontrar e difundir a verdade, não o contrário. Embora o trabalho de Campbell seja notável, não podemos evocar seu nome e suas credenciais como defesa da Jornada do Herói enquanto técnica literária porque não é a pessoa de Campbell ou suas credenciais acadêmicas que validam o conceito. Um conceito é válido por ser verdadeiro, não por ser defendido por alguém famoso.
Podemos ver esse uso falacioso da autoridade de uma maneira mais clara no parágrafo seguinte, quando os nomes de George Lucas e Christopher Vogler são anunciados. Citar nomes não é um argumento válido. Porém a principal falácia desse parágrafo é o argumento pela venerabilidade (ad verecundiam) contido na qualificação de Vogler como roteirista em Hollywood e nas subsequentes menções ao emprego da Jornada do Herói pelas produções cinematográficas americanas. O poder de Hollywood é tão grande e intimidador que os jovens se sentem obrigados a seguir aquilo que emana de lá. Desta forma, evocar Hollywood é uma forma sutil de apelo ao poder e à respeitabilidade dessa indústria.
Chegamos então a um simples apelo à quantidade (ad numerum), embora aqui se usem números abstratos (“a maioria”) em vez de tangíveis (“nove de cada dez”). O apelo à quantidade é uma forma impessoal do apelo à multidão (ambos são essencialmente a mesma coisa, só que referentes a pessoas e coisas, respectivamente). Porém, a falácia principal aqui é novamente o raciocínio circular: os filmes de maior sucesso fazem sucesso porque usam a Jornada do Herói, ou a Jornada do Herói entrou em evidência por ser usada pela maioria dos filmes de sucesso?
O sexto parágrafo novamente emprega um argumento pela venerabilidade (ad verecundiam), ao citar a influência dos arquétipos profundos da psique humana (mas de que forma exatamente isso funciona?) e o nome de C. G. Jung. Literariamente falando, Jung é uma autoridade irrelevante, pois era psicólogo (na verdade psicanalista) e não um crítico literário ou escritor. Em geral, a citação da opinião de um especialista em área diferente da sua especialidade é sempre um apelo a autoridade irrelevante.
A afirmativa do parágrafo sétimo é apenas parcialmente verdadeira, porque não se pode resumir a obra de Campbell ao conceito de que todos os mitos seguem um padrão. Nem o próprio Campbell chegou a afirmar isso, mas, sim, que existem padrões mitológicos universais. O fato de haver padrões universais não quer dizer que todo personagem siga esse padrão. Por exemplo, muitos mitos, de diversas culturas, contêm o elemento do “animal trapaceiro” (trickster), mas isso não quer dizer que toda história envolvendo humanos e animais seja uma história de animal trapaceiro. A raposa que surge no “Pequeno Príncipe” não é um trapaceiro, ela é um personagem que interage com o herói a seu modo (e possivelmente seguindo outro paradigma). O simples fato de ser um animal a interagir com um humano não transforma a raposinha em um trickster. Caso você não tenha percebido, a simplificação do conceito de monomito através da afirmativa deste parágrafo nos conduz a uma falácia de generalização (tomar a parte pelo todo) apressada.
Uma outra forma de erro grave em argumentações consiste em atribuir intenções a terceiros. Esse tipo de erro ocorre porque nós estamos acostumados com ele desde a mais tenra infância, pois é justamente nisso que consistem as homilias e sermões de todas as igrejas cristãs. Todo padre ou pastor trabalha, necessária e quase exclusivamente, tentando adivinhar a partir do texto bíblico as intenções dos autores e, mais ainda, as de Deus, que inspirou a estes. Nós não conseguimos achar errado a tentativa de detectar as intenções de pessoas que nunca conhecemos porque fomos ensinados a aceitar a exegese como algo válido, quia absurdum. Ora, por mais que tenhamos lido as obras de um autor, no caso Vogler, nada nos autoriza a dizer quais foram as suas intenções ao escrever seu trabalho. No máximo nós podemos conhecer as que ele alegou serem as suas intenções. Porém há nesse parágrafo um segundo erro lógico: outro raciocínio circular, o de que as obras produzidas segundo a Jornada do Herói, mais particularmente a versão propagada por Vogler, seriam melhores por seguirem a Jornada.
A décima afirmativa retorna a um raciocínio circular, que também pode ser interpretado com uma confusão entre posterioridade e consequência (post hoc ergo propter hoc). Podemos afirmar com certeza que “Guerra nas Estrelas” foi um sucesso porque George Lucas estudou a fundo a Jornada do Herói? Em um nível acima, podemos dizer que as ocorrências intencionais da Jornada do Herói produzem mais qualidade e mais sucesso do que as ocorrências naturais?
A última argumentação de defesa já sai do terreno da mera defesa e parte para a agressão sutil. Podemos ver aqui um apelo às consequências (ad consequentiam) — não seguir a Jornada é excluir-se — e um apelo ao poder (ad baculum) — os que resistem à ideologia da Jornada passam a ser combatidos pelos meios editoriais. Mais do que convencer o jovem a adotar um paradigma, esta afirmativa o está a ameaçar com o “porrete” (báculo) do mercado editorial caso ele não se submeta.
Conclusões
Acho importante dizer que neste artigo eu não estou abordando a validade em si do conceito da Jornada do Herói, apenas demonstrando de que forma ela consegue um apelo fácil junto à maioria. A propaganda da Jornada funciona, da mesma maneira como funcionam as pregações religiosas, os slogans políticos e as técnicas motivacionais no local de trabalho. Através de apelos emocionais aos aspectos irracionais da personalidade humana. O próprio conceito da Jornada do Herói, se for válido, funciona exatamente porque apela ao irracional humano, está lá na própria definição da Jornada.
Chegados a esta conclusão juntos, eu sigo daqui e o leitor que faça dessa constatação o uso que achar melhor.