Há uma tendência a se romantizar a pobreza, como se ela possuísse alguma pureza que se perde com a obtenção da riqueza. Isto não chega a ser um problema enquanto falamos de uma pobreza literal, material, mas já é um tanto complicado querer transformar em uma bandeira ideológica uma condição que se caracteriza pela falta daquilo que é essencial.
Embora as pessoas pobres sejam dignas de todo o respeito enquanto seres humanos, não podemos imaginar que sua pobreza as torna melhores. Pensar assim não é diferente de imaginar que os ricos são melhores por serem ricos. É classismo do mesmo jeito, não importa de qual classe. Há quem diga que não se pode confundir a reação do oprimido com a ação do opressor. Creio que isto é útil para não se aumentar a injustiça, mas não creio que justifique os erros de quem é vítima.
A pobreza não pode, nunca, ser vista como algo bom. Seja a pobreza material, que castiga o corpo, seja a pobreza intelectual. A característica central da pobreza é impedir as pessoas de se tornarem plenamente aquilo que podem ser. O fato de conseguirem ser alguma coisa, apesar disso, depõe em seu favor, mas não em favor da pobreza. Uma pessoa pobre que obtém realizações significativas merece crédito por seus esforços, não é a pobreza que merece crédito por tornar sua história “mais bonita”. Não é bonito as pessoas sofrerem desnecessariamente.
A pobreza de conhecimentos (ignorância) nos leva a tomar decisões erradas, por não estarmos informados sobre as opções. A pobreza de consciência política (alienação) nos leva a agir contra nós mesmos e contra aqueles que são como nós, pois passamos a crer que somos outra coisa. A pobreza de força espiritual (busca do “menor esforço” a qualquer custo) nos leva a não travar as grandes lutas, que trazem as maiores mudanças. A pobreza de auto estima (complexo de vira-latas) nos leva a idolatrar o outro, em vez de enxergamos o valor que temos em nós mesmos. A pobreza ética (“jeitinho”, idolatria do sucesso a qualquer custo, egoísmo) nos leva a criar um mundo injusto.
Tudo isso se soma à pobreza material para desembocar em um indivíduo preso ao sistema ideológico em que nasceu e se formou. Por isso Marx disse, com razão, que o lúmpen-proletariado, o “lumpesinato”, não é uma força revolucionária.
“Lumpesinato” são as classes sociais mais vulneráveis, cuja própria sobrevivência física imediata é ameaçada a cada dia. Seus membros são carentes de consciência política porque não lhes é dado tempo nem privacidade para que se ocupem de reflexões. São os trabalhadores informais, trabalhadores na indústria do sexo, criminosos em geral, viciados. Todo aquele que não está inserido no sistema econômico produtivo ou que só se dedica a atividades parasíticas e predatórias da sociedade, sem deterem poder político ou econômico. Esta última observação é importante porque o mesmo tipo de pessoas, quando detém tais poderes, recebe nomes diferentes: empreendedores, profissionais da indústria do entretenimento, especuladores, etc.
O membro do lumpesinato não tem condições de participação política efetiva. Sua vulnerabilidade material o torna suscetível a barganhas imediatistas (vende o voto por comida, sai do sindicato para não perder o emprego). Sua ignorância o torna suscetível à manipulação ideológica e política, pois tende a acreditar facilmente naquilo que manipule seu medo ou lhe ofereça esperanças. Sua pobreza espiritual o leva a desistir de grandes projetos, pois, para quem é tão vulnerável, nenhum projeto de vida é mais significativo que sobreviver. Sua alienação o impede de sequer simpatizar com os inimigos de seus opressores, em vez disso, simpatiza com os opressores: o trabalhador informal se sente um empresário, a prostituta se orgulha dos seus clientes ricos, os criminosos gravitam em torno de políticos influentes para terem proteção. Sua baixa auto estima o faz conformar-se ao papel subalterno e idolatrar os opressores e seus instrumentos de opressão. Finalmente a pobreza ética o torna capaz de executar com mais crueldade que os opressores o “trabalho sujo” a que é destinado, tornando-se uma espécie de “capitão do mato”, às vezes pela “honra de servir” aos “seus” ideais, sem sequer cobrar por isso.
Esse indivíduo é o “capitão do mato” ideal, ele se compraz em ser cruel com quem está ao lado e abaixo de si, por crer que nisso se eleva, ou porque, em alguns casos extremos de vira-latice, acredita que esse é o seu papel inevitável, o seu lugar possível no esquema.
Por isso, não existe nada mais ameaçador para a sobrevivência de um sistema injusto do que combater a pobreza. Material ou espiritual. Dar ao povo informações livres, educação de qualidade, autoestima. Quando um governo se propõe a isso, os inimigos da justiça estão atentos.