São muitos os brasileiros que reclamam da dificuldade da língua portuguesa. Para a grande maioria das pessoas, as “dificuldades” do idioma pátrio são praticamente um fato incontestável porque esta ideia se normalizou no imaginário coletivo, fazem parte das conversas dos estudantes desde as fases iniciais do Ensino Fundamental e vão se mantendo nas discussões familiares, nos cursinhos, no local de trabalho. Português é uma língua difícil, que precisa ser estudada com afinco, que pouca gente sabe usar direito. Fica-se a um passo de dizer que a língua é um entrave ultrapassado de antanho, que cabia abandonar por uma “melhor”. E, como se sabe, qualquer coisa que venha dos Estados Unidos é melhor.
Uma análise mais detida do tema, porém, nos mostra que essa opinião sobre a dificuldade do português não resiste a cinco minutos de dedicação. De fato, a ideia de que o português seja uma língua difícil reflete falta de experiência no estudo de línguas estrangeiras, e a sua versão extrema, de que o português seria particularmente difícil, é apenas um atestado de ignorância. Mais uma vez, **como se sabe*, o único recurso natural inesgotável do Brasil.
Eu cresci entre pessoas que frequentemente diziam que nosso português era uma língua bastante difícil de se aprender e, principalmente, de se empregar corretamente. Muitos diziam que era “a língua mais difícil do mundo”. O tempo me ensinou a questionar o que pode uma só pessoa saber a respeito de todo o resto do mundo. Isso me deu humildade e perspectiva.
A percepção dos brasileiros sobre sua língua vai frontalmente contra a percepção dos estrangeiros que decidem estudá-la. Enquanto nós tendemos a achar o português é uma obra cavilosa do demônio, feita para nos humilhar, os estrangeiros classificam-no, numa escala de 1 a 5 graus de dificuldade, exatamente no primeiro nível!
Você não leu errado. Para os estudiosos estrangeiros, nosso português se classifica no grupo das línguas mais fáceis do mundo, juntamente com africâner, espanhol, holandês, francês, italiano, norueguês, romeno, dinamarquês e sueco. São línguas que não possuem declinação nominal, apresentam pouca irregularidade gramatical e grande coincidência de vocabulário entre si. No segundo nível estaria o alemão, principalmente, por causa de uma gramática mais complexa. No terceiro nível, indonésio, malaísio e suaíle, por causa de uma gramática muito diferente, apesar de simples e de um vocabulário sem coincidências entre si ou com as línguas ocidentais. No quarto nível estão as línguas de gramática complexa e vocabulário não muito semelhante entre si ou em relação às línguas ocidentais, como russo, polonês, finlandês, grego, húngaro, hebraico, islandês, persa, turco, ucraniano e hindi/urdu. Finalmente, no quinto nível, estariam as línguas que, ademais de todas as características do quarto nível, teriam também sistemas de escrita complexos, grande irregularidade gramatical e pouca semelhança gramatical ou léxica, como árabe, mandarim, japonês, coreano e cantonês.
Colocando em perspectiva, conforme a tabela acima, fica claro que o português não é tão difícil. O que ocorre é que a maioria das pessoas sequer consegue imaginar de quantas maneiras uma língua pode ser difícil porque nunca estudaram outra língua, ou só estudaram o inglês, que é ilusoriamente simples.
O tempo me mostrou que os que reclamam das dificuldades da língua portuguesa não estão, de fato, reclamando da língua em si, mas de nosso sistema educacional e de nossa estrutura social baseada em privilégios.
Aqueles que encontram dificuldades com a língua e que passam a reclamar dela pertencem a uma de duas categorias:
- Aqueles que não a aprenderam suficientemente,
- Aqueles que desejam valorizar seu aprendizado.
Os primeiros correspondem à grande maioria, claro. Nunca é pouco lembrar que, como dizia Darcy Ribeiro, “a falha de nosso sistema educacional não é uma falha, é um desígnio.” Não é possível acreditar em mera incompetência quando apenas 8% dos formandos do ensino médio têm condições plenas de compreender e expressar-se. A pura incompetência não poderia obter um resultado tão forte, isso requer planejamento, supervisão e controle.
Uma das sabedorias básicas da vida é a de que nada é fácil para quem não sabe (embora muitas coisas ainda sejam difíceis até para quem aprendeu). Se apenas 8% dos brasileiros têm conhecimento pleno da língua para se fazerem compreender e para compreenderem a outrem, as conclusões óbvias são de que:
- Tais pessoas necessariamente enxergarão na língua uma complexidade maior que a real, assim como o leigo enxerga absurda complexidade em um motor de carro.
- Na ausência de conhecimento real, não há como diferenciar entre a informação verdadeira e a falsa, o que leva as pessoas a aceitarem como corretas várias coisas absurdas.
- No máximo seriam esses 8% as pessoas capacitadas a ter uma opinião razoável sobre a dificuldade do português: as demais não têm conhecimento suficiente para opinar.
A coisa piora se pensarmos que é normal que a falta de experiência de mundo nos leve a ter opiniões equivocadas, até mesmo quando temos estudo. Antes de nos penitenciarmos por nosso provincianismo, vamos lembrar que o Brasil está em uma posição marginal do mundo, no continentes que menos interage com os demais. Muito do que sabemos ou achamos que sabemos é fruto de estudo, é cultura “livresca”. A verdade é que somente uma percentagem mínima de nós temos “experiência do mundo” para podermos falar de cadeira sobre coisas que envolvam comparativos culturais.
Esse relativo isolamento é um dos fatores que explicam a idolatria pelo exótico, que sempre nos parece “melhor”. Entre os autores europeus, o exotismo era compreendido como uma forma sincera de homenagem ou troca cultural. Austríacos faziam óperas em italiano ambientadas na Espanha e tudo parecia muito bem. Aqui na América do Sul, o exotismo é uma forma de emulação, uma tentativa de aproximação. Imitamos autores franceses, citamos provérbios ingleses, ambientamos histórias em Budapeste etc. porque queremos reivindicar um lugar no centro do qual não fazemos parte.
A língua é parte dessa barreira, na visão ignorante de muitos (mesmo sendo uma língua de origem europeia). Imagine quão maior não seria a pressão se falássemos tupi em vez de português!
Tudo isso já seria complicaria bastante se não houvesse no Brasil uma cultura do obscurantismo.
Em primeiro lugar, mais uma vez, temos de descontar que aquilo que parece obscuro para a maioria da população pode não o ser, de fato. Se temos somente 8% de nossos cidadãos plenamente fluentes na língua, a opinião que os outros 92% tenham sobre a claridade do que se escreve não deve ser tida em grande conta, assim como a facilidade do conserto de um automóvel não precisa ser avaliada por quem não é mecânico.
É verdade que a maior parte da gente se intimida pelos textos escritos unicamente porque não sabe ler direito, e culpa o texto pela própria ignorância. Ninguém deixará de transferir a culpa para fora de si, se puder, e a língua, essa Geni, não responde às acusações que lhe fazemos, então culpemo-la.
Mas é também verdade que há muita gente que se esmera em tornar o texto mais difícil do que ele precisava ser. No Brasil a língua é muitas vezes usada como uma ferramenta de exclusão, através da qual se seleciona quem poderá ter acesso à informação, requerendo intermediação de um doutor para que coisas simples do dia-a-dia sejam efetivadas. Se os textos fossem redigidos com simplicidade e clareza nós não teríamos demanda para um milhão de advogados (contados apenas os que obtiveram registro na OAB).
Em uma cultura ignorante como a nossa, na qual mesmo um texto de complexidade moderada como esse será visto pela maioria do povo como uma abusiva parede de texto do tipo Nemly e Nemlerey, a capacidade de turvar adicionalmente o entendimento de um conteúdo é uma forma de exibir-se. O texto ilegível possui uma aura “arcana” e quase poética.
A doença da complexidade proposital é particularmente encontrada entre os profissionais da Lei e da Saúde, cujas faculdades parecem ter reimplementado as técnicas do antigo Oráculo de Delfos, tornando seus conhecimentos acessíveis apenas aos iniciados. No Brasil, sem a intermediação de, no mínimo, um farmacêutico, você não sabe a que medicamento um doutor o condenou. Porque essa coisa de respeitar o paciente dando-lhe a receita datilografada, impressa ou pelo menos escrita em caracteres humanamente legíveis é uma exigência irrazoável que não se deve fazer ao Esculápio, por exemplo, ou corremos o risco de sermos chamados de imbecis e analfabetos. O estudo do Direito é outra área onde antigos esoterismos parecem difundir-se. Hoje uma pessoa normal deixa o Ensino Médio e entra para uma faculdade, de que sairá daqui a cinco anos falando e escrevendo de um jeito peculiar, cheio de latinismos, com uma gramática entortada e um vocabulário extraído da edição do Caldas Aulete de 1898. A maioria das petições e decisões judiciais são tão cheias de formalismos e latim que da última vez que tentei ler uma em voz alta eu acidentalmente invoquei um antigo demônio.
Finalmente, no último elo de nosso círculo infernal de equívocos, temos os pobres professores, mal formados, mal pagos e subvalorizados, que tentam lustrar a própria importância em um cenário no qual o magistério não é visto como uma profissão de prestígio. Incapazes de reivindicar respeito por si mesmos, eles o fazem apresentando-se como os iniciadores daqueles que um dia deterão as profissões mais escolhidas. Sendo o português um elemento unificador de duas das três profissões de maior prestígio (especialmente em Direito), mostrar-se como capazes de ensiná-lo é uma maneira de inflar a própria relevância. Ademais, considerando o uso que os profissionais de Direito, principalmente, fazem dos conhecimentos adquiridos, propagandear as dificuldades e complexidades da língua serve aos seus interesses.
Um professor de português que apresente a estudantes de Direito a língua portuguesa como algo simples não seria demandado, porque esses estudantes querem a entrega de algo complicado que possam usar para obscurecer e distorcer.
Não há muito público, nos cursinhos de prestígio e nas faculdades, para a ideia do português como uma língua fácil porque uma parte significativa dos 8% que alcançaram a proficiência plena no idioma deseja preservar uma situação de privilégio que creem ter adquirido em função de seu domínio da nossa língua em seu aspecto arcano.
Você só tem a oportunidade de compreender o quanto nossa língua é fácil quando começa a estudar outras, especialmente se estuda espanhol ou francês.
Os métodos de ensino do português formal, baseados na gramática da exceção e na valorização do complexo, atendem a uma agenda. A simplicidade, infelizmente, fica nas fases iniciais do Ensino Fundamental.
E, acima de tudo, ignora-se que a língua formal seja um código à parte, ainda que semelhante, em relação à língua informal e falada. Antes mesmo de ensinarmos as crianças como falar e escrever a língua padrão, preocupamo-nos em matar sua auto-estima a dizer-lhes que elas falam “errado” por falarem (e portanto “serem”) o que são.
Fiquem estas reflexões. Venham as pedras.