Um amigo me perguntou se eu considerava uma boa ideia para uma história de ficção a possibilidade de magicamente matar as piores pessoas do mundo todas de uma vez, até o limite de cinco por cento da população. Eu não gosto de soluções mágicas, então, como você deve estar a imaginar, convenci-o a encontrar outra maneira de dar início ao fim da civilização humana na Terra. O meu amigo me olhou espantado e disse: “Mas eu imaginei que assim eu acabaria com o mal no mundo e o tornaria um lugar quase paradisíaco.”
Meu amigo desconhece uma verdade universal, a de que o inferno é o lugar do universo imaginário onde se concentraria a maior quantidade de gente cheia de boas intenções, como as dele. Em nome do bem já se fez tanta maldade que a gente nem sabe por onde começar a contar. Tudo o que eu lhe disse foi que matar gente não é um bom começo para uma utopia, que mãos sujas de sangue não são boas para construir a paz. São palavras vazias, em que eu não acredito muito, mas o meu amigo estava tão convencido de que poderia salvar o mundo através dessa hecatombe que eu preferi fazê-lo desistir. Vai que ele é algum tipo de ser alienígena onipotente, capaz de executar o que apenas teorizava?
Então a nossa conversa girou sobre as consequências que tamanha mortandade causaria entre a gente de bem. Que seriam, afinal, as maiores prejudicadas pelo apertar do metafórico botão.
Implicações morais à parte, suspeito que remover a nata suja de um mundo corrupto poderia fazer estragar o leite bom que se esconde abaixo. Primeiramente, tal como lhe disse, cinco por cento da humanidade é gente para não se caber mais. Quer dizer uma em cada vinte pessoas em todos os lugares. Do planeta inteiro estaríamos “terminando” as vidas de trezentas e cinquenta milhões de pessoas — uma vez e meia a população do Brasil.
Aqui na cidadezinha onde vivo teríamos 180 mortos da noite para o dia. Suponho, para efeito dramático, que meu amigo faria ao Brasil o favor de apertar o botão de madrugada, para minimizar a possibilidade de morrer gente “inocente” por causa do passamento inesperado de motoristas, médicos em cirurgia, operários de construção civil etc. Esta é, aliás, a primeira das consequências incontroláveis de se dar um fim repentino à vida de quem achamos que não merece viver. Não há estatísticas disso, mas de trás da minha orelha eu tiro a ideia de que, talvez, em em cada vinte desses presuntos súbitos causaria a morte (ou algum tipo de ferimento) em uma certa quantidade de outras pessoas.
Para se ter uma ideia do que 180 mortos significam para a pequena Pequeri, eu vos informo, extraoficialmente, que temos um único (e nada gigantesco) cemitério, adequado para uma taxa de mortalidade que gira em torno de um por cento ao ano. Isso quer dizer que aqui morrem cerca de 36 pessoas cada doze meses, uma média de um falecimento a cada semana e meia, mais ou menos. Nesse ritmo de esticamento de canelas, somente um coveiro é suficiente para o preparo da propriedade derradeira dos que partem. Tão suficiente que o homem tem de complementar sua jornada de trabalho realizando obras de conservação do dito cemitério, e frequentemente fora dele.
Mas com a portentosa ocorrência de 180 mortes simultâneas, a administração pública municipal estará diante de uma crise, humanitária e sanitária, como jamais se viu na história do mundo. Para cavar tantas covas seria preciso dar uma cavadeira ou um enxadão para cada mão eficiente do serviço público local. A cidade tem, a qualquer tempo, contanto empregados municipais e estaduais, uns trezentos servidores, mas destes a maioria são pessoas que não sabem cavar ou não cavariam depressa nem por amor de suas vidas: escriturários, professores, secretários… gente de mão fina e que, muitos, nem têm o hábito de jardinagem. Se não plantam nem roseiras, quem dirá plantar gente!
Cavar uma sepultura não é exatamente um trabalho pequeno. Cavar 180 em um dia só é um tarefa digna de uma narrativa mitológica. Uma das dificuldades do serviço é que ele não pode ser feito cooperativamente: se dois tentam cavar a mesma, acabam se acotovelando ou, pior, acertando-se com pás e picaretas. Assim, cada cova terá de ser o trabalho de um homem só (ou de uma mulher, mas raras aguentarão cavar mais de uma). Nunca cavei uma sepultura, mas certa vez perguntei a um coveiro, relativamente jovem, quando tempo gastava para preparar uma. Ele, que era de um cemitério de cidade grande e tinha braços de estivador por causa do trabalho frequente, disse que levava cerca de uma hora para abrir regulamentares sete palmos no chão do campo santo, que, como você deve supor, estava localizado no terrão mais duro e seco do município.
Dificilmente teríamos coveiros tão fortes e dedicados, então o mais provável é que cada unidade ficasse pronta em cerca de duas horas, ou pouco menos. Seriam, portanto, 360 horas totais de trabalho para apenas terminar a primeira fase do despacho dos defuntos. Para aumentar a dificuldade da tarefa, não é razoável supor que alguém consiga cavar mais de duas sepulturas em um dia só, a menos que se economize na fundura proverbial, arriscando a cidade a uma epidemia. Realisticamente, teríamos a necessidade de 180 homens, ou poucos a menos, para esse verdadeiro trabalho de Hércules.
Como o dia, obviamente, não tem 180 horas, teríamos de fazer os voluntários (porque logo os funcionários públicos municipais estariam exaustos) cavar simultaneamente. Para conseguir terminar em um tempo razoável (oito horas, um dia de trabalho), seria preciso manter vinte e duas escavações simultâneas, no mínimo. Nossa sorte é que desses mortos alguns, cerca de um terço, terão jazigos preparados previamente. Mas aqui chegamos ao problema seguinte.
A expansão dos cemitérios, seja onde for, é bem gradual. Mesmo que “só” tenhamos de fazer 120 covas, estas provavelmente ocuparão o espaço que resta no cemitério, afinal, estamos falando de gastar em um dia as covas equivalentes aos próximos quatro anos ou mais.
Terminada a escavação, por si só uma tarefa duríssima, será preciso jogar terra de volta nos buracos, o que será outro trabalho ingrato de se fazer, mas, felizmente, não terá de ser feito de uma só vez.
Porque enquanto os servidores públicos e mais uns voluntários cavam covas como loucos, há duas outras coisas acontecendo na cidade. A primeira é o luto das famílias, pois, por cruéis que sejam esses homens e mulheres aleatórios que o botão mágico tenha sorteado para bater as botas, eles têm cônjuges, filhos, parentada e tudo o mais. Eles quererão saber de que morreram os seus queridos entes, mas provavelmente ficarão sem saber, porque os médicos todos da cidade estarão, a essa altura, dividindo-se entre preencher atestados de óbito e tratar de gente que esteja passando mal pela morte dos parentes.
Os atestados de óbito serão um problema real e imediato. Essa súbita ocorrência de 180 mortes em uma dia só não pode ser vista como algo normal. Nem pelas famílias e nem pelo poder público responsável. A primeira coisa que um médico consciente pensará é que deve existir um nexo entre as 180 mortes. Uma bactéria, por exemplo. Considerando que ela matou 180 em uma noite, sem aviso prévio, esse patógeno misterioso tem de ser algo terrível.
A cidade tem poucos médicos, obviamente, porque em sua maioria os serviços médicos são supridos localmente por profissionais de outras cidades que vêm cumprir turnos no hospital local. Esses profissionais certamente estarão trabalhando em suas cidades de origem, deixando-nos desguarnecidos. Assim, o idoso casal de médicos que reside na cidade se verá forçado, pelo limite humano da capacidade de trabalho, a tomar uma decisão impopular: determinar o enterro coletivo e sumário de todos. As famílias ficarão revoltadas e talvez levem anos a aceitar racionalmente, mas qualquer mente que pense com clareza concluirá que quanto mais cedo os mortos estiverem dentro da terra, mais cedo deixarão de potencialmente transmitir o que quer que os matou.
Uma alternativa seria preservar os corpos por alguns dias, sob refrigeração. O problema é que a cidade não tem necrotério. A maior parte das cidades do Brasil não tem. Mesmo onde existem, eles não estão preparados para o apocalipse, mas para uma demanda de um a dois por cento ao ano.
A essa altura o leitor já terá concluído que os mortos não precisarão de 180 covas, na verdade, porque a solução sensata é jogar todos numa vala comum e usar um trator para cobrir. As famílias estarão a ponto de matar os médicos e os responsáveis, e ai daquele que usar sua influência política ou econômica para tirar seu pai do lote. Ou vão todos ou não vai ninguém. Indo todos a cidade viverá um choque além do luto. Indo ninguém estaremos sob risco de tifo e cólera muito depressa.
Com todos os corpos devidamente sob a terra, começa a fase jurídica do processo. O cartório local emitirá os certificados de óbito mencionando causas desconhecidas, presumivelmente naturais, sem sinais de violência. Só temos um cartório, com uma única funcionária. Ela terá de digitar, selar, carimbar e assinar 180 documentos. Trabalho para alguns dias seguidos.
Os certificados, obviamente, serão o primeiro passo para as famílias reivindicarem os bens dos falecidos. Para os que possuíam propriedades, a ajuda de um advogado será imprescindível. Só temos uns cinco ativos na cidade, exceto algum que eu não conheça ou que atue fora. Todos os processos serão encaminhados ao Juiz da comarca, onde, certamente, o que não falta é processo acumulado para se decidir. Não custa lembrar que o juiz também estará às voltas com os processos dos seiscentos mortos da sede da comarca e mil e duzentos dos demais municípios.
Agora multiplique toda essa confusão por cada cidade do país e do mundo. Você consegue imaginar o tamanho da confusão que isso trará, a boataria de doenças e conspirações, as disputas por herança, as famílias tresloucadas assassinando médicos e funcionários públicos para que seus queridos entes não entrem numa vala comum, coisas assim.
Suponha, amigo todo-poderoso e cheio de boas intenções, que você aperte o botão. Você ainda vai achar que preparou um paraíso com essa quantidade de cadáveres por fundação?