- Da incompreensão do que é “preconceito linguístico”
- Breve definição do tema
- O conceito de “língua viva” segundo a linguística
- A “culpa” pela degradação da língua
- A hipocrisia da classe média falante do “português certo”
- Formas de preconceito linguístico
- Não difunda o preconceito, difunda a ciência!
- Conclusão: nossa literatura não será salva pelo purismo
O termo “preconceito linguístico” é a bola da vez nos debates dos grupos mais “cult” das redes sociais. Somente nas últimas duas semanas houve três enormes tretas sobre isso no Facebook. Parece que o conceito está finalmente chegando a um conhecimento mais geral — e isso está incomodando certos tipos de reacionários.
Em alguns casos os comentários sobre o assunto são claramente desonestos e abusivos, típicos de uma direita que está ousando dizer seu nome, mas há outros que parecem bem-intencionados, apenas movidos por desinformação incutida por uma difusão distorcida dos conceitos da linguística.
Eu não sou um linguista, mas o pouco que sei da matéria é suficiente para perceber de quantas maneiras maliciosas os seus conceitos vêm sendo deformados para consumo das massas, o que parece mais uma batalha da guerra da ideologia contra as ciências em geral.
Da incompreensão do que é “preconceito linguístico”
Acredito que alguns bem intencionados propaguem a tese do combate aos que falam em “preconceito linguístico”, mas a própria aversão ao tema se baseia em uma compreensão insuficiente do que ele seria. Tal incompreensão é muito difundida no Brasil porque, em uma sociedade de classes como a nossa, a língua é um elemento de dominação social entre muitos. Aqueles que detêm a “tecnologia” da língua “correta” procuram exercer controle sobre ela e a utilizam para asseverar supostas posições de dominação. Por isso difundem deliberadamente desinformação sobre temas científicos (no caso, linguística), a fim de turvar o que é claro e causar confusão sobre aquilo que é simples. Parece-me que você acabou vítima dessa desinformação.
Tão grande é a desinformação que o termo “preconceito linguístico” foi apropriado por bandeiras reacionárias, retirado de seu contexto acadêmico original e ressignificado em um sentido totalmente esdrúxulo em relação ao originalmente proposto. E isso foi feito com tanta profundidade que quando uma pessoa que entende minimamente do assunto tenta trazer o debate aos eixos ela acaba acusada de subverter o debate e introduzir complexidade desnecessária.
Breve definição do tema
Em primeiro lugar, a linguística não é uma ciência nova e nem de esquerda. Ela tem pelo menos duzentos anos de idade e se baseia em trabalhos de cientistas de várias origens.
“Preconceito linguístico” é um termo exotérico empregado por alguns linguistas, mais recentemente, para qualificar formas de controle social através da língua. Não existe somente um tipo de preconceito linguístico, mas vários. É um fenômeno histórico observado. Para espanto de muitos puristas seria interessante lembrar que a língua portuguesa no Brasil, no momento atual, enfrenta alguns dos efeitos causados pelo preconceito linguístico (no caso exógeno e também endógeno).
A indignação contra o “preconceito linguístico” é um tiro contra um alvo errado. A abordagem das varidades linguísticas pela ciência da linguística não tem por objetivo desestimular o ensino da norma culta, mas potencializá-lo através da identificação dos gargalos do aprendizado e da recomendação de abordagens científicas para resolvê-los.
O conceito de “língua viva” segundo a linguística
A linguística não desdenha da gramática normativa, mas diz que a língua formal, por ela regida, é só um dos aspectos da língua viva. Que isto é verdade, não carece sequer de muita experiência. Duvido que todos nós, mesmo os mais “puristas” no uso do idioma, consigamos usar a língua, oralmente, mantendo absoluta fidelidade aos preceitos da gramática normativa.
Isso não acontece porque não sabemos falar. Todo falante nativo de um idioma é plenamente competente nele. Isso decorre de um fenômeno chamado diglossia, que consiste na divisão das línguas vivas entre uma variedade viva, o vernáculo, e uma variedade codificada, a língua formal. Isso existe desde os tempos antigos. O latim tinha o sermo urbanus (latim clássico) e o sermo vulgaris (latim vulgar). O grego tinha o koiné hellenikos (grego comum) e os diferentes dialetos.
A variedade formal se origina da língua viva e representa um momento de sua evolução no tempo e no espaço geográfico, que se toma por padrão a fim de se criar um veículo de comunicação mais duradouro e abrangente. Assim como os estados modificam suas fronteiras e suas estruturas políticas ao longo do tempo, as línguas formais evoluem porque estão vinculadas às estruturas de poder que as promovem.
Com o tempo, se o sistema educacional não é eficaz — ou se o território onde a língua é falada recai sob o domínio de um estado que promove língua diferente — pode haver um descolamento tão grande entre a língua falada e a escrita que a primeira se torna um novo idioma e a segunda morre. Foi assim que as línguas românicas nasceram e o latim deixou de ser falado.
A “culpa” pela degradação da língua
A solução para isso não é culpar os falantes da forma vulgar por destruírem a beleza pura da língua ideal — é ensinar-lhes a língua formal de maneira eficiente, para frear parcialmente a deriva léxica e semântica entre as duas formas. Em uma situação ideal, a língua formal evolui devagar e a língua vulgar não evolui tão depressa.
A valorização do dialeto, na abordagem científica do ensino da língua formal, não tem por objetivo abolir a diferença entre certo e errado, mas reconhecer que a língua formal ensinada ao aluno não é idêntica àquela que aprendeu em casa e que usa diariamente. Reconhecer essa diferença é o passo inicial para convencer o aluno a separar adequadamente os dois universos (há coisas que se pode falar, mas não escrever, há coisas que se pode dizer em certos lugares, mas não em outros). O objetivo final disso é impedir que as variações dialetais regionais (discordantes entre si) interfiram no domínio pleno da língua formal, que deve ter abrangência nacional.
O melhor que se pode fazer a uma pessoa é ensinar-lhe o que precise aprender. Corrigir sem ensinar é apenas uma forma de humilhar. Embora você não se dê conta disso, esse pensamento de sacralização da norma culta se baseia em um grãozinho de preconceito, que você deveria começar a pensar em limar. Principalmente porque o purismo é um sintoma de línguas doentes.
A hipocrisia da classe média falante do “português certo”
O que mantém as pessoas na ignorância não é a falta de quem lhes corrija em público e os humilhe na frente de seus pares, é a falta de quem valorize boas políticas públicas de educação, que prestigie o trabalho dos professores, que vote em políticos que proponham investimentos em educação, que apoie a gestão escolar. O Brasil não precisa de quem saia por aí de caneta vermelha à mão para emender as falas dos outros. Isso é meio arrogante e é, sim, algo preconceituoso.
Não custa lembrar que os quatro governantes brasileiros que prometeram ou executaram investimentos massivos em educação foram depostos pouco depois: D. Pedro II, Getúlio Vargas, João Goulart e Dilma Rousseff. Outros que tentaram eleger-se sobre a bandeira do ensino público e universal de qualidade não conseguiram eleger-se (Rui Barbosa, Marechal Lott, Cristóvam Buarque).
A hipocrisia real está no fato de que o sistema educacional brasileiro baseado no uso predominante (ou exclusivo) da gramática normativa existe há cem anos e produziu essa maioria de semiletrados que você mesma identifica. Por que há tanta gente que acredita que insistir nessa abordagem resultará em algo diferente?
Essas pessoas que culpam os pobres e os ignorantes pela sua pobreza e pela sua ignorância são, frequentemente, as mesmas que financiam e que dão votos a candidatos que combatem a educação e apoiam o obscurantismo. São os que saíram às ruas vestidos de pato para derrubar a presidenta que prometera usar os recursos da exploração do pré-sal para dar um “salto de qualidade” na educação brasileira em vinte anos. A promessa que Juscelino Kubitschek fizera em seu discurso de despedida da presidência, em 1960.
Estas mesmas pessoas que corrigem os pobres e os ignorantes, mas não estão prontas a ensinar-lhes e nem votam em quem se proponha a ensinar-lhes, estão, sim, prontas a zombar deles pelas costas e a puxar seu tapete na carreira profissional.
A suprema hipocrisia reside em ser essa camada da sociedade a que mais assimila e difunde barbarismo léxico (top, vibe), hibridismo injustificável (topzera, printar) e terminologia estrangeira (mansplaining, coaching). O que só faz embasar o senso comum, segundo o qual a língua de prestígio não é a da literatura, mas qualquer que seja falada pelas classes dominantes.
Formas de preconceito linguístico
O preconceito linguístico assume muitas formas, uma delas é a de julgar uma pessoa pelo que escreve ou pelo que fala. Para atender aos preconceitos linguísticos esse país está cheio de pessoas vazias que enfeitam (enfeiam?) seu texto com palavras preciosas a fim de parecerem ter uma “inteligência” que não tem, e se sentem superiores por exibirem essa cultura postiça, cheia de jargão inadequado ao contexto. Gente que valoriza demonstrações rasas de “conhecimento” da língua formal, que não vão além do formalismo.
A inépcia e a ignorância não são por culpa de pobres diabos que penam nos canteiros de obras. Não tenho palavras para qualificar a REVOLTA que me causa ler uma acusação destas. Não são esses pobres diabos “ignorantes” que gerem os destinos do país. Não são eles que decidem aonde gastar o dinheiro público. Não são eles que se corrompem para as grandes empresas, que desviam verbas. Se há uma culpa para essas mazelas de nosso país, e há, ela recai sobre aqueles que muito sabem (ou muito dizem saber): eles são os tomadores de decisão, são eles que chegam aos cargos públicos centrais, eles formam as opiniões, eles produzem os conteúdos. Mas eles preferem culpar pobres-diabos com mãos calejadas…
Não difunda o preconceito, difunda a ciência!
Os escritores não precisam de aprender mais preconceitos do que aqueles com que já convivem no dia a dia. Aprender coisas novas, sim, mas de preferência úteis e racionais. Aprender linguística, por exemplo, seria ótimo.
Não espero que comecem pela leitura do Curso de Linguística Geral, do Saussure, mas há bons livros de divulgação. Sobre o tema específico do “preconceito linguístico”, é recomendável Preconceito Linguístico: o que é e como se faz, do Marcos Bagno. Esse é um autor odiado por conservadores e reacionários devido ao seu posicionamento, mas o livro não é um tratado de ação comunista, meramente um “resumão” de certas teses da linguística for dummies. Aqueles que acusam Bagno de ser um diluidor e que suas teses “não são nenhuma novidade” o fazem por razões políticas: o conhecimento científico não deve ser escrito de forma acessível ao grande público…
Não é que tudo seja certo e nada seja errado. Mas há coisas que têm seu lugar e sua forma. Absolutizar a gramática normativa leva a corrigir quem não precisa ser corrigido e me transforma em um pedante. Ninguém corrige letra de samba. Assim como não se usa gíria em hino religioso.
Acho preocupante a tentativa de banalizar o termo “preconceito” nesse contexto. A palavra não foi usada por acaso. Quando você entende o conceito, fica claro que é mesmo isso. Não se deve diluir o impacto da palavra, como se preconceito fosse tolerável em certos casos.
Conclusão: nossa literatura não será salva pelo purismo
A mediocridade em que se afoga a literatura brasileira tem múltiplas origens, a mais importante delas tem raiz na banalização de preconceitos linguísticos e culturais. Foi tanto tempo que ouvimos os preconceitos martelados em nossas cabeças que nós perdemos o amor pelo que é nosso e passamos a ter uma visão vira-latas de nós mesmos.
É o preconceito (linguístico inclusive) que leva tantos jovens a produzir cópias baratas de best-sellers estrangeiros. Claro, salvaremos a literatura nacional se eles fizerem essas cópias usando ortografia e gramática impecáveis…