Em 19/06/2019 a revista Úrsula publicou este meu artigo que aborda a questão da utilização da Jornada do Herói como uma ferramenta de criação em vez de uma forma de análise. Recomendo fortemente que você leia e comente lá. Haverá uma segunda parte.
A arte literária tem sido assolada nas últimas décadas pelo evangelismo insistente dos adeptos de uma ideia ousada — o monomito — que conseguiram impor a “Jornada do Herói” como um padrão quase obrigatório não somente para a interpretação, mas até para a criação de tramas. O sucesso extraordinário de filmes com roteiros diretamente inspirados na Jornada contaminou toda a indústria do entretenimento desde os Estados Unidos e logo a sua capacidade para produzir obras de sucesso virou uma profecia cumprida, reduzindo o trabalho de muitos autores a uma forma de legoratura.
Porém, esse triunfo do monomito na cultura popular teve um preço. Talvez ainda não tenhamos distanciamento suficiente para compreender com a profundidade necessária todo o prejuízo que ele causou, mas já é hora de começarmos a refletir. Vozes dissonantes já surgiram há algum tempo, mesmo no epicentro da igreja do Herói, e alguns efeitos negativos já são evidentes.
Por causa do sucesso da Jornada para produzir tramas acessíveis e engajamento do público ela é uma ferramenta eficiente de propaganda. Exatamente porque funciona é que se tornou tão prevalente. Agora está em toda parte — até na publicidade e nas falas dos coaches — e o seu evangelismo começa a incomodar exatamente porque começa a sufocar todo discurso discordante. Todos precisam conhecer a Jornada do Herói, todos precisam utilizar a Jornada do Herói, todos precisam amar a Jornada do Herói, todos precisam pregar a Jornada do Herói.
A monomania do monomito parece ter contaminado especialmente os jovens autores, que se fascinam facilmente pelos lucros auferidos pelas superproduções, mas não enxergam o fascismo implícito na ideia de uma Jornada to rule them all.
Este é o legado radioativo da Jornada do Herói na cultura pop.
Meu primeiro contato com ela foi há uns treze anos quando enviei um original a um editor. Responderam-me com elogios ao meu estilo e me acenaram com a possibilidade de um contrato, se eu estivesse disposto a seguir certas instruções, a principal delas sendo, tal como o editor o disse, sem sutilezas, descartar tudo o que eu escrevera até então e recomeçar um novo conjunto de obra, que deveria ser desenvolvido tendo em vista os princípios da Jornada do Herói. Não me lembro das palavras exatas dele, mas pode ter sido algo parecido com isso:
“Utilizamos a Jornada do Herói como modelo de construção do arco narrativo das histórias que escrevemos e publicamos. Para nós, histórias escritas de outra maneira não interessam, eis porque lhe pedimos que esqueça o que escreveu até agora e não perca mais tempo querendo melhorar o que não começou bem.”
Essa é uma afirmação bem forte, e que me chocou. Embora eu ainda quisesse me tornar um autor publicado, revoltava-me a ideia de descartar tudo que eu escrevera, especialmente uns contos que eu já havia então escrito e de que ainda gosto, como “História de Amor Sem Amor”, “O Tratamento Homeopático da Solidão”, “O Salário da Perseverança”, “Uma Foto Infeliz” e “A Pilastra”, publicados em O Pecado da Tristeza e Outras Histórias_, em 2010.
De qualquer maneira, o pedido não me pareceu algo difícil de encarar, afinal, eles nunca viriam fiscalizar as minhas gavetas, físicas ou virtuais, para averiguar se eu tinha mesmo jogado fora os textos antigos. Então respondi ao e-mail todo feliz, abanando o rabinho como cachorro que ganhou osso, e pedi mais detalhes do processo criativo em que passaria a trabalhar.
Outro membro da equipe me respondeu, em nome do editor, dizendo que o corpo editorial me designaria para escrever histórias conforme a “demanda” do mercado, que essas histórias estariam baseadas em um conjunto predeterminado de elementos, todos relacionados à Jornada do Herói, e que a minha função seria “dar vida através das palavras” ao conceito que me seria enviado.
Isso não me entusiasmou. Por dentro eu não me sentia bem. Tinha a sensação de que assim venderia a minha alma. Então não lhes respondi mais. Decidi que seria preferível continuar inédito e fora das panelinhas, mas livre para cometer meus próprios erros, a vender a minha liberdade criativa para me tornar um operário das letras, escrevendo histórias por demanda e ganhando por lauda.
Essa foi uma das três ou quatro vezes na vida em que tive a oportunidade de sair do buraco e me profissionalizar como autor. Acredito que foi a segunda vez. Rejeitei essas ofertas porque imaginei que não valia a pena obter com tanto esforço aquilo por que tanto lutava se o preço disse fosse não usufruir. Tornar-se escritor profissional, mas em um esquema tão alienante e castrador não me pareceu melhor do que continuar enfrentando jornadas de oito horas diárias e tendo só alguns momentos cada noite para tentar desenvolver a minha literatura amadora.
A verdade é que, quando você usa a Jornada como modelo, a maior parte dos elementos da história já estão dados, você só tem que disfarçá-los e embaralhá-los. Sua tarefa se resume a enganar o leitor para que ele não perceba que está lendo outra vez a mesma história que leu semana passada. A literatura deixa de ser uma busca intelectual e se torna um jogo de cartas, com um número limitado de jogadas possíveis. No máximo, uma brincadeira com peças de Lego, em que se constrói algo grande a partir de uma variedade limitada de peças possíveis.
Quando você trabalha com a Jornada do Herói como régua, a imaginação adquire um papel secundário. Você não precisa mais “pensar fora da caixa”. De fato, a Jornada pode ser a “Suprema Caixa” mental em que tantos por vontade própria se enfiam. A sua história deixa de ser “sua” e passa a ser parte de um processo mental coletivo e arcano, o “monomito” cada vez mais monótono que quer monopolizar a literatura.