Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Silêncio

Publicado em: 20/08/2017
Originalmente escrito em Cataguases, agosto de 2003

Evaldo compraria todo o seu dinheiro em silêncio, se houvesse à venda em alguma loja. Costumava dizer aos amigos que no ruído estava a origem de todo o mal que havia no mundo. Eles achavam que era apenas uma frase de efeito, mas era algo que ele dizia para si mesmo com frequência — como, por exemplo, na manhã modorrenta de vinte de junho.

Sentiu-se como quem é arrancado do útero do sono. Havia um peso nos olhos e um silvo agressivo insistindo nos ouvidos, revoltados com buzinas, gritos, gotas de chuva e motores. A sensação dos passos dos vizinhos dos andares superiores incomodava, mesmo quando não era forte, porque anunciava um dia péssimo. Ruídos significam sempre algo de ruim.

Naquele dia, especialmente, sentiu-se golpeado pelo peso sonoro do mundo. Levantou-se da cama como se os braços e pernas fossem troncos de árvores, escovou os dentes sonambulamente, sedado pela saudade do sono e tentando bloquear o estardalhaço do edifício — aquela mistura de vozes e ruídos produzidos por felicidades e tristezas empacotadas em apartamentos contíguos, mas isoladas precariamente. Uma voz xinga, outra sussurra, pés que caminham cuidadosos, outros que pisoteiam o chão com calcanhares nus, reflexos sonoros da presença de pessoas, algumas delas completamente insensíveis às sensibilidades alheias. “O inferno é um grande edifício de apartamentos”.

Abriu a torneira da pia devagar, e pouco, para que não rangesse. Qualquer mínimo ruído acrescentaria uma gota d’água ao oceano de ofensas e distúrbios que já estava acumulado na manhã. Guardou a escova e o tubo de creme dental, também com um cuidado quase ritual. Lavou as mãos sem espargir muita água, esfregou-as com sofreguidão e esmero, mas no possível silêncio.

A algazarra acompanhou-o durante o café, atrapalhando até o sorriso belo de Jussara, cujos seios morenos saltavam do roupão felpudo, úmidos do banho matinal.

Tudo ficou pior depois que abriu a porta. O longo corredor deserto ecoava misteriosos sons que saíam de dentro das portas fechadas, como o salão de uma caverna ecoando ameaçadores ruídos de monstros que se ocultam nas profundezas da escuridão em um filme de horror. Das janelas vinha o vento quente do verão e o buzinaço insolente da rua. Teve até medo de premer o botão do elevador, mas ele chegou por si mesmo, trazendo alguém que subia. Outra pessoa que vivia perto dele, tão perto que nunca se tocavam e nem sabiam o nome um do outro. Precariamente sabiam seus sexos, baseados na hoje incerta inferência das roupas.

Cumprimentos trocados sem sorrisos. Vizinhos não precisam disso. Vizinhos se conhecem apenas na hora da morte. Ou nem isso. Talvez na hora do crime. Sim, certamente. Mate-se ou seja morto e seus vizinhos todos o conhecem, pelo menos diante das câmeras da televisão, o circo moderno.

Quando chegou no térreo e as portas se abriram recebeu no rosto a pancada do mundo, aquela dose de presenças atrevidas que se amassam e se completam em uma grande parede de barulho que se arrasta por entre as ruas esmagando as pessoas e anulando as individualidades.

Era preciso fazer força para erguer um pé do chão, movê-lo no ar e depois aplicar-se de volta no piso para completar o passo — e cada ciclo desses tomava uma energia enorme, a ponto de Evaldo já prever que retornaria à noite tão esgotado que seu sono o despejaria cedo em sua cama, anestesiado se vivesse aquele dia da mesma forma que os outros.

Andava como se estivesse em um escafandro. Apenas não havia peixes nadando em volta, mas seres humanos que pareciam bonecos de madeira expelindo nuvenzinhas de fumaça pelas narinas. Em frente a uma loja de eletrodomésticos, contemplou as vitrinas cheias das luzes contraditórias de dezenas de aparelhos — um ruído silencioso, tão incômodo quanto os gritos, buzinas e roncos dos motores que disputavam com o canto de pássaros a atenção das pessoas indistintas que andavam pelas calçadas, entre ambulantes e alto-falantes…

Outra vez sentiu-se quase a perder o controle das emoções em público. Fez um esforço para manter a cabeça sobre o pescoço e traiu seus sentimentos apenas através de uma careta, que logo passou.

Ajeitou a gravata pendurada no pescoço, a forca inversa do homem urbano, e olhou para dentro de si, onde haviam cifras e números e nomes e senhas e títulos bancários. A liberdade, a indecente liberdade, a louca e intolerável liberdade…

Muita coisa mudara, basicamente cifras e números e nomes e senhas e títulos bancários. Ou seja, somente as coisas que realmente importam — ou talvez não. Em sua mão luzia o bilhete de loteria como o cupom dourado de Willie Wonka.

Ninguém sabia. Seu plano era perfeito. Esperara cinco semanas, guardando o bilhete no canto mais oculto da carteira. Gastara aqueles dias maquinando o que fazer. Poderia ir à forra de tanta gente que o humilhara, poderia comprar tanta coisa e tanta gente… Mas não. Seria baixeza demais. Decidira, em vez disso, ser feliz, se possível longe.

Tinham sido tantos anos, caminhos errados, bobagens, inocência. Tinha sido tudo, menos feliz. Mas naquela tarde, ao final de trinta e sete tardes de planos, sabia exatamente aonde ir e o que fazer. E fez dessa esperança a sua resistência contra a contínua agressão de tudo contra si: depois do almoço ligou para o escritório e disse, secamente, que tinha um compromisso e que não voltaria. Nem no dia seguinte e nem no outro. Secretamente sabia que na segunda-feira seguinte estariam demitindo-no, finalmente providos de um motivo, os imbecis.

*

Chegou em casa com a gravata bamba, o paletó jogado sobre as costas e o cabelo despenteado. Um forte odor de uísque doze anos puro malte saía de sua boca.

— Meu Deus, Evaldo. O que aconteceu?

— Comprei-a — ele não explicou nada. Não precisava. Levaria a mulher a tiracolo em seu sonho.

— Comprou o quê?

— Aquela casa de que falei. Hoje fui vê-la. Está legalizada e o preço é razoável. Vou financiá-la em dez anos e usar nossa poupança para reformá-la.

— Ah, querido!

Aquele foi um dia feliz. Jussara se entusiasmou com a notícia da nova casa e mais ainda com o jantar romântico a dois na trattoria do Giuseppe. Seria o último se Evaldo tivesse planos de novo rico. Em vez disso se imaginava ainda comendo a massa caseira do romano bigodudo por muitos anos.

Brindaram com o melhor rosso da adega, uma extravagância:

— Parece até que você ganhou na loteria, querido.

— Quando casei com você, sim.

Não. Ela não precisava saber. Seria bastante viverem em uma casa maravilhosa, com dinheiro aparecendo magicamente todo mês. Se ela perguntasse, diria que fora promovido ou que arranjara outra carreira. Talvez fosse boa ideia alugar um escritório no centro para passar algumas horas por dia fingindo trabalhar. Seria mais fácil se os ruídos da cidade não o incomodassem tanto. Mas daria um jeito.

— Você me falou muito da tal casa, mas eu nem sei onde é, meu amor. Será que vou gostar?

Como não? Ofendeu-se ele. Tinha que gostar. Era óbvio que adoraria aquele palacete de conto de fadas.

— Amanhã de manhã vamos vê-la. Você vai achar adorável.

A casa era uma imponente construção numa dessas ruas tranquilas que foram chiques num passado distante, mas hoje são decadentes e feias. Estava semi-abandonada, mas ainda se podia ver sua beleza através do mato e do mofo.

Jussara ficou chocada. Não esperava que a casa finalmente comprada após anos de sacrifícios fosse aquela construção que parecia saída de um velho filme de terror. Não quis estragar a felicidade quase infantil com que Evaldo contemplava o edifício, como se o olhar já bastasse para remover o entulho, as teias de aranha e o mato alto que cobria o quintal. Por isso ficou em silêncio, vendo-o andar de um lado para outro, sorridente como uma criança mostrando um brinquedo novo.

— Vamos completar o muro no mesmo padrão. Veja essa construção: esse muro resistiria ao choque de um tanque de guerra! É todo de pedras e cimento!

— Para que um muro tão grosso e tão alto em volta da casa toda, Evaldo? Assim vão achar que nós queremos nos esconder do mundo!

— Mas nós queremos, ou não?

Jussara engoliu em seco. Ia dizer alguma coisa, mas ele continuava com os planos:

— Depois de limpar por dentro, vou restaurar das paredes. Reparou que estão cobertas de enfeites em estuque?

Jussara olhava os borrões que pareciam restos de cimento deixados por um pedreiro porco. Prestando mais atenção dava para notar algumas formas convencionais: flores, folhas de parreira, asinhas de anjinhos. Faltando pedaços aqui e ali.

— Vai ser um trabalho de paciência, uma verdadeira restauração. Mas as paredes vão ficar lindas! Cada cômodo tem uma barra de estuque no alto, com figuras mitológicas, que eram coloridas! Você já se imaginou vivendo em uma casa de paredes cobertas de figuras tridimensionais?

Jussara tentou imaginar e só conseguiu ficar desagradada. Nunca fora fã de mitologia e temia que aquelas cenas acabassem criando pesadelos.

— O telhado até que está bom, vai ser barato consertar. Não existe mais madeira tão boa hoje em dia. Olhe estes caibros e ripas: são de madeira de lei, que absurdo! É uma sorte não terem roubado!

“Ao menos um telhado”, pensava Jussara.

— Depois um forro de tabuinhas para os lustres…

Nos planos de Evaldo, felizmente, a visão horrorosa do lado de dentro do telhado ficaria escondida — e ainda ganhariam um sótão para as quinquilharias.

— Nada de instalações elétricas: deve ter sido abandonada antes que a eletricidade chegasse, ou então os moradores continuaram com lampiões— ou talvez usaram instalações improvisadas, que sumiram. Bem, com certeza instalações internas a casa não teve, deve ter sido construída bem uns cinquenta anos antes de inventarem conduítes.

Naquele momento Jussara já se perguntava se a casa valia o que Evaldo pagara. A reforma — embora não precisasse incluir novas janelas, portas, paredes ou estrutura do telhado — prometia ser cara.

— Não seria mais barato simplesmente raspar estas paredes e pintar tudo de branco ou pôr gesso?

Evaldo se sentiu ofendido:

— De jeito maneira! O que você está pensando? Você diria isso se fosse reformar a Capela Sistina?

Jussara se sentiu um tanto burra por ter dito o que dissera e se fechou mais um pouquinho. Saindo para o quintal, ainda maravilhado, Evaldo teve tempo de olhar para trás e comentar:

— Esse assoalho de tábuas, depois que for lixado e encerado, vai ficar lindo, vai brilhar ao sol.

Ela olhou para trás também e imaginou como seria lúgubre viver em uma casa de chão escuro e reluzente, cujas paredes não eram lisas, mas enfeitadas de cenas vívidas, e cujas imensas janelas começavam a trinta centímetros do chão e terminavam a quarenta do teto, deixando entrar uma quantidade obscena de luz. Evaldo ainda a admirava:

— Que maravilha! Que pechincha! Um imóvel desses deveria estar tombado pelo patrimônio histórico!

— Bem servia para um museu — cortou Jussara.

— Realmente — concordou Evaldo, meio sem notar o sentido secundário do que ela dissera.

Olhou para o amplo espaço do jardim:

— Você vai querer um jardim cheio de flores aqui? Ou prefere uma piscina? Ou talvez um caramanchão?

Ao menos no jardim ela ficava menos alijada do sonho dele:

— Acho que dá para fazer os três: a piscina nos fundos, o caramanchão, do lado e o jardim, na frente.

Então os três caminharam até a parte mais pitoresca da construção, um lado em que não havia muro, apenas os restos do que fora, muitos anos antes, uma cerquinha baixa de madeira. Ali o terreno da casa terminava em um muro de arrimo e despencava na encosta do morro, pelo menos uns cem metros até uma ruazinha que passava lá embaixo. Do outro lado do vale o sol se punha atrás de umas colinas baixas.

Apesar de tudo — disse Jussara, mais com esperança que com otimismo — o lugar é lindo! Vai ser bom morar aqui!

*

Mudaram-se numa sexta-feira à tarde, quatro meses depois. A reforma acabou por custar bem mais do que o planejado, mas Evaldo não se importava, para espanto da mulher. A velha mansão se transformara numa residência aprazível, que proporcionava aos moradores o tipo de isolamento que hoje em dia é difícil conseguir: ficando a uns bons seis quilômetros do centro da cidade, em um bairro quase rural.

Esse isolamento fora uma das coisas que mais dera assunto para discussões. O casal não conseguira entrar em um acordo e Evaldo resolvera simplesmente bater o pé em seu objetivo, o sonho de sua vida. A contragosto Jussara se mudou, conformada com a perspectiva de que o progresso do bairro trouxesse vizinhos e um pouco de delicioso ruído urbano.

A casa ficava no fim de uma rua íngreme, ladeada por casas simples e pequenas, sem comércio ou sociedade: somente ao pé do morro havia padaria, farmácia e precárias comodidades urbanas e um quilômetro adiante o bairro começava a tomar jeito de cidade. Como era uma ladeira respeitável, o acesso mais usado seria pelos fundos, através de uma estrada particular que serpenteava pela encosta, entre várias pequenas chácaras, todas com sedes minúsculas e semi-arruinadas.

Durante os meses de reforma Evaldo desencavara a história do lugar, que fora sede de uma opulenta fazenda nos tempos do café. Construída no alto da colina mais imponente num raio de quilômetros, permitia ao antigo barão avaliar suas propriedades como o pirata ao timão de um navio. Depois do café, a antiga propriedade fora retalhada em lotes para dar residência a todo tipo de gente que gravitava em torno das novas pequenas propriedades produtoras de rapadura e de leite, ou da estrada de ferro que continuava passando pelo vale. As pequenas chácaras eram de propriedade dos descendentes dos primeiros posseiros italianos. O bairro mais próximo, herança deixada pelos ex-escravos e agregados do barão, pagos em terras quando o dinheiro do velho acabou.

Em uma cidade já de porte bastante grande, aquele bairro parecia uma realidade à parte, onde o tempo andava mais devagar. Talvez tenha sido isso que mais desagradou Jussara quando ela chegou à janela do que seria seu quarto e contemplou as casas do vale, a ruazinha estreita que descia o morro e o aspecto descorado das chácaras decadentes que se espalhavam pelas partes baixas.

Nos primeiros dias pôde perceber que ali não dava para ser feliz. Havia um silêncio tumular naquela residência, salpicado, muito raramente, por distantes sons de carros acelerando ou as explosões distantes de uma pedreira, que pareciam trovões de uma chuva invisível. De janelas fechadas não se ouvia nada que houvesse no mundo, como se a casa tivesse entrado por um portal dimensional e ido parar no limbo. E ela era tão jovem, tão acostumada com festa e alegria.

Evaldo, porém, amava cada vez mais tudo aquilo: o silêncio já o fazia feliz. Muitas vezes se pegava deitado num dos grossos tapetes que comprara e ficava por muito tempo de olhos fechados, deleitando-se em não ouvir coisa alguma. Tudo que fizera naquela casa parecia justamente conspirar para que fosse até mais silenciosa do que normalmente seria: o assoalho fora cuidadosamente assentado sob uma camada de serragem para que os passos não ressoassem, as janelas haviam sido reguladas para que tivessem encaixes perfeitos e não deixassem ruído passar e tinham painéis retráteis de madeira que cobriam os vidros para sufocar alguma intrusa luz que ousasse algo.

Todas as manhãs ele saía para trabalhar taciturno, mas quando quando voltava, era como se estivesse retornando aos braços do amor de sua vida. Jussara não se enganou pensando que fosse de felicidade ao revê-la, sentia que estava intrusa de algum modo, que sua presença incomodava. Por fim, suspirando, achou em si a constatação do quanto é injusto que o homem compre a casa de seus sonhos, mas a mulher tenha que viver nela a maior parte do tempo.

Evaldo argumentava que aquela tranquilidade toda era o que Jussara precisava para dedicar-se aos estudos, para aprender, para ler, escrever, para, enfim, buscar seus sonhos. Ela, no entanto, em vez de se sentir convidada ao aprendizado, sentia naquele silêncio atordoante antes uma anestesia que a tolhia em tudo, que parecia apagar o brilho de seus pensamentos e matava seus sonhos. Inebriada ou atenuada pela atmosfera sedativa do lugar, recolhia-se cada vez mais. Sentia-se como Rapunzel na torre, numa história em que Evaldo ocupava o lugar da feiticeira com a sua maleta e o terno rigoroso fazendo às vezes de vassoura e manto negro.

No começo sonhara que seria bom morar em um lugar com tanto espaço para tudo; mas logo sentiu muito diferente. Os cômodos enormes, alguns tão grandes que pareciam caber apartamentos dentro; as portas de três metros de altura; as janelas que rasgavam as paredes do teto até o chão; eram coisas que a faziam sentir-se pequena, insuficiente, instável.

Parte do problema era que Evaldo não se importou em mobiliar toda a casa, embora tivesse esbanjado na reforma. Jussara supunha que havia ficado sem dinheiro, mas com o tempo passou a supor coisas piores. Enquanto acalentava receios, contemplava os cômodos preenchidos ralamente pela mobília pequena do apartamento de recém casados, que ficava perdida na imensidade. Ele também restaurara os poucos móveis originais da casa que os cupins não tinham comprometido: rudes peças de madeira maciça que pareciam saídas de um filme de vampiros — uma mesa retangular onde vinte pessoas jantariam sem aperto, um guarda-roupas de portas entalhadas em madeira escura, estantes que caberiam uma biblioteca. Por todo lado ela via aquelas peças que haviam pertencido a estranhos, gente cujas almas eram tão distantes. E havia também cômodos vazios, ou onde um móvel sozinho imperava. Nesses a voz ecoava alto, tinha-se a impressão de que fantasmas respondiam das paredes. Poderia dar uma festa em cada cômodo e a casa ainda pareceria uma solitária.

Sua saída para isso foi longe de casa. Adquiriu o hábito de visitar mãe, irmãos, amigas, todo mundo que conhecesse. Reatou amizades, convencendo cada conhecida a retribuir visita. Essa rotina consumia os dias inteiros, tornando necessário voltar para casa com comida comprada, mas eram momentos felizes os que passava longe.

Quando Evaldo percebeu, certa tristeza o nublou: não imaginava que a mulher fosse detestar a casa. Mas superou pensando que era até melhor que não ficasse tão absorta, afinal. Por isso resolveu substituir a tristeza por um forte estímulo aos projetos dela, e enfim contou-lhe da loteria, do real propósito das longas horas em que ficava longe de casa, tantas coisas que lhe ocultara.

Ela ouviu tudo, evidentemente espantada. Quando ele terminou, se disse aliviada. Talvez estivesse mesmo. Saiu de perto dele e caminhou pela casa, contemplando fixamente tudo, como uma criança perdida na casa de espelhos de um parque. Estranhamente, porém, os espelhos metafóricos que havia por toda parte não a refletiam, mas a um homem que tinha apenas a aparência do Evaldo com quem se casara.

*

Evaldo estava pela rua, mais uma vez buscando bons investimentos, quando o celular tocou: “Mamãe não está bem, fico com ela de companhia hoje”. Dada assim, sem jeito, a notícia feria, parecia promessa de algo mais. Mas nada que empalidecesse a beleza de estar sozinho no silêncio da mansão que aos poucos se tornava no prazer maior da vida.

Chegou em casa e encontrou solidão densa, quase líquida, embebendo os móveis e as paredes. Sentou-se à imensa mesa de jantar, espalhou sobre ela alguns livros e o notebook. Cada objeto que caía parecia tocar a corda de algum instrumento no além. Comeu um lanche encomendado pelo telefone e conectou-se à internet. Que bom ouvir o toque de cada tecla receosamente como se ele fosse despertar fantasmas!

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