Há seis tipos de personalidades arrogantes que não entendem como funciona a literatura e o mercado literário. Estas pessoas ajudam a difundir ideias ultrapassadas, ideologias nocivas e comportamentos estúpidos. Estes são os seis tipos (os quatro primeiros citados pelo Daniel Gruber, o quinto por Daniel Iturvides Dutra e o sexto por mim):
- O primeiro arrogante acha que não se pode ensinar a escrever, e gasta boa parte do seu tempo criticando as oficinas literárias;
- O segundo arrogante está tentando publicar seu livro, mas declara sem pudor nenhum que não costumar ler literatura brasileira contemporânea, ou seja, tenta enfiar goela abaixo dos outros algo em que ele simplesmente não acredita;
- O terceiro arrogante critica o realismo e as formas tradicionais da literatura, enquanto tenta criar conceitos estéticos inovadores que, em geral, se resumem a uma literatura confessional falando sobre sua própria atividade como pretenso escritor;
- O quarto arrogante não consome literatura, só pega livro em biblioteca, em sebo, ou de graça na internet, e acha um absurdo que as editoras não queiram investir em sua obra;
- O quinto arrogante não se importa com a qualidade e se associa com editoras que só pensam no lucro, em geral tornando-se vítima delas;
- O sexto arrogante acredita que a literatura é uma fórmula e está ansioso por aprender os “macetes” para desbloquear o próximo “chefão de fase”.
Esta postagem é baseada em um tópico criado por Daniel Gruber na comunidade Escritores Ajudando Outros Escritores, no Facebook. Não é recomendável a leitura se você for do tipo suscetível.
Agora analisemos os seis tipos:
O arrogante que acha que não se pode ensinar a escrever é uma vítima de um sistema que desvaloriza a cultura e a literatura, ao mesmo tempo em que atribui ao autor um papel meio religioso.
A ideia da “inspiração” surgiu no tempo do romantismo, e nunca sumiu de todo. Ela não some porque a escola não oferece ao aluno meios de se tornar plenamente alfabetizado. Se ele só consegue se expressar com muita dificuldade, é natural que veja a capacidade de se expressar com facilidade como algo mágico. Então ele ajuda a perpetuar esse estereótipo, que vai contaminar quem tenta escrever. Esse arrogante critica as oficinas literárias porque elas são incompatíveis com sua visão romântica do mundo.
Esse arrogante, no fundo, quer ser reconhecido como um ser especial pelo mero fato de escrever, porque não pode conceber que isso seja comum ou normal — ele foi ensinado a ver a escrita como algo excepcional.
O arrogante que não lê literatura brasileira é menos vítima, mas também o é, um pouquinho.
Ele é vítima porque vivemos sob uma cultura massificada brutalmente, na qual nos socam pela boca abaixo a cada cinco minutos algum produto enlatado da cultura americana. Mais do que nos enfiarem enlatados a força, em um verdadeiro estupro cultural, a sociedade contribui para reforçar isso, porque somos cobrados o tempo todo para estarmos em dia com a última série, com o último best-seller ou com o último filme. Nesse sentido, a triunfante cultura dominante parece ser o único modelo a seguir (tanto assim que você mesmo começa sua postagem usando a literatura dos EUA, a metrópole colonial do mundo de hoje, como modelo, veja que irônico).
Mas ele é menos vítima porque ao longo de sua vida ele terá muitas oportunidades de refletir sobre esse processo de amestragem cultural ao qual somos submetidos e reagir. A maioria das pessoas jamais em toda a sua vida gastou um minuto para ter qualquer dúvida sobre sua inserção no mundo. Em geral o ser humano é um robozinho social e culturalmente construído, que segue ritmos diários e pensa conforme a mídia manda. Aqui no Brasil, por exemplo, a mídia conseguiu construir um consenso de que fazer o que é bom para a maioria é ruim para todos; e em nome disso o povo foi à rua pedir a queda de um regime popular, para permitir a instalação de um governo que está acabando com direitos do povo. É preciso uma carga cavalar de ideologia para levar alguém do povo a defender o fim de seus direitos. Funciona porque as pessoas são acomodadas com as formas acessíveis de “cultura” (televisão, cinema, música, redes sociais) e não tentam desconstruir-se.
Ainda falando do segundo arrogante, ele não está tentando impingir ao mundo algo em que ele não crê, ele realmente não crê que seja brasileiro. Por que motivo um jovem tupiniquim sempre ambientará suas histórias em Londres, Nova York ou Los Angeles? Por que ele se vê como um expatriado da metrópole anglo-saxônica! Ele não quer fazer literatura brasileira, ele quer dar um jeito de ser aceito pela nave-mãe. Só escreve em português porque não é fluente em inglês, mas os que são frequentemente migram para o outro idioma. A literatura brasileira é, para essa gente, pouco mais do que um estorvo e um azar.
O arrogante que critica as formas tradicionais enquanto tenta descobrir uma nova fórmula é, também, uma vítima. Vítima de um sistema educacional que, nas palavras de Darcy Ribeiro, não é uma falha, é um desígnio.
Nossas escolas, na maioria, são creches melhoradas. A ideia é deixar o aluno ali durante o dia, enquanto as mães trabalham. As aulas são um passatempo e o aprendizado, um acidente que se tenta evitar. Números oficiais do MEC dão conta de que mais de 60% da população brasileira adulta possui domínio insuficiente da língua escrita. Se considerarmos que somente 18% da população brasileira adulta já leu NA VIDA outro livro que não a Bíblia, chegamos à conclusão de que outros 22% provavelmente perderam ou estão perdendo o domínio que um dia tiveram. Se ainda considerarmos que esses 18% que já leram outro livro além da Bíblia não são formados por pessoas que leram dezenas ou centenas, podemos concluir, com folga, que a percentagem de brasileiros que tem algum hábito de leitura deve ficar abaixo de 10%. Natural, portanto, que esses jovens ignorem muita coisa. Além do que a escola mal lhes ensinou, eles não aprenderam muita coisa porque a leitura não faz parte de sua realidade.
Ainda falando do terceiro arrogante, a cultura de massas do Brasil se caracteriza por ser extremamente ignorante e por ter um absurdo preconceito contra a cultura. Pessoas de óculos são hostilizadas, o termo “professor” é usado como xingamento para quem aparenta saber algo que pouca gente sabe, a leitura de livros é vista como uma atividade “esquisita” e muitos de nós ouvimos os mais velhos nos dizerem que devíamos moderar a leitura e os estudos porque “isso não é bom para a cabeça”. Somemos a isso o culto do self-made man, que é ainda mais forte entre nós do que entre os ianques, e temos o que eu certa vez chamei de “mito do sábio louco e do ignorante vigoroso”, que é uma das fundações da identidade nacional.
Ainda falando do terceiro arrogante. Imerso nesse caldo de cultura, é muito natural que ele despreze o conhecimento existente, ao mesmo tempo em que sonha descobrir algo novo. Ele se sente empoderado para isso porque, na visão da cultura de massas do Brasil, a ignorância é uma forma de pureza, que nos aproxima de Deus, e, portanto, é um “superpoder” que os letrados perderam.
Isso, claro, vai muito em sintonia com o narcisismo, que é um defeito de nossa cultura, que vem se tornando cada vez mais individualista e irracional nas últimas décadas. Narciso não ama nada além do espelho, como lembrou o Caetano Veloso em uma de suas geniais letras. A literatura confessional afaga o narciso. Mais do que inventar uma nova literatura (meta narcisista) ele deseja que a sua literatura, que fala sobre si, seja aceita pelo mercado, porque, no fundo, o que ele quer é que ele mesmo seja aceito como é, sem necessidade de aprimorar-se. Nada é mais confortável à mente do ignorante do que a ideia de que o conhecimento é absurdo, portanto não vale a pena ser buscado. Talvez somente uma coisa supere esse conforto: a ideia de que, enquanto ignorante, ele possui já o conhecimento de que precisa.
Lembre disso ao ler essas matérias sensacionalistas dizendo que um inventor do interior construiu um motor movido a água ou que uma cabeleireira de favela está rejuvenescendo clientes usando uma receita caseira. Essa matérias apelam ao narciso interior do brasileiro. Assim como o mito do “empreendedorismo” (você pode se tornar um empresário bem-sucedido), o “televangelismo” (compre Deus em suaves prestações mensais ou fazemos com desconto, à vista, se você doar tudo o que tem) e outras ideologias narcisistas.
Finalmente, o terceiro arrogante, por estar imerso no fascínio pelo próprio umbigo, não deseja contemplar o outro. Principalmente não deseja contemplar um outro que se pareça consigo. Ele olha em volta e vê dezenas de jovens como ele, morenos. Então idealiza um personagem elfo louro e uma heroína platinada como uma islandesa, ou se refugia num mítico Japão medieval. Ele não faz isso porque odeia a literatura brasileira (ele a ignora), ele faz isso porque enquanto escreve ele se imagina e se sente como alguém diferente de todos os outros com quem convive. Não é arrogância, é carência.
O arrogante que não consome literatura é consequência dos outros três, e não há muito o que comentar. Ele não lê literatura nacional porque encontrará nela personagens que são como ele é fisicamente, mas ele rejeita o corpo e a cultura em que nasceu. Não lê literatura nacional imitadora da estrangeira porque prefere o produto legítimo, não a imitação barata.
Faz parte do status que o narcisista busca: ele quer produtos de marca e de grife para se envolver neles e se valorizar, porque ele considera que ele mesmo, corpo, alma e identidade cultural, não tem valor intrínseco. Por não se ver no espelho como alguém valioso, ele almeja um boné, um camiseta, um tênis — e um livro. Não é por acaso que o brasileiro exija livros “de primeira qualidade” (essa é a frase que todas as editoras picaretas usam, e também algumas que não são). O Brasil é o país onde o arroz é sempre Tipo 1, a dona de casa pede para moer carne de primeira para pôr no molho do macarrão e todo livro tem acabamento “de primeira qualidade”.
O arrogante que se associa a editoras do tipo paga-e-publica é alguém que, estando sob o domínio de todas as forças que moldam essas arrogâncias anteriores, não consegue conformar-se com a indiferença do mundo face ao seu talento. O problema é que o Brasil, por ser um país de cultura capitalista (ainda que embrionária) focada em privilégios de classe, não ser aceito não é uma opção. Especialmente se você pode pagar. Há décadas que gente poderosa escreve livros para ornar seus currículos (José Sarney e Michel Temer, por exemplo) e os publica por editoras que aceitem publicar essas obras, mesmo elas não tendo mercado. O poder e o dinheiro, quando não abrem portas, arrombam-nas. Então, se alguém tem dinheiro e uma ambição literária, é praticamente certo que pagará para publicar. Não tendo dinheiro suficiente para pagar pelo produto de primeira qualidade (bem revisado, bem diagramado e bem editado, feito por uma editora de nome tradicional), aceitará o produto de terceira desde que travestido de primeira.
Este talvez seja, de fato, o primeiro tipo entre os seis que mereça ser chamado de arrogante.
O arrogante que crê na literatura como uma fórmula é ao mesmo tempo uma vítima e um algoz. Ele é vítima porque esta preso a uma concepção de literatura como servidão, como maquinismo. Ele não o percebe, mas sua postura de que “tudo já foi escrito” ou de que “não me critiquem por ser pouco original porque a originalidade não existe” acaba por servir à depreciação do papel do autor (quem leu “1984” sabe do que eu estou falando, e quem não leu deveria ter a decência de ler antes de defender ardorosamente esse posicionamento). É um arrogante que está atirando nos próprios pés e zombando dos que tentam atirar em alvos.
Mas ele é também algoz porque, tendo se tornado maioria, ele ajuda a disseminar essa ideia cancerígena de que os autores devem abandonar toda ambição e refestelar-se na fórmula e na imitação. Aqui, sim, ele se torna arrogante, porque coloca a própria falta de ambição como uma régua pela qual medir os outros. Como o lendário Procusto, ele se propõe a cortar dos outros aquilo que eles têm (ou acham ter) maior do que ele. Esse é o pior dos arrogantes, porque ele está no poder. Ele é o editor a quem você vai submeter o seu livro e que vai lhe pedir para adaptar segundo a “Jornada do Herói” ou o “Show Don’t Tell” ou outro conceito recentemente difundido por algum guru.
Mas há uma conclusão mais importante a se fazer, todos esses arrogantes existem devido à crise de identidade do Brasil e de sua literatura. Os autores brasileiros jovens não se deram ainda conta, mas a literatura brasileira está em estado de sítio e eles ainda estão pensando em salvar-se individualmente. No “salve-se quem puder” o normal é morrerem quase todos, sobrevivem aqueles que o inimigo escolhe não matar.
Não adianta pensar a literatura como algo alienado da sociedade em que nascem e crescem aqueles que a devem ler e que eventualmente a escrevem. A literatura brasileira é uma literatura sob ataque porque a nossa cultura está sob ataque, precisamos praticar uma literatura de guerra, e não sonhar com um modelo comercial importado, que não serve para nós, pelo menos não nessa fase em que estamos.