Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Talvez Um Escritor Não Precise Ler Tanto Assim

Publicado em: 28/04/2018

“Ler bastante” é besteira. Já ouviu falar da falácia do pistoleiro texano? Pois bem, ele deu setenta e dois tiros em uma parede de celeiro. Depois foi até lá, circulou uma determinada área em que doze tiros se concentravam e tirou uma foto apontando para eles, como se quisesse dizer que eram os doze disparos de sua carabina.

Se você tenta um número suficiente de vezes, obterá uma distribuição aleatória de resultados que, em algum momento, produzirá uma aglomeração. A maioria acreditará que não há problema algum nisso pois:

  1. Não há nada de errado em desprezar os tiros que não foram “no alvo”.
  2. A existência do “alvo” é consequente ao número grande de tiros.

Essas concepções derivam do fato de que as pessoas, em geral, detestam o método. Nós queremos aprender por tentativa e erro, mas queremos acertar depressa. Em último caso, leremos o manual. Uma longa sucessão de tiros aleatórios é mais rápida do que uma série feita com boa mira.

A verdade é que você não precisa “ler bastante” para melhorar a sua escrita. Precisa “ler direito”.

A maioria dos livros que lemos na vida não tem valor algum, senão recreativo. Você pode lembrar deles os bons momentos que passou a divertir-se com seus personagens, mas esses é um prazer que se encerra em si mesmo. Não há problema algum em ler livros sem valor, a menos que você queira dos livros algo além do prazer da leitura. Se você é escritor, precisa ler como um escritor, não como um leitor.

Há livros que ensinam, há livros que apenas divertem e há livros que são até prejudiciais. Em qual categoria cada livro estará, isto dependerá de quem é você e de quem quer ser. Digamos que a Belém-Brasília não é o melhor caminho para quem quer ir de Brasília a Belo Horizonte…

“Ler como um escritor” quer dizer, primariamente, ler devagar.

Vivemos a era da pressa. Quase todos nós já fizemos, em algum momento, um curso de leitura dinâmica. Se você ainda não fez, nunca faça. Recomendar a um escritor que faça um tal curso é como aconselhar um artista plástico a pingar cloro no olho, ou como pedir a um digitador para amputar um dedo ou dois.

Ler depressa demais nos impede de observar o texto em detalhes e em contexto. Não há sentido algum em ler um clássico em poucas horas sem dele saborear o que tem a oferecer. Precisamos ler devagar para sentirmos o ritmo usado pelo autor, observar as relações entre palavras e conceitos, prestar atenção à estruturação da narrativa etc.

Além de ler devagar, devemos ler obras que se complementem.

Isso quer dizer adotar um método de leitura. Se está lendo uma obra sobre o Egito antigo, pode ser interessante ler outra sobre o Egito moderno, ou sobre a evolução dos sistemas de escrita, ou sobre a formação das civilizações em geral. Essas leituras paralelas nos dão perspectivas distintas do mesmo assunto e contribuem para que encontremos nossos próprios insights.

Devemos, também, privilegiar a leitura de obras em vernáculo.

Se você pretende escrever em determinada língua, é nela que deverá esmerar-se. Não se aprende a escrever melhor em português lendo principalmente obras em outras línguas. Muito menos lendo traduções porcas.

O contato com os grandes autores do passado é essencial por dois motivos:

  1. Nos aproxima de nossa própria cultura e tradições, o que reforça nossa identidade e nos impede de sermos meros copiões de ideias estrangeiras;
  2. Reforça nosso entendimento da língua nacional e sua prosódia, o que dá qualidade e variedade à nossa prosa.

Não quero dizer que você vai precisar imitar Machado de Assis, porém. Olha lá! Isso é literatura, não é espiritismo, para você psicografar os mortos.

Ao ler traduções, interesse-se pelo nome do tradutor e prestigie esses tradutores de quem você já leu bons trabalhos. Ajude a valorizar que faz direito. Trate como obras originais aquelas raras traduções feitas por escritores (profissionais ou amadores, célebres ou obscuros).

Finalmente, tenha o hábito de revisar o seu próprio texto, mas somente depois de terminá-lo.

Não há nada mais importante na vida do que terminar o que se começou. Ideias inacabadas raramente resultam em obras dignas de leitura. Termine as obras que começa e somente então retorne com a revisão, cortando excessos, enxertando consertos, harmonizando contradições.

Recomeçar várias vezes a escrita de uma mesma obra é frustrante e o afastará do seu objetivo.

Tenha fichas.

Podem ser em papel ou “virtualmente”. Armazene suas ideias em forma resumida. Você não tem que desenvolver agora toda ideia que acabou de ter. Use e reuse suas ideias, inteiras ou aos pedaços. Tenha um aquário de onde pescar “sacadas” quando estiver escrevendo e a imaginação começar a falhar.

E durma cedo. Que faz bem.

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