Dizer-se intelectual não é o mesmo que ser. Certas designações só fazem sentido quando recebidas, nunca quando autoatribuídas. Não é por andar com livros que a gente fica doutor, as traças vivem com eles, devem sabê-los de cor.
O Brasil não é um país caracterizado pelo grande número de intelectuais, muito menos por sua grande qualidade. Em geral o brasileiro tem pouca escolaridade formal (algo em que a “intelectualidade” se baseia), porcamente aproveitada (devido à má qualidade da maioria de nossas escolas e às expectativas tecnicistas de nossa sociedade) e dirigida a áreas estéreis intelectualmente.
Porém, caveat emptor, o que qualifica um intelectual como tal é a posse de uma cultura ampla, coisa que é rara no Brasil, e não a posse de valores éticos e morais.
Algumas das pessoais mais cultas e intelectualizadas do mundo são seres absolutamente desprezíveis moralmente. Ser intelectual, além de ser uma designação que se deve receber, nunca reivindicar, não é sinal de santidade.
No entanto, o ser intelectual, mesmo quando desprovido de ética e moral, não deve ter certas atitudes. Uma delas é empregar a força (física ou verbal) como argumentação. Pregar a violência é mais aceitável na boca de um intelectual do que pregar com violência. Um intelectual pode, perfeitamente, dizer que a solução de um problema dependerá de medidas extremas, o que ele não pode fazer é debater aos berros quando querem ouvi-lo, ou partir para sopapos naqueles que discordam de si.
Outra coisa que denuncia o indivíduo como um falso intelectual (ou uma besta quadrada mesmo, que sequer finge inteligência) é defender posições prejudiciais a si mesmo, a seu país, à sua família ou à sua classe social. Quem faz isso, faz por ser imbecil ou faz porque está sendo pago. No primeiro caso, obviamente, não temos nenhum intelectual. No segundo caso, temos um traidor de sua pátria, de seu sangue e de sua classe. Não diria que é impossível que seja um intelectual, mas apenas que ser mal pago por um serviço sujo não é prova de inteligência. Além do que, aquele que se vende sempre recebe mais do que vale.
Eu também vejo pessoas, inclusive algumas que parecem normais e que têm comportamento socialmente aceitável, defenderem ideias detestáveis. Pessoas de minha família e de meu círculo de amigos. Pessoas de várias religiões. Maçons, ateus, espíritas, católicos, rotarianos… Pessoas que são beneméritas da sociedade. Como isso pode ser possível?
É chocante que pessoas de quem jamais suspeitaríamos sejam capazes de defendê-lo.
Isso não ocorre porque essas pessoas tenham algum tipo de déficit intelectual ou moral—isso decorre da ideologia. E é característica dos não intelectuais estarem abaixo das ideologias correntes, e portanto agirem e pensarem condicionados por elas.
Se a ideologia é capaz de convencer um jovem a enrolar dinamite em seu próprio corpo e explodir-se em um local público para passar uma mensagem de seu deus, por que a ideologia não seria capaz de convencer um trabalhador a defender os interesses de seu patrão em detrimento dos seus?
A ideologia que permeia a nossa sociedade é detestável. É uma ideologia de exclusão, opressão, supressão da diferença, extermínio do diferente, subjugação do mais fraco, glorificação do mais forte. Ocorre que essa ideologia não é expressa de maneira verbal, mas de outras formas. Quando verbalizada, ela não é difundida para muitos, mas passada de pessoa a pessoa, nos círculos familiares, nos ambientes de trabalho, nas escolas… em todo lugar.
Essa ideologia de ódio fala em reprimir gays, matar esposas que traem (ou maridos), detestar argentinos (que nunca nos fizeram mal algum), amar americanos (que, sim, fizeram), falar em deus da boca para fora, querer a morte de quem nos ameça e ameaçar quem pensa diferente. Essa ideologia fala que os sonhos não têm sentido, que a arte não serve para nada, que agro é pop.
Por isso é que você, que individualmente é refratário a essa ideologia de ódio, se surpreende quando se vê cercado de gente a defendê-la. Você conseguiu abrir para si um pequeno santuário no mundo, aonde essa ideologia não chega. Você conseguiu um lugar onde não existe a sua teletela, trazendo o discurso do Grande Irmão. Mesmo que você tenha feito isso apenas temporariamente e de maneira parcial, o mínimo grau de afastamento em relação à pressão da ideologia faz com que você comece a enxergar quão absurda é. Mas aqueles que não tem esse alívio que você experimenta continuam bombardeados o tempo todo por mensagens de ódio — e as repassam.
Uma pessoa que difunde ideologias de ódio, contra minorias, contra gays, contra religiosos de outra religião, contra ateus, contra venezuelanos, contra búlgaros ou gitanos… essa pessoa não é um monstro, é alguém que sofre lavagem cerebral.
Infelizmente não há como salvar todas essas pessoas. Em alguns casos porque somos impotentes para isso. Em outros casos porque já não vale a pena. Se você um velhinho de 70 anos preso a tais ideologias, cale-se. Não vale a pena tentar convertê-lo, pois ele logo passará desta vida. Preocupe-se com as crianças, com os adolescentes. São eles que precisam construir seus pequenos espaços silenciosos e seguros, dentro dos quais conseguirão pensar sem o massacre diário da ideologia.
Se não lutarmos pelos jovens, a cadela do fascismo os aleitará e eles cresceram tão escoiceantes quanto os seus pais, ou mais.
A primeira frase grifada é uma trova de Bastos Tigre, datada de 1922. A segunda é uma tirada do humorista Barão de Itararé, cuja data não me lembro.