Texto apresentado ao Desafio Entre Contos “Folclore Brasileiro”.
Hoje vocês me dizem que eu estou em segurança e tudo parece ter sido um sonho. Assim me dizem sempre que essas coisas acontecem. Hoje está tranquilo, madrinha, mas não quero visitas, estou doente ainda, quero remédios e não quem me teste a paciência e diga que estou corado e bonito. Para essas coisas tive a minha mãe, que Deus a tenha. Agora quero é a misericórdia de Deus e tentar parar com esses sumiços.
Disseram-me que estive sumido muito tempo, que me acharam nos matos poucos dias depois da Páscoa, com barba e banho de muitas semanas, picado de insetos, quase morto de tanta ferida. Disso não lembro. Dizem os médicos que vou lembrar, depois que melhore. Enquanto isso, por favor me alcance aquele copo de leite quente porque passou um frio dentro de mim. Mas se o exercício da cabeça faz bem para o corpo também, conforme diz Dr. Juvenal, então vamos seguir espremendo as lembranças. Se eu voltar a sentir frio, pede outro copo de leite quente, que a minha boca ainda está muito inchada para mastigar.
Madrinha, só sei que queria muito encontrar a diaba, mesmo numa quinta-feira virando para sexta, pecando contra Deus. Não me tenha raiva, madrinha, família é família e rabicho é rabicho. O homem vai atrás do que confunde, não do que explica. As maravilhas da vida estão no que vem entre as linhas e depois do ponto final. Então eu queria a Filipa. Nunca fui de andar pela opinião alheia, essa coisa de assombração eu nunca levei a sério, porque só existe o que Deus permite. Mas eu dizia que não me bastava aparecer em noites combinadas para fazer o que Deus não quer — eu queria chegar de surpresa, tirar a limpo a malícia da gente. Era sexta-feira de tarde e eu saí dizendo que ia à cidade por amor de missa. O mundo é grande demais para as pernas das velhas seguirem as dos moços.
Lembro que desci de sua casa aos pinotes e sem olhar para trás, talvez de vergonha, correndo até risco de quebrar perna, não quis ver a senhora me olhar com aquela cara de quem sabe aonde o pecado está. Montei depressa, esporeei o cavalo e prometi que voltava outro dia.
Ela tem uma outra casa na matinha da Serra, perto da cachoeirinha. Ninguém se atreve muito por lá: as macegas estão altas, os barrancos são um perigo e a terra não tem nem fruta que preste. O único caminho é o trilho dos animais. Lá que a gente se encontrava nas noites de pecado, madrinha.
Acima da primeira subida, com o cavalo já cansado, a estrada estava seca e os cascos do animal batiam no fofo da poeira e levantavam nuvens amarelas, correndo fácil e leve. Meia légua adiante, porém, ele passou a pisar torto e bamboleou dos quartos. Passei a primeira encruzilhada, e logo a segunda. A estrada passava pela beira do morro, o rio correndo embaixo num chiado gostoso e do outro lado os fogos das casas eram como estrelas na noite preta — mas não haveria noite preta de ter estrelas, era lua cheia e a estrada logo seria um tapete entre pastos e mato.
Cheguei à terceira encruzilhada e tive o primeiro arrepio de medo, quando lembrei o que a madrinha diz: o caminho do inferno é difícil, por isso que o catiço vem até nós. Mas bateu o primeiro ventinho frio e esqueci. Só depois lembrei: quebre a esquerda na terceira encruzilhada de um caminho que pouca gente vai.
O cavalo já conhecia o rumo e não tinha medo. Naquele momento a poeira começou a entrar nas botinas e irritar meu pé, mesmo eu montado. A tarde já estava nas últimas luzes e no fundo da paisagem a Ponta de Flecha apareceu no horizonte com a encosta ainda brilhando ao sol das almas. Mais em frente a estrada passou um estreito dedo de luz amarelada que vinha entre as montanhas. Olhei à direita e a luz descia devagar em direção à estrada, arrastada pelo sol que já se deitava nos braços da serra.
A estrada ficou barulhenta, lembrei do lajedo: então eu tinha de estar já perto, menos de uma légua. Meu pé começou a coçar por causa da poeira que tinha entrado na botina, e então o cavalo afrouxou e não teve chute nem varada que o fizesse continuar. Ele já estava tão arregaçado que começou a cambalear, eu apeei de um susto, para ele não me cair em cima.
Enquanto o cavalo procurava onde se encostar, desci, bati as botinas numa árvore e calcei de volta. O cavalo escutou alguma coisa, assustou e disparou pela estrada como se nem cansado. Fiquei de pé, mas a coceira continuava. Sentei no meio da estrada, tirei as botinas e esfreguei entre os dedos, achei feridos. Levantei de novo e tentei caminhar, mas a cavalgada acelerada tinha posto a minha cabeça bamba no pescoço, minha vista balançando como uma página soprada pelo vento.
De repente escutei também. Sem vento nas orelhas e sem trote de cavalo para atrapalhar. Bem no horizonte subia a lua, bem cheia e linda. Escutei os cascos, e já bem perto. Primeiro pensei que fosse meu cavalo enlouquecido que voltava, mas logo enxerguei faiscar depois da curva, ainda longe, e isso me devolveu juízo. Cheirei o ar, tinha uma rainha da noite perto, obra da providência, seu cheiro doce me adoecia, mas era bem o que Deus me oferecia, eu aceitei.
Prendi o fôlego, o coração batendo no peito como um surdo no carnaval e tentei ouvir o silêncio entre curiangos e corujas. Vinha exato e rápido. Segurei meu grito de medo, saltei de banda e saí da estrada, ou melhor, de lá caí, entre as moitas e espinhos, fui esconder entre a rainha da noite e um taquaral mais abaixo.
Deitado ali, com a alma agarrada entre os dentes e querendo pular da boca, esperei o destino acontecer. O meu coração batia depressa, os cascos vinham devagar.
Troc, troc — como goteira num balde quando a chuva já vai parando, cada vez mais devagar. Mas sem a alegria de trovões ficando mais longe.
Troc, troc — como se o cavaleiro quisesse prestar atenção à beira da estrada, talvez soubesse de eu estar lá. Por que, com mil capetas banguelas, eu me arriscara?
Troc, troc — cascos infernais batendo no lajeado. A curiosidade, traiçoeira amante dos desastrados, parecia agarrar-me a cabeça e puxá-la com a força de trezentos bois para eu a levantar e olhar entre os galhos. Mas eu sabia que não devia, que precisava, se possível, bater o coração mais baixo, até evitar a língua nos dentes para não fazer ruído. Qualquer ruído.
Troc, troc — bufado de narinas como um sopro úmido na nuca. Cada um de meus sete mil e duzentos pelos do corpo arrepiou e o calafrio desceu as costas, me fazendo contorcer. Confesso que me mijei como uma criança que ouve história de fantasma.
Troc, troc — cascos afastando. Pararam, ameaçaram voltar atrás, e eu com meia mão dentro da boca para os dentes morderem sem fazer barulho. Um relincho fez alguns passarinhos voarem. Felizes eles, podem voar. Mas nem todos. Alguns ficaram, mortos de medo, como folhas secas.
Troc, troc — pela escuridão que aumentava entendi que o animal se afastava, mas demorou a coragem de me mexer, mesmo depois que aquele vermelho esquisito acabou e eu já teria podido até gritar.
Devo ter ficado horas ali parado, sem dormir e sem mexer. Passei a noite entre cochilos curtos, até que a lua virou no céu e eu a vi de frente, já bem descida e pronta para se por. Então acabou a paralisia e voltei à estrada. Não sentia mais coceira no pé e nem o incômodo da botina. Estava melhor que em toda a vida, andando como anjo pelas nuvens. Com a lua no céu a paisagem se abria e vi que estava perto e que a estrada estava marcada pelos rastros do que parecia um cavalo imenso, cujas ferraduras cortaram até a pedra. A estrada desceu até a porteira no caminho da casa. Tão perto.
Nas montanhas um dedo rosado penetrou as cortinas pesadas da madrugada, lambuzando de luzes delicadas uma franja de céu ainda estreitinha, mas confortável, graças a Deus. Um relincho rosnado, o lamento medonho de uma criatura do inferno impactou o ar, como se mil cavalos morressem, e o tropel voltou, na potência de cascos sobrenaturais, pela estrada do outro lado do vale, a estrada que se encontrava na encruzilhada logo em frente da última subida.
Então corri, corri o quanto pude, a cortar atalhos pelo pasto. Cheguei depressa, mais tropeçando incerto do que seguindo um rumo. Atirei-me no rio para tirar do corpo o cheiro de poeira e da urina, lavei do jeito que deu, e subi pelo meio do pasto. Pelo trilho faltou coragem, só se já tivesse amanhecido.
Passei no varal e recolhi uma manta para me enrolar e espantar o frio e contornei a casa, procurando a tulha para esconder. Então o tropel chegou ao terreiro pelos fundos, a menos de dez metros! Senti o sangue passar nas minhas veias como barro que uma criança aperta na mão. Aguardei com esperança alguém desmontar, mas não.
Então o animal espojou e estrebuchou no chão, levantou uma poeira que dobrou a esquina e que apareceu acima do telhado. Quando o ruído diminuiu, a curiosidade me chamou. Era por querer ver se era verdade que eu tinha enfrentado a noite de perigo, andando pelas quebradas aonde o homem de bem não deve ir. Mas eu seria um frouxo se voltasse dali.
No terreiro dos fundos, deitada no chão como criança que mal nasceu, e coberta de poeira eu a vi. Aproximei-me sem que me visse. Ela tentou se levantar e estendeu os braços até a porta da casa. Gotas grossas de suor caíam de seus cotovelos e escorriam pelas suas costas nuas. Com muita dificuldade ela se pôs de quatro e tentou arrastar-se. Então me viu pelo canto de um olho e virou devagar na minha direção, como se cada músculo estivesse no limite.
Ela me olhou, cheia de vergonha e dor, mas não disse nada. Tentou de novo se levantar, mas os joelhos escorregaram na poeira e tinha de usar os braços para se apoiar. Só então me dei conta de que talvez devesse ajudar. Ela se assustou com o meu primeiro movimento. Estremeceu, estendeu um braço em minha direção como se quisesse me impedir, mas não teria forças.
— Posso ajudar? — Só resmungos. Repeti a pergunta.
— Some daqui — foi o que, por fim, deu para entender de sua voz rouca.
Mas eu não saí. Eu não tinha ido até ali para voltar antes de saber. Filipa, a mula. Eu via com meus próprios olhos, mas queria ver mais, porque, de um jeito que só se explica por artes do demo, eu não estava com nojo e nem queria ir embora. Filipa, a mula.
Exausta, envergonhada e imunda; ela só queria lavar-se na bica, entrar em casa e esquecer de outra noite a assombrar o mundo. Mas ela cambaleava, apoiou-se no batente da porta, os joelhos ralados se dobraram. Caiu de novo. Cheguei mais perto, abaixei-me e procurei onde segurar. Ela xingou, tentou se debater.
— Sai daqui! Não me rele a mão!
Saí de perto, mas não fui embora. Ela finalmente conseguiu se arrastar até a bica. Perdeu a vergonha, tratou de se lavar, e eu lá olhando. A água fria relaxou, curou um pouco o cansaço e o sabão lavou um pouco da dor. Na careta dela era impossível enxergar o limite entre a água, a lágrima e o suor.
Ela saiu da bica, deu-me as costas, fingiu que eu nem estava. Tateou a porta e destravou a tramela.
— Filipa, posso lhe falar?
Ela me disse alguma coisa em uma voz tão rouca e raivosa que tive medo que ela me mordesse ou me escoiceasse se eu entrasse naquela casa. Então o calor do sol finalmente me tocou e percebi onde estava, que estava nu, que a noite acabara e eu sobrevivera, que um belo novo dia entrava. Mas também percebi o fundo de verdade do que o povo dizia, e tive medo daquela sexta feira que começava, da Paixão de Nosso Senhor.
Busquei as minhas roupas, vesti-me nelas e saí em procura de meu cavalo. Comi dos matos, dormi nas moitas, escondi-me dos bichos. Queria voltar para a casa da madrinha, mas tive a sorte de não conseguir antes da noite. Daí para a frente eu não me lembro mais de nada.
Deus me livre.