Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

O Plano da Terra Plana

Publicado em: 23/12/2019

Espanta-me que entre tantos absurdos legais e filosóficos que seguem sendo perpetrados nesse ano da desgraça de 2019 tenha vindo à baila a ideia torpe da “Terra Plana”, defendida pela boca de um idiota elevado à quinta potência e empoderado por conluios ininteligíveis.

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Voltaire escreveu em sua obra “Questões sobre os Milagres…” uma frase muito interessante: Aqueles que podem levá-lo a crer em absurdos podem levá-lo a cometer atrocidades. É à luz desta frase que devemos analisar este processo histórico presente. Talvez ela possa nos ajudar a entender o que planejam aqueles que pagam ao Oráculo de Cavalos para escoicear e relinchar pelo mundo.

A frase do filósofo francês se refere à crendice popular em dogmas religiosos em geral. A tradução dada acima é uma tentativa de transformar o espírito do original em um provérbio e, embora seja verdadeira em si mesma, não é exatamente o que Voltaire escreveu (uma tradução minha abaixo, a partir de meu parco francês, apoiada no inglês de uma tradução bem reputada):

Houve quem dissesse: “Crede naquilo que é incompreensível, inconsistente ou impossível porque nós vos comandamos a crer nisto; então ide e fazei aquilo que é injusto porque nós vos comandamos.” Tais pessoas demonstram um raciocínio admirável. De fato, quem quer que seja capaz de tornar-vos absurdos é capaz de vos tornar injustos. Se não opuserdes às ordens de crer no impossível a inteligência que Deus pôs em vós; então não resistireis às ordens de desrespeitar aquele divino senso de justiça em vossos corações. Assim que uma faculdade de vossas mentes for dominada, as demais faculdades se seguirão da mesma. Disto derivam todos os crimes das religiões que grassaram pelo mundo.

A crença no absurdo é uma poderosa ferramenta política, porque as pessoas estão mais disposta a matar e a morrer para esconderem seus erros do que para fazerem o que é justo. Não à toa sabemos frequentemente de pessoas de suposta boa índole que se meteram com bandidos cedendo à chantagem. A chantagem funciona porque não queremos destruir a imagem pública de perfeição infalível que construímos para nós mesmos. Então, se uma pessoa certa vez foi convencida a crer em algo patentemente absurdo, essa pessoa nunca poderá admitir publicamente que se enganou, porque verá nisso uma humilhação. Então ela acha mais certo manter a farsa, mesmo depois que já notou o próprio engano, do que dar dois passos para trás.

O efeito desmobilizador da chantagem é ainda mais forte na nossa era digital porque, protegidos pelo relativo anonimato que imaginam ter, há milhões de pessoas dispostas a apontar seus dedos para os vícios, pecados e deslizes alheios. A tal cultura do “cancelamento” e a tal prática de “arqueologia de redes sociais”. Então, aquele que um dia acreditou no absurdo se sente ainda mais vulnerável.

Mas há um antídoto ilusório contra essa vulnerabilidade e ele se chama “validação”. Ser validado por outras pessoas de seu mesmo círculo de amizades faz com que você não considere idiota e absurdo algo que, em circunstâncias normais o faria ter ataques de riso. Se você é parte de um grupo, os valores e práticas desse grupo se tornam normais para você. Sem querer fazer uma comparação excessivamente polêmica, falemos de algo mais corriqueiro: tatuagens.

A tatuagem era originalmente um rito de passagem praticado por muitas culturas do mundo. A tatuagem policromática foi inspirada na cultura japonesa, principalmente. A tatuagem monocromática (ou “tribal”) existiu em diversas culturas do mundo: polinésios, indianos, árabes, certos povos ameríndios, germânicos etc.

A maioria das pessoas nunca procuraria a dor de maneira espontânea. Como diz a célebre consideração de Cícero, em Extremos do Bem e do Mal:

Ninguém rejeita o prazer por si mesmo, porque o prazer é bom. Aqueles, no entanto, que não sabem usufruir racionalmente do prazer se deparam com consequências muito dolorosas. Tampouco há quem ame, persiga ou deseje obter a dor propriamente, porque é dor, mas ocasionalmente haverá circunstâncias em que o padecimento e a dor podem resultar em grande prazer. Para tomar um exemplo trivial, quem de nós alguma vez se esforçou laboriosamente senão para obter vantagens disso? Mas quem de nós censuraria àquele que optasse por experimentar um prazer que não tivesse consequências, ou que evitasses uma dor que não trouxesse nenhum ganho resultante?

Então, obviamente, as pessoas não se tatuam porque dói, e, como não há prazer direto em submeter-se à agulha do artista, resulta que as pessoas se tatuam em busca de prazeres indiretos e/ou ulteriores. Como, por exemplo: a aceitação do grupo social a que pertencem. Hoje em dia, como a tatuagem se tornou aceitável na cultura mainstream, como as pessoas não enfrentam mais as sanções profissionais e pessoas que costumavam acompanhar aos tatuados de outrora, então pessoas que normalmente não se tatuariam poderão tatuar-se, não porque anteriormente desejassem, mas porque agora esse é o novo normal e é natural que estar ajustado ao normal traz consequências positivas. Então, ter uma tatuagem pode trazer prazeres no relacionamento interpessoal: como, por exemplo, um elogio à beleza do desenho, ou a possibilidade de identificar pessoas com interesses parecidos, que eventualmente se tornarão amigos ou interesses amorosos. Podem haver, também, formas mais diretas de prazer relacionadas à tatuagem, como, por exemplo, a simples satisfação de tê-la feito e de achá-la bela, ou de encontrar nela a celebração de algo que lhe é especial. Os tatuados, portanto, não buscam a tatuagem porque ela dói, mas porque, apesar da dor (que é sempre uma sensação relativa a cada um), encontram motivos para dar valor ao que outras pessoas vêem como uma mera cicatriz tingida na pele.

A validação social da tatuagem contribui para exacerbar ainda mais a sua popularidade. Prevejo que chegará um momento — e ele nem está tão longe — em que as pessoas considerarão antiquado, ou no mínimo esquisito e antissocial, quem não faça uma reles tatuagem. Então, em vez de ser uma marca de “personalidade” (como eram as tatuagens roqueiras de antigamente), a prática se tornará um imperativo cultural. Isso quer dizer que muitas pessoas já não se tatuarão pelas oportunidades de prazer advindas da validação, mas para fugir aos sofrimentos resultantes de não estar inserido na “normalidade” em que uma pele tatuada é o padrão.

Espero que tenha conseguido abordar o tema sem ser agressivo nem preconceituoso com os tatuados. Esteja certo de que esta analogia foi, para mim, um exercício de empatia, porque tatuar-me é a penúltima coisa que eu aceitaria fazer na vida. Mas isso não quer dizer que eu não possa entender os motivos de quem se tatua. Mas, mesmo que tenha sido desastroso, espero que tenha, pelo menos, conseguido construir uma analogia válida e reutilizável. Agora transponha essa analogia para os fenômenos citados.

Ninguém busca crer em coisas absurdas, afinal, são absurdas. As pessoas creem porque são ignorantes (então não conseguem perceber o absurdo) ou por pressão social (estão em um ambiente em que são forçadas a acatar o absurdo por amor da polidez). Uma vez que aceitou tacitamente o absurdo inicial, sua racionalidade, tal como explicou Voltaire, começa a cair como um castelo de cartas. A única coisa que poderia salvá-la seria uma dose modesta de humildade, mas, como explicou Nietzsche, o ser humano não deseja ser humilde, mas triunfar sobre a normalidade. Ninguém quer ser normal, todos queremos ter uma “lenda pessoal”. Há em cada um de nós uma “vontade de potência” que nos leva a acatar mais facilmente o que nos valida do que aquilo que nos questiona. Não queremos descobrir que somos fracos, mas que somos mais fortes do que pensávamos.

“Fiz isso,” diz minha memória racional. “Não posso ter feito isso,” diz o meu orgulho. Eventualmente a memória cede. — Nietzsche, em “Além do Bem e do Mal”.

A dor da descoberta da própria limitação e falibilidade é um obstáculo que somente os mais estoicos podem superar. A maioria morrerá em negação. Por isso as religiões, principalmente as absurdas, dependem tanto do proselitismo junto às crianças. São elas os ignorantes naturais, porque nasceram há pouco e ainda não aprenderam quase nada. Se forem obrigados desde cedo a acatar absurdos, passarão toda a vida em busca de maneiras de revalidar esses absurdos porque aquilo que nos é “antigo” nos é “afeto”. Desta maneira, é mais fácil viver uma busca impossível e dizer que a própria vida é uma luta em vão do que admitir verdades dolorosas: que ouviram mentiras de quem amavam; que perderam longos anos de sua vida em ritos e relações sem sentido; ou ainda pior, que poderiam ter aproveitado melhor a vida se não tivessem passado tanto tempo tentando laçar patos voadores.

O confronto com essa situação causa dor. Para evitar essa dor; que é permanente porque se refere a tempo perdido, dinheiro pago em dízimos e ridículos passados em público; as pessoas se tornam capazes até de suportar dores objetivamente maiores, mas percebidas como de curto prazo. É melhor sentir mais dor, do que admitir que toda a dor anterior fora desnecessária. É melhor sentir uma pequena dor durante anos, do que uma grande dor por alguns momentos. É assim, por exemplo, que pessoas medrosas vivem décadas com cálculos renais e não têm coragem de operar. A dor imaginária da cirurgia lhes causa mais medo que a dor real das cólicas. Da mesma forma, para as pessoas que foram doutrinadas desde a terna infância, o choque da verdade assusta mais do que a lenta disciplina da mentira.

Finalmente há que se dizer que nem todas as crenças são iguais. Referindo-nos especificamente ao tipo de crenças encontradas no olavismo e na extrema direita alt right atual, vemos que há uma miscelânea de posicionamentos que oscilam do que é meramente minoritário ao que deveria ser assunto para psiquiatras, passando por uma série de temas que são apenas esquisitos e desafiam o senso comum.

O monarquismo não é necessariamente uma crença absurda, apenas ligeiramente ingênua e obsoleta. Pessoas muito respeitáveis e racionais podem desenvolver teses aceitáveis explicando que, mesmo que não seja aconselhável hoje voltar à monarquia, teria sido melhor nunca tê-la abolido. Na verdade, em certos dias até eu mesmo consigo defender esta tese.

A rejeição a vacinas decorreu de um pânico moral criado por um médico inescrupuloso pago por um laboratório (cujo nome é proibido mencionar em notícias sobre o assunto, porque o processo judicial que vem em seguida é impiedoso e tonitruante) para desacreditar a vacina gratuita contra o sarampo a fim de justificar que o governo gastasse milhões comprando uma nova vacina, patenteada. As pessoas acreditaram porque, com o apoio desse laboratório poderoso, o médico (cujo nome também é bom não mencionar) conseguiu publicar estudos até em revistas renomadas (revisão por pares falha de vez em quando, especialmente quando grandes empresas presenteiam os revisores com lentes especiais…). Depois a crença persiste porque há no povo a tendência atávica a se desconfiar da ciência (a Revolta da Vacina, por exemplo).

O anarco-capitalismo é uma ferramenta de guerra híbrida desenvolvida pelos EUA a partir dos escritos de Ludwig von Mises e de teóricos, como Rothbard e Rockwell, autores de textos delirantes que defendiam o direito de deixar os filhos morrer à míngua ou de dirigir embriagado. O objetivo ainda me parece obscuro, ou pelo menos não cabe nessa resposta. Mas, diferente dos outros, foi uma construção gradual, que tardou décadas.

Finalmente o terraplanismo é agora introduzido como “shibboleth” do conjunto de crenças do neofascismo. Aqueles que já aceitaram o pacote de crendices iniciais precisam provar sua fidelidade dando o passo final, aceitar a terra plana, ou oca, ou em formato de biscoito. A essência aqui não é a justificação da crença, mas a obediência do fiel. Crer na terra plana é “subir um grau” na confiança do sistema. Haverá um dia em que aqueles que não forem capazes de afirmar que a terra é plana serão vistos como um tipo de esquisitos.

Como George Orwell previu, o regime exigirá que os cidadãos creiam simultaneamente na validade de duas ideias mutuamente excludentes. Devem crer, por exemplo, no Google Mapas, que usa dados de satélites, mas acreditar na terra plana. Essa capacidade de “duplipensar” indica a suspensão total da racionalidade e do pensamento autônomo, substituídos pela fidelidade ideológica.

O objetivo disto claramente é adestrar essas pessoas para cometerem absurdos. Um regime que propaga ideias absurdas só pode se manter de pé cometendo absurdos e propagando novas ideias absurdas, para impedir que as pessoas reflitam sobre os absurdos anteriores. Isto requer seguidores capazes de replicar sem pensar qualquer coisa, literalmente qualquer coisa, que venha dos centros de pensamento e dos departamentos de Kultur Kampf.

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