Cataguases de antigamente, cidade que evapora da memória como chuva no estio. Cidade em que aconteciam coisas estranhas que nossos pais contavam e que agora, idosos, eles ficaram com vergonha de contar, porque o mundo novo admirável gosta de rir das histórias de antigamente.
Havia na cidade uma leiteria anexa à Cooperativa Agropecuária de Cataguases, hoje extinta. Mas a história não fala da falida empresa, nosso personagem é um burrico comum, igual a muitos outros, que puxava a carroça do leiteiro todas as manhãs. Madrugava o leiteiro e buscava o burrico em um pasto na saída da cidade, levava-o até o centro, já arreado à carroça, para recolher o leite do dia anterior, que dormira no refrigerador da CAPEC, e sair pelas ruas em sua carroça puxada pelo burro nosso herói.
Aquele burrico estava no serviço desde que aguentara puxar carga. Haviam-no desmamado a varadas, era isso. Diziam que já era manso, ou pelo menos acostumado. De tanto puxar a carroça pelas mesmas ruas poucas de uma cidade pequena de caber numa fábula ele já nem precisava de rédeas. O leiteiro o controlava com assobios, “eias” e estalos de língua enquanto despejava leite nas canecas do povo.
Crescendo a cidade, a carroça começou a ficar pouca para tanta rua e um burro só não dava conta de tanto. O presidente, reunindo uma coleta dos cooperados, propôs adquirir uma caminhonete de segunda mão para fazer as entregas — afinal já tinham tanta freguesia para tanto leito que se poderia pagar o óleo gasto.
Assim, então, votou-se em uma assembleia e aposentaram o burrico, substituído por um Chevrolet. O antigo leiteiro, que não sabia dirigir essas carroças barulhentas, agora se limitava a despejar leite — tinha de ir alguém tocando aquele novo tipo de bicho que não conhecia as ruas e que não obedecia a estalos e assobios.
Quanto ao burrico, bem, já estava bastante velho e imprestável, então, por piedade ou mero descuido, abandonaram-no em naquele mesmo terreno fora do centro da cidade, o terreno a que ele estava acostumado desde que o haviam comprado para puxar a carroça. Lá havia um farto pasto de capim gordura e ele podia beber da água que corria para as instalações de pasteurização de leite da Cooperativa.
Em vez de viver seu resto de vida na pasmaceira, o burrico continuou a se levantar todo dia às quatro da manhã, enfiar-se pela cerca bamba que havia na parte alta do terreno e a seguir o caminho conhecido até o centro da cidade. Lá ele parava à porta da Cooperativa e esperava por alguns minutos. Então, atado mentalmente a uma carroça imaginária e obedecendo a assobios e estalos de língua feitos por um leiteiro invisível, percorria as ruas do centro da cidade em seu passo manso e resignado, parando à porta das casas dos fregueses costumeiros.
Se esta é uma fábula e meus leitores desejam que a moral seja explícita, ei-la: mesmo conquistada a liberdade, se esta é tardia, continuam os costumes da escravidão.