A predominância de elementos exóticos entre os gêneros de ficção mais populares no Brasil me dá a impressão de que a maior parte do público leitor brasileiro tem pouca noção de si mesmo e busca na literatura um escapismo. Não é só porque os best-sellers são vendidos de forma massificada. Poderíamos estar comprando best-sellers realistas. Se focamos em certos temas em vez de outros, isso deve ter um significado.
A busca do exótico atinge tanto a literatura estrangeira traduzida quanto a literatura nacional escrita sob inspiração direta de literatura estrangeira, e coloniza principalmente a ficção de temática especulativa: ficção científica, alta fantasia e realismo mágico.
Talvez o público leitor brasileiro não deseje ver a si mesmo retratado na literatura porque não se enxerga como é, mas como um ideal que resulta da massificação dos best-sellers e do cinema. É quase normal que algumas pessoas se identifiquem mais com histórias ambientadas em uma gringolândia clichê, copiada de filmes e séries, enquanto rejeitam cenários e temas tipicamente nacionais. Nós não queremos ver os nossos problemas na literatura — eles não são problemas “literariamente relevantes”. Queremos uma situação ideal, que pode ser a realidade de outro país, de outra dimensão ou de outro tempo.
O nome desse anseio é “escapismo”.
Ele tem várias causas e muitas vezes é uma reação espontânea (e inconsciente) à falta de liberdade. A ficção científica floresceu no antigo bloco comunista porque nessas obras os autores se sentiam mais livres para abordar certos temas que eram censurados. Algo semelhante ocorreu no assim chamado “mundo livre”: o auge da ficção científica ocorreu justamente nos anos em torno do macarthismo.
Será que o nosso escapismo não está relacionado aos nossos tabus sociais? Nossa cultura é bastante repressiva e nossa realidade, baseada em relações de poder abusivas. Há elementos para acreditar que o leitor brasileiro rejeita o Brasil — e não se identifica com ele — exatamente porque, ainda que o negue, está consciente, em um nível subliminar, de que este país em que vivemos resulta de uma série de situações profundamente conflituosas.
A realidade é um fato dado, a que não podemos ignorar. Supondo isso verdadeiro, o que cabe fazer enquanto autor?
- Ignorar a situação e continuar escrevendo a literatura do século que passou, buscando seu próprio escapismo;
- Mergulhar de cabeça, pois o que importa é dar ao público o que ele quer;
- Usar isso como isca para induzir o leitor a reflexões um pouco mais profundas, talvez para fisgá-lo para temas literários mais maduros e menos escapistas.
Se escolher a opção “a”, você abdica de se tornar um autor relevante e se transforma em um diletante. Como aqueles poetas que ainda participavam de “concursos de sonetos” no início dos anos 90. A literatura evolui, a fila anda e aqueles que não acompanham a moda desaparecem na poeira da história da literatura. Não há espaço na posteridade para aqueles que vivem os restos de um tempo que passou.
Se escolher a opção “b”, você abdica de qualquer diálogo com o seu leitor, transforma-se num mero operário das letras, pois suas obras não terão nunca espaço para expressão pessoal ou questionamentos existenciais. Sua produção literária se restringue ao aspecto do produto.
Se escolher a opção “c” você pelo menos estará tentando, mas estará tentando subir o morro mais íngreme. Se errar a mão o público o rejeitará como um impostor. Se acertar demais, corre o risco de ser cooptado e perder a capacidade de questionar.
Alguns se sentem tão chateados que rejeitam o próprio valor literário das literaturas especulativas, especialmente a fantasia. Acredito que esse preconceito é uma besteira.
Literatura de fantasia não é “baixa literatura”. Na verdade, a fantasia é a origem de toda a literatura: a Odisséia não era um retrato realista e cientificamente embasado da vida na Grécia pré-clássica, problematizando de maneira inteligente situações sociais e políticas.
A gente precisa respeitar todo gênero e todo tema, especialmente se quisermos cativar as pessoas para gostar do nosso gênero e do nosso tema. Há que se criticar a falta de qualidade de um trabalho, mas a falta de qualidade de 77 romances de fantasia não é culpa da fantasia, mas dos autores que não tiveram competência de fazer bem.
A maior crítica que se pode fazer à literatura de fantasia, especialmente a de hoje, é que os autores de ‘fantasia’ costumam ter pouquíssima imaginação (além de pouca cultura) e por isso se limitam a copiar três ou quatro influências que tiveram. Fantasia envolve fantasiar, imaginar. Exige criatividade. É um desafio maior que narrar uma história do dia a dia.
Não há motivo, portanto, para remar para longe da maré da fantasia. Mas não podemos deixar que o sorvedouro nos trague e nos mate.
O leitor tem o direito de ser raso e buscar escapismo. O autor tem a obrigação de lhe dar mais do que isso, de lhe fazer enxergar através dos vincos e rachaduras da realidade.