Há alguns dias, Ale Santos escreveu para o Muito Interessante uma thread incrível sobre como os negros se sentem diante da obra de Monteiro Lobato. O tema é espinhoso porque Lobato não é somente um autor racista, mas um nome pesado de nossa literatura que foi racista e produziu uma obra essencialmente racista.1
Minha opinião sobre Lobato oscila entre extremos, mas, para ser bem sincero, vejo com imensa preocupação um fato que pouca gente analisa: o problema não está exatamente Lobato. Por mais que o autor mereça ser tachado de todos os nomes que lhe têm sido atribuídos, o monstro é maior e mais antigo. Não é somente para criar teorias científicas e obras-primas da arte que se pode subir nos ombros de gigantes: é perfeitamente possível alcançar o máximo do preconceito sem fazer grande esforço se você sobe em uma tradição que já estava nos extremos.
Quase toda nossa literatura reproduz violência e racismo de maneiras absurdas. Em abril de 2015, em um de meus momentos mais otimistas sobre o caso Lobato (uma reflexão dolorosa para mim, que vem se arrastando há anos), escrevi esse artigo para em que argumentei, essencialmente, que Lobato é inseparável do conjunto da literatura pátria: Ainda Será Possível Falar do Brasil?. Minha tese é a de que temos de escolher se ainda queremos manter uma conexão cultural com o nosso passado — o que exigiria encontrarmos um modus vivendi com esse mal testemunhado por nossa arte, ou se queremos fazer tabula rasa de tudo que fomos e reinventar nossa identidade. Trata-se de uma escolha retórica, posto que impossível, e inútil, uma vez que recriar um futuro sem se entender com o passado nos expõe ao risco de repetir passados erros.
Mas questionar Lobato é uma cunha. Não se pode parar nele. Ainda que José Bento Monteiro Lobato fosse, enquanto pessoa privada, excepcional em seu racismo, o autor “Monteiro Lobato” não diferia muito de uma parte expressiva de seus contemporâneos. Se Lobato é um racista execrável, não era o único. Mesmo racista, foi um grande escritor, o que torna complicado descartá-lo pura e simplesmente. Os execráveis também sabem escrever bem. Várias culturas convivem com o fantasma de artistas execráveis do passado, mas o que fazer com a arte dos execráveis?
A questão é que o racismo é parte da construção da identidade nacional brasileira, como muito bem lembrou o Joaquim Nabuco:
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…
— Joaquim Nabuco, “Minha Formação”
Então mergulhar na literatura brasileira antiga é mergulhar em uma época sórdida, de opressão, racismo, violência, sexismo e intolerância. Isso é perigoso. Estes vícios estão ali. Abertamente ou nas entrelinhas, estão prontos para aflorar, para influenciar as gerações de agora e de amanhã.
Acredito que nenhuma literatura está de todo a salvo disso, eis que o passado, em geral, está cheio de sordidezes que desejamos esquecer. Os autores escrevem para deixar um testamento à eternidade, mas esse testamento é o de sua época e de sua cultura também. Eles não só escrevem para deixar sua marca, mas para defender quem foram e o que pensaram. Ninguém escreve sobre nuvens, por isso é que a obra nunca é neutra.
Haverá, então, um momento em que isso precisará ser repensado. Talvez seja necessário fazer uma pausa aqui. Muitas obras do passado têm ideologias e práticas detestáveis, mas as podemos olhar com distanciamento porque não nos sentimos mais conectados àquele tempo e contexto. Podemos ler impunemente obras que falam das cruzadas, ou de grandes genocídios da Antiguidade, porque nada temos a ver com perpetradores ou com vítimas. Se encaramos com neutralidade o genocídio dos troianos pelos gregos, é porque nem somos gregos e nem troianos.
Mas o problema da escravidão ainda é muito recente e muito doloroso em nossa sociedade. Então, embora eu veja com horror a perspectiva de abandonar um autor de tanta qualidade quanto Lobato, dói-me muito mais saber que sua obra é fonte de dor para muitos conterrâneos meus.
Nessa época, em julho de 2020, eu ainda estava preparando a minha tese final sobre o racismo em Lobato, que vim a publicar seis meses depois.↩︎