Anti-intelectualismo é um fenômeno existente em todas as culturas do mundo desde que a história é registrada. Em cada período da trajetória humana encontramos aqueles que depreciam os sábios. Talvez hoje não matemos mais aos cientistas, como nos tempos antigos e medievais, porém a lembrança desses fatos deveria dissipar toda dúvida quanto à perenidade do problema.
De fato é verdade que o Brasil sempre se caracterizou por uma medida adicional de anti-intelectualismo — talvez originária das medidas de contenção tomadas pela Coroa portuguesa durante os primeiros séculos de nossa evolução — porém eu não diria nem mesmo que o nosso seja o país mais obscurantista do mundo. Essas coisas são sempre difíceis de medir e há sempre uma questão que turva mais o entendimento: quem está na escuridão vê melhor a luz alheia do que consegue enxergar as trevas maiores que dominam outros lugares. Por isso aqueles que vivem em culturas tenebrosas tendem a ver-se em inferioridade diante dos que gozam da luz, em vez de se sentirem superiores aos que padecem sob uma noite pior. No nosso caso ainda mais, dado a esse pensamento de que o segundo colocado é o primeiro dos perdedores. Parte do viralatismo nacional, este pensamento reflete uma necessidade de se provar acima da média para compensar a inferioridade da maioria.
O anti-intelectualismo tem duas vertentes: a espontânea e a estimulada. A primeira surge naturalmente da inveja e da incompreensão, quando uma minoria atinge conhecimentos superiores, especialmente se deles usufrui de modo a ter mais conforto que o resto. A segunda é estimulada pelos donos do poder como uma ferramenta de controle social. A primeira vertente inclui os casos mais emblemáticos de obscurantismo, como o assassinato de Arquimedes pelo soldado romano que não tinha ideia do que o velho estava fazendo. A segunda é mais sutil, porque é necessário que as mais deliberadas conspirações pareçam naturais.
Essa segunda forma é a que nos interessa mais, porque ocorre atualmente um fenômeno curioso. Desde o Iluminismo vínhamos sob a lógica de que a coletividade deve proteger e prover para seus membros excepcionalmente dotados, a fim de que sejam produtivos para os interesses da sociedade. Isso criou condições para a expansão do ensino, o desenvolvimento das ciências e a popularização das artes. Mas há alguns anos vemos um fenômeno oposto, em que a intelectualidade passou a ser descrita como adversário do povo. Isso nasceu claramente com o fascismo italiano e dali se expandiu e se encastelou.
Para essa visão de mundo, é preciso manter os ignorantes tranquilos e os mesquinhos, confortáveis em suas posições. A paz se constrói quando os ignorantes não insistem em aprender e quando os mesquinhos não temem ter retirados seus privilégios. A eventualidade de que algumas pessoas brilhantes se perdem por falta de oportunidade é um preço pequeno a se pagar pela “estabilidade”, essa virtude cívica vazia.
Se o anti-intelectualismo é uma ferramenta de poder usada para controle social, devemos esperar que o sentimento anti-intelectual seja mais forte onde mais grasse a ignorância e mais comum onde o conhecimento se expandiu. Parece contraditório, mas não é.
O sentimento anti-intelectual é mais forte onde haja mais ignorância porque os excepcionais não encontram interlocutores, daí ser fácil espalhar-se a crendice em bruxarias, heresias e comunismos os mais diversos.
O sentimento é mais comum onde o conhecimento é mais difundido porque quanto mais pessoas têm acesso ao conhecimento, mais dolorosa é a situação daqueles que não o podem ter, ou que, tendo acesso ao estudo, não conseguem colher bem os seus frutos.
No primeiro caso temos um mal-entendido. No segundo, ressentimento.
Tal correlação, porém, é inexata, não é de 1:1. Certamente você espera encontrar mais obscurantistas no interior do Brasil do que nas ruas de Hanôver. Não se engane, porém, ao pensar que não os encontrará por lá também. Talvez apenas não haja tantos, talvez não sejam tão ousados, talvez não sintam a necessidade de fazer notar, talvez eles não estejam no poder.
Se o anti-intelectualismo é uma ferramenta de poder, devemos esperar que esteja sempre próximo de outras ideologias de poder, como, por exemplo, a religião. Isto é muito fácil de provar, porque é, inclusive, ensinamento bíblico, pedra de toque do cristianismo:
Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.
Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a inteligência dos inteligentes.
Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?
Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.
Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria;
Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.
Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus.
Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
1 Coríntios 1: 18–25
Ainda que haja denominações cristãs que não levem isso ao pé da letra, há um tipo de cristianismo fundamentalista que o leva — curiosamente esse é exatamente o tipo de cristianismo que tem se difundido no Brasil. As formas-pensamento dessa curiosa egrégora parecem construir um ambiente perfeito para guerrear contra a intelectualidade:
A ideia de que Deus rejeita os “capacitados” enquanto “capacita” aos escolhidos indica que Deus rejeita o esforço humano pelo conhecimento (“capacitação”) enquanto habilita certas pessoas a executarem sua vontade, mesmo sem terem conhecimento formal.
Engana-se, porém, quem culpa o pentecostalismo por isso. O anti-intelectualismo, em nossa cultura, está profundamente ligado à religião, isto é verdade, mas ele sempre esteve, mesmo antes da popularização do cristianismo fundamentalista. O Catolicismo de hoje, domesticado e tolerante ao pensamento racional, é muito diferente do de outras épocas. No fundo, toda religião reflete os valores da sociedade. Na verdade, o abandono crescente do Catolicismo pelos brasileiros apenas reflete o divórcio intelectual e cognitivo entre a América Latina, onde a cultura e o conhecimento ainda não penetraram até o âmago da sociedade, e uma Itália onde, apesar de todos as questões do fascismo, triunfou o pensamento moderno.
Os brasileiros abandonam o Catolicismo porque rejeitam a racionalidade iluminista, que reformou e domesticou o Catolicismo. Nossa grande questão nacional é que nós não passamos pela descolonização: nós ainda somos colônia, ainda que não tenhamos mais metrópole formal.
Você certamente já ouviu a frase “astrônomo incréu é louco”, que era dita por nossos antepassados, já deve ter ouvido alguém na família comentar sobre um conhecido que “enlouqueceu de tanto estudar”, já foi aconselhado a “dar um tempo nos estudos” ou alertado que “ler demais cansa a vista”. Também deve ter ouvido algum parente idoso mencionar um conhecido que ficou rico porém mal sabia ler e escrever (eles sempre mencionavam tal conhecido quando queriam nos desestimular dos estudos, querendo dizer que para ser um sucesso na vida não é preciso formação). Nos tempos da colônia, estudar era impossível ou inútil. No máximo o levava a ser padre. O que realmente marcava o sucesso era encontrar um bom veio de ouro ou ganhar os favores de El-Rei.
Nosso imaginário popular está repleto de frases ditas para desmotivar a busca do conhecimento e a nossa própria história está cheia desses exemplos. Até meados do século XX os verdadeiros ricos e detentores do poder eram latifundiários ou descendentes de latifundiários ou pessoas que haviam se casado em famílias de latifundiários. A ordem normal das coisas era os profissionais estudados (bacharéis, médicos, engenheiros, agrônomos, contadores etc.) trabalharem para tais figuras, consolidando uma hierarquia na qual o ignorante, detentor tradicional do poder político e econômico era provedor, protetor e empregador do letrado. O magistério? Esse era o destino das filhas dos ricos. Pagava-se pouco porque elas não dependiam do salário para viver, era o seu “sacerdócio”.
A posição de poder do latifundiário ignorante lhe dava a prerrogativa de escolher quais conhecimentos aceitava e quais rejeitava. Em minha família há inúmeras histórias saborosas do quanto nossos antepassados e amigos rejeitaram os conselhos dos agrônomos da EMATER. Na cabeça dos fazendeiros carrancudos um jovem recém formado nunca poderia saber mais sobre a terra que um agricultor experiente. Aqui temos uma clara relação de poder: o recém-formado, apesar de detentor do conhecimento científico, por estar em uma posição social subalterna, tem seu conselho rejeitado como ineficiente ou ilusório. E continua-se a derrubar o mato, queimar a terra, plantar em leiras verticais e outras obscenidades que destroem o solo e inviabilizam a agropecuária.
Finalmente, o estudo podia ser também visto como elemento desagregador das tradições. Toda família mineira tem pelo menos um caso em que se recitou a máxima “pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador”. Por essa lógica eu seria o pescador, aliás. Nela se sugere que o custo da (inútil) educação destruiu a riqueza da família e provocou a penúria dos descendentes. Nunca se pensou que a queda se deve justamente à imobilidade. Um modo de ganhar dinheiro que funcionou em 1920 já não funcionava nos anos 1970. Sem estudos e sem inovação, os ricos de outras gerações definham diante do crescimento de quem agora ganha dinheiro do jeito novo.
Era natural, portanto, que as pessoas dotadas de boa formação fossem até evitadas, que não fossem consideradas os líderes óbvios, mas tipos excêntricos, que fossem preteridas nas promoções porque não tinham “carisma” (algo que sempre sobra em quem não tem conhecimento real, mas usa todo o seu tempo para construir relações e dar ordens).
A instrução não era vista como formadora de qualidades, mas meramente capacitadora para trabalhos a serviço do Estado ou de pessoas detentoras de poder político — daí a instituição do concurso para selecionar para o serviço público os mais competentes entre os formados. O lugar concebido para o diplomado não era na vida civil, utilizando ativamente seus conhecimentos, mas em uma sinecura. Isso quando os próprios diplomas não eram vistos como uma mera senha para obter um reconhecimento vazio. Se você acha que isso é de hoje, veja o que Lima Barreto tinha a dizer sobre isso em 1926:
Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram: “Sou formado! Está falando com um homem formado!” Ou senão quando alguém lhes diz:
— “Fulano é inteligente, ilustrado…”, acode o homenzinho logo:
— É formado?
— Não.
— Ahn!
Raciocina ele muito bem. Em tal terra, quem não arranja um título como ele obteve o seu, deve ser muito burro, naturalmente.
…
Mas só são três espécies que suscitam esse entusiasmo: o de médico, o de advogado e o de engenheiro.
Houve quem pensasse em torná-los mais caros, a fim de evitar a pletora de doutores. Seria um erro, pois daria o monopólio aos ricos e afastaria as verdadeiras vocações. De resto, é sabido que os lentes das escolas daquele país são todos relacionados, têm negócios com os potentados financeiros e industriais do país e quase nunca lhes reprovam os filhos.
Observe que, desde os tempos da República Velha existe essa obsessão pelas profissões “úteis”: médico (porque curar sempre foi importante em um país caracterizado pela saúde pública precária), engenheiro (porque havia muito que se construir em um país tão grande e pouco populoso) e advogado (porque aqui se trata exatamente do poder político). E nessa época ainda nem havia fundamentalistas cristãos, quem capacitava os escolhidos ainda não era deus, eram as amizades recíprocas dos membros da elite.
O anti-intelectualismo atávico do brasileiro encontrou a sua epítome em Olavo de Carvalho, que foi definido como “a imagem que a pessoa ignorante faz de uma pessoa instruída”. Olavo é um fugitivo da escola, que se envolveu com pseudociências, ganhou dinheiro explorando os outros, construiu uma carreira em cima de currículo inventado e com o apoio de políticos poderosos e agora predica sobre a montanha de estrume que produziu em vida.
Mas ele não está só no alto de tal montanha, lá estão também os pregadores superficiais de igrejas profundamente obscurantistas (esses não nomeio, mas cada um que me processar vestiu a sua carapuça) e estão, acima de todos e principalmente, os políticos manipuladores.
Eles potencializaram os preconceitos tradicionais do Brasil e usaram a internet para transformar isso numa quase religião.