Se concordarmos com Jiddhu Krishnamurti, que disse não ser grande prova de sanidade estar ajustado perfeitamente a uma sociedade doente, podemos assumir como corolário desta afirmação que “não é grande prova de genialidade ser reconhecido como brilhante por uma sociedade apagada”.
A sociedade brasileira é majoritariamente composta por pessoas apagadas, episódios como o que acaba de ocorrer com o “menino do Acre” servem para comprovar a profunda falta de noção coletiva que nos acomete. Bruno Borges não tem culpa das expectativas e diagnósticos que lhe foram impostos por sua família, por seus amigos e até mesmo pela sociedade na qual estava inserido. Não é justo que agora ele colha críticas cruéis à sua obra, que seja humilhado pelo que escreveu. Em uma sociedade funcional, formada por pessoas dotadas de um nível mínimo de cultura, uma pessoa como ele jamais seria tratada como foi, não teria a oportunidade de desenvolver os planos que executou e seu possível livro não chegaria ao mercado editorial. Mesmo na eventualidade de que isso ocorresse, nunca entraria na lista dos mais vendidos. Foi necessária uma longa série de horrores para que o “menino do Acre” chegasse aonde chegou. Estrangeiros que estejam contemplando o caso de longe devem estar estarrecidos conosco.
Porque Bruno Borges foi considerado um “gênio” pela família, por seus amigos e pela sociedade acreana, apesar de exibir sinais de distúrbios mentais sérios e tendências comportamentais autodestrutivas. A sua mãe, quem diria, é uma psicóloga, mas não viu no filho nada de anormal, viu “genialidade”, assim como os pais da nova era não veem as malcriações de seus filhos, mas apenas “crianças índigo” que precisam manifestar seus poderes, sei lá. Como eu já havia mencionado em um texto anterior intitulado “O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso”, uma das características da sociedade brasileira é cultuar a ignorância como uma virtù e a cultura como uma espécie de fragilidade santificada. A ignorância é “do mundo” e é uma força. A cultura é de fora do mundo e é uma debilidade. Resulta natural que a saúde se manifeste nos estúpidos e que os sábios morram cedo. Esses são os papeis esperados de cada um. Em uma sociedade preconceituosa e ignorante como a nossa, valoriza-se a “força” da ignorância, ligada às habilidades necessárias à vida diuturna, ao tempo em que se idealiza a necessidade da cultura e da inteligência, com seu preço. No passado, as famílias sacrificavam um filho à Igreja, ordenando-o padre, carreira alijada da ignorância mundana, próxima de Deus. Hoje a ordem religiosa não é o único caminho mais: pais da nova era acham lindo que seus filhos entretenham pensamentos grandiosos e que se mortifiquem em filosofias autodestrutivas. A fragilidade é uma forma de santificação, aproxima o homem de Deus, é o preço que se paga pelo conhecimento.
Assim, os sinais evidentes de que Bruno Borges não estava bem, de que não estava ajustado socialmente, de que tinha questões psicológicas (talvez psiquiátricas), não foram interpretados pela família e pela sociedade como um sinal de distúrbio, mas uma manifestação do sagrado, ao qual a inteligência está relacionada. Tal como Teresinha de Jesus (ou Marcelino Pão e Vinho), as fragilidades físicas e psicológicas do filho e amigo eram algo a se explorar, uma bênção de Deus.
Uma das limitações da mente ignorante, que não possui o entendimento mínimo de como ela própria funciona e de como a humanidade cria e processa o conhecimento, é justamente essa “espiritualização” do conhecimento, essa abordagem mística em relação à cultura, que chega ao fetichismo. A sabedoria, em vez de algo simples e prático, necessário e acessível a todo indivíduo, passa a ser vista como uma espécie de iluminação, da qual alguns indivíduos especiais são um repositório, eles adquirindo a missão de ser luzes em um mundo escuro.
Assim, quando um adolescente vara noites lendo em vez de ter horas adequadas de sono, isso não é visto como um sintoma de insônia ou estresse, mas como uma dedicação ascética ao aprendizado. Os pais chegam a cobrar dos filhos que “queimem pestanas” nas semanas e dias que antecedem a concursos e testes, porque essa penitência será recompensada por aprovações.
Assim, quando um adolescente se mostra incapaz de ter relacionamentos minimamente normais com pessoas de sua faixa etária, isso não é visto como sintoma de depressão ou de algum desajuste social que precisa ser tratado, mas como uma característica do “ser especial”. No passado esses adolescentes eram diagnosticados com uma “vocação religiosa” e internados pelo resto da vida em mosteiros.
Assim, quando um adolescente manifesta uma voracidade excessiva de leitura isto será visto como algo desejável no caso de a família estar interessada em adornar sua árvore genealógica com algum tipo de “místico”. Não importa o que esteja lendo, sempre será visto como positivo, pois o ignorante não pode conceber que existam livros nocivos, conhecimentos inúteis, informações erradas ou ideologias criminosas. O livro é um fetiche que possui o “mana” da cultura, serve de ponte entre o humano e o conhecimento que está além do humano. Raros são os pais que concebem que o filho possa correr algum risco na biblioteca, a companhia dos livros sempre será tida como “segura”. Não se imagina que ali possa haver, por exemplo, um Mein Kampf ou um Universo em Desencanto.
Assim, quando um adolescente começa a escrever copiosamente, não se pensará que seja meramente graforréia. Escrever é uma atividade que se supõe privativa, ou pelo menos característica, dos grandes gênios. Os ignorantes não ouviram John Lennon, que dizia que todo homem deveria “plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro” a fim de viver uma vida plena. Como não conseguem imaginar-se incompletos, não acham que seria sua obrigação também escrever — em vez disso, atribuem tal tarefa “salvífica” aos indivíduos excepcionais, aos gênios, àqueles que serão lembrados como a glória da sociedade. Pais que não leem também não lerão o que os filhos escrevem. Pais que não leem, mesmo que o leiam não conseguirão avaliar com isenção, em vez disso se deslumbrarão facilmente, especialmente com a obscuridade.
Para o ignorante quase tudo é obscuro porque ele não traz em si a luz que ilumina os recônditos. Daí considerar que as trevas são o estado natural do mundo, e não conseguir discernir entre o que é complexo (portanto difícil de compreender pela sua própria natureza) e o que é meramente asinino (difícil de compreender por mal escrito) ou desonesto (difícil de compreender porque deliberadamente escrito de forma obscura).
Em uma sociedade na qual o livro é um objeto de decoração para quem o compra e um mero ornamento de currículo para muitos que os escrevem, um adolescente com dificuldades de interação social desenvolve uma monomania pela literatura de cunho místico, adota hábitos estranhos, começa a falar de coisas que não fazem parte do dia a dia raso e escreve muitos livros, cifrados ainda por cima, ó meu Deus, mesmo que usando uma cifra baseada num código encontrado no Manual do Escoteiro Mirim, da Disney. Esse jovem não recebe ajuda de uma psicóloga (que ele tinha, de graça, dentro de casa) e nem é identificado em risco por uma assistente social. Em vez disso é percebido como “gênio”, seus delírios de grandeza são estimulados, suas opções estranhas são vistas como manifestações de uma espécie de santidade laica.
Isso poderia terminar como um caso constrangedor na sociedade local, mas a ignorância não está circunscrita ao Acre, muito pelo contrário. A mídia amplificou, o imenso rebanho de ignorantes que pasta por esse país afora comprou essa história, transformou-se o “menino do Acre” em um fenômeno da cultura pop, negando-lhe o direito de sair da adolescência na saudável e segura obscuridade, sem ter de enfrentar a tempestade de merda causada pela leitura de seus queridos diários.
Ele não teve o benefício que eu tive, de manter as minhas escritas “geniais” de adolescência ao abrigo de quem pudesse lembrar delas, de poder reelaborar o que talvez tivesse alguma utilidade. Não, o pobre rapaz foi jogado aos leões desse circo muito maior que o pequeno Acre. Por sorte ele é originário de uma família bastante rica, talvez tenham recursos e se mudem do Acre para outro país, onde ele poderá se recuperar da vergonha da exposição pública, ele que claramente tinha dificuldades com essa coisa de interagir com humanos.
O resultado é que, em vez de uma epifania ou um rito de passagem, ele enfrentará o fantasma disso:
Presunçoso, tolo e mal escrito, livro do “Menino do Acre” é um horror, por Bruno Casarin, no UOL. : “O problema, sinto informá-lo, é que será muito difícil uma obra tão mal escrita ajudar em alguma coisa. Como disse, não fiz nenhuma edição ou correção nas citações aqui utilizadas, que deixam claro o nível do texto do garoto.”
- “Menino do Acre” prestou um desserviço ao conhecimento, por Maicon Tenfen, da Veja.
- “Ainda hoje, para a imensa maioria dos brasileiros, livros são artefatos de gente doida, confusa, infeliz e esquizofrênica, ou seja, a própria fisionomia que o moleque mostrou na televisão. Em vez de difundir o conhecimento, como disse, o que Bruno fez foi reforçar estereótipos que continuam arraigados no imaginário nacional.”
- Livro do “Menino do Acre”, quais os ensinamentos de Bruno Borges…, por Cauê Muraro, do G1.
- “Ele tem aversão a sexo, gula e crase. Faz zero questão de parecer modesto (cita a si mesmo, inclusive). Gosta de usar termos associados a quem escreve difícil (”não obstante”, “antemão”, “entrementes”, “outrossim”, “amiúde”), mas não liga se a frase sai do nada e chega a lugar nenhum. Fiel ao “espírito do tempo”, arrisca até uma mesóclise eventual. Humor? Só do tipo involuntário…”
- O “Menino do Acre” e seu “grande” livro: Recorde de vendas significa qualidade?, por Fabiana Moura, do Woo Magazine.
- “Um tanto quanto ridículo, este seu primeiro volume, em que é preciso muita paciência e esforço para chegar ao final, uma vez que, em seu terceiro capítulo já se torna enfadonho e desinteressante, não honrou tanto assim a ação de marketing trabalhosa que teve…”
- Espécie de Policarpo Quaresma da filosofia, o “menino do Acre” talvez seja uma das maiores empulhações da história do Brasil, por Euler Frrança Belém, da Revista Bula.
- “Certos livros deveriam ser qualificados como terrorismo ecológico — um atentado às florestas —, então talvez seja melhor que fiquem ocultos.”
O caso serve como um alerta: se você vai chamar muita atenção sobre o seu trabalho, tente antes fazer um trabalho que mereça a atenção que você quer chamar. A vergonha é a recompensa do excesso de autoconfiança.