Acordei de um sono pesado e sem sonhos, sentindo a boca seca devido a muito tempo sem beber água, e os músculos algo doloridos de tanto ficar deitado. Depois de um breve suspiro, que não me aliviou muito por causa do ar opressivo do quarto, dei-me conta de que a cama estava anormalmente dura, certamente porque dormira em uma casa alheia — coisa que raramente faço.
Tentando entender onde estava e o que me acontecera, levei a mão direita à cabeça, um gesto muito característico meu e de que qualquer pessoa confusa. Bem, de fato não levei a mão à cabeça porque algo me impediu. Meu gesto foi interrompido por algo duro a poucos centímetros da altura de minha barriga.
Rapidamente me certifiquei de que a mesma coisa que impedia a minha mão de alcançar a minha testa parecia distribuída por sobre mim, pelo menos até onde eu alcançava com o movimento de meus braços, tolhido pelo pouco espaço. Não consegui nem me virar de lado. Finalmente me dei conta de um cheiro detestável de flores… cravos! Evito esse perfume a todo custo, porque me lembra o cheiro das flores postas no caixão de minha avó.
Caixão!?
Então começou se formar em minha cabeça uma ideia absurda. Meu cérebro passou a funcionar alucinadamente. Foi ontem, mas parece que foi há três dias. Sim, eu estranhei que minha mulher estivesse tão sorridente e receptiva, ela que geralmente reclama tanto de dores de cabeça, de cansaço e da minha falta de tato para com ela e os problemas domésticos. Principalmente estranhei que estivesse assim menos de uma semana depois de descobrir que eu vinha mantendo um caso com outra mulher. Mas eu estava realmente com sede e tinha a louca fantasia de me reconciliar com a minha mulher e, quem sabe, um dia ter as duas dentro de uma mesma casa, para facilitar. Ou, pelo menos, manter o relacionamento e evitar as dores e despesas de um divórcio litigioso.
Depois de uma desconfiança inicial, então, eu aceitei a taça de vinho. Apesar de que eu detesto vinho — onde eu estava com a cabeça?
Minutos depois eu me sentira mal. Vinho sempre me faz um pouco de mal desde que me operei de vesícula. É só tomar e a boca amarga, a cabeça dói. Dessa vez não foi diferente, só foi pior. Então tudo ficou escuro. Na escuridão eu me lembrei de vozes agitadas, femininas. As crianças gritando, a minha mulher chorando. Depois tudo ficou silencioso.
E acordei agora.
Meu Deus! Vou morrer sufocado aqui, esse ar parece grosso como leite coalhado!
Debato-me dentro do caixão com todas as forças. No começo imagino, com pavor, que estou sobre os regulamentares e tradicionais sete palmos — mas, em vez disso, sinto o caixão balançar e me lembro de que um de meus investimentos recentes fora um jazigo perpétuo no cemitério municipal. Então não estou na terra, estou em uma gaveta no túmulo da família.
Isso me dá esperanças. Começo a me debater com mais força.
Obviamente o caixão foi feito com solidez para não se desfazer no transporte, mas não se imaginou que tivesse de ser feito forte para resistir à ação do ocupante. Os parafusos que seguram a tampa não são grande coisa, então a tampa começa a se desprender e uma greta estreita se abre. Consigo enfiar o dedo por ela, mas o ar que entra não é melhor do que o bafo opressivo que eu estava respirando: tem mais oxigênio, mas fede horrivelmente a decomposição e a outra coisa. Então me lembro que nas duas gavetas de baixo estão os meus pais, mortos há anos.
Continuo me debatendo. Por fim a tampa do caixão se desprende o suficiente para eu fazê-lo tombar e assim consigo sair e me virar de lado. A gaveta é estreita, deve ter menos de sessenta centímetros de altura por um metro e vinte de largura, mas esse espaço já me alivia um pouco.
Caindo fora do caixão eu me dou conta de que minha mão tocou algo pegajoso e seco e está ardendo. É cal viva, que puseram dentro do túmulo para eu não feder e sumir mais cedo.
Apesar da cal me queimar, apoio as mãos no chão e começo a chutar a paredinha de tijolos que fecha o túmulo. Ela cede com alguma facilidade porque a argamassa ainda não acabou de secar. Isto quer dizer que eu devo ter sido enterrado há poucas horas. Um buraco se abre e vejo que lá fora está escuro.
Com alguma dificuldade eu me enfio pelo buraco aberto e deslizo para fora da gaveta do túmulo. O cemitério está escuro e silencioso.
Bato as mãos na roupa para remover a cal que me irrita a pele e descubro que meus bolsos estão vazios. Estou sem a chave do carro, sem o telefone celular, sem carteira. Sem essas coisas eu me sinto nu. Estou sem os meus óculos e assim eu mal enxergo onde estou.
E agora? O que fazer? Devo sair do cemitério e tentar ligar para a minha amante? Devo tentar o meu irmão? Ou a minha mulher mesmo? Não, melhor não!
Que obstáculos terei de enfrentar para provar que estou vivo? Como vou recuperar o meu dinheiro, o meu emprego, a minha casa e o meu carro? Como minha família reagirá quando eu aparecer? Eles me enterraram há pouco! Como vou explicar isso para a justiça, o governo e a igreja?
Estas são perguntas que serão respondidas se eu for contratado por uma editora para terminar esta história.