O termo “mitologia brasileira” encontra resistências notáveis das mais diversas origens. Temos a resistência acadêmica, que destaca inexistir um conjunto coerente de mitos abrangendo a totalidade do território nacional. Temos a resistência das minorias étnicas, que desejam preservar, quanto possível, a integridade de suas tradições face à sua “apropriação” pela brasilidade coletiva. Temos a resistência da modernidade, que estranha o conceito, por ter estado afastada de suas origens.
É impossível falar do país que é nosso sem desagradar a alguém que se vê mais dono de cada elemento supostamente pertencente ao todo. Para qualquer tentativa de se abordar a história e cultura do Brasil enquanto nação haverá um grupo que se ofenda e que se defenda, acusando a proposta com vários termos carregados, incluindo “apropriação cultural”, “racismo”, “epistemicídio”, “apagamento”, “whitewashing” etc. De uns tempos para cá, falar do Brasil passou a ser controverso. O Brasil do passado é um país cada vez mais anatematizado, cada vez mais perdido. O brasileiro não quer ajustar as contas com suas origens, quer forjar uma nova identidade, passar uma borracha sobre quem foi e começar a preparar um devir proposital.
Este artigo procurará abordar essas resistências e compreender de que maneira ainda poderemos trabalhar o conceito de nacionalidade versus um programa deliberado de extinção da nacionalidade. Reflexões surgidas diante da apropriação de elementos culturais folclóricos pela cultura popular.
Questionando a Brasilidade
O termo “mitologia” se refere ao conjunto das crenças de determinado povo. Desta maneira, negar a existência de uma “mitologia brasileira” é negar a existência de um “povo brasileiro”. Isto não quer dizer, de maneira alguma, que uma mitologia brasileira (a partir de agora sem as aspas) deva incluir qualquer elemento. Deve ser possível discutir a pertinência dos supostos elementos desta mitologia sem negar a existência desta enquanto categoria.
Uma das razões pelas quais se nega a existência de um povo brasileiro consiste, justamente, em dizer que há “povos brasileiros” e que estes não possuem quaisquer elementos compartilhados, sobre os quais se possa argumentar a existência de uma mitologia comum. Acontece que propor a existência de uma pluralidade de “povos brasileiros” não nega a existência de uma brasilidade comum a esses povos, por mais problemática que tenha sido a construção dessa identidade.
O questionamento da brasilidade, por sua vez, parte de duas
direções: a) o questionamento da existência de uma identidade
nacional brasileira comum — e, portanto, de quaisquer
características comuns adjetiváveis — e b) o questionamento da
originalidade dos elementos característicos (nacionais ou
regionais) que nos particularizam. O primeiro questionamento é o
mais simples, é o que vimos acima. O segundo, porém, envolve o
“complexo de vira-latas”, ao negar que o povo brasileiro tenha
criado, ou mesmo se apropriado, de elementos valiosos capazes de
definir sua cultura. Algo que ecoa as palavras de Monteiro Lobato,
pela boca de Emília: Falam tanto na tal imaginação do povo e eu
não vejo nada disso. Vejo apenas uma grande pobreza.
Cito estes elementos aqui para situar o leitor. Para que saiba onde põe os pés quando nega a existência de uma identidade nacional. Para que saiba pisar com cuidado, mesmo ao fazer questionamentos válidos sobre a cultura nacional.
Folclore Versus Mitologia
Se mitologia corresponde a um conjunto comum de crenças, o termo folclore é bem mais abrangente e se refere ao conjunto de práticas culturais. Diversamente da mitologia, “folclore” não precisa corresponder a uma identidade nacional exatamente porque dentro de uma mesma identidade nacional pode haver elementos folclóricos regionais. Há elementos folclóricos portugueses, por exemplo, que são característicos do sul do país. Esta circunstância em nada prejudica a identidade nacional portuguesa. Por esta razão é que o termo “folclore” é menos carregado que “mitologia”. Aqueles que negam a existência de uma mitologia brasileira não se ocupam de negar a existência de um folclore brasileiro porque é um termo que não repercute políticamente.
A Brasilidade como Resquício
Durante o século XX o Brasil atravessou um processo brutal de urbanização. Entre 1930 e 1990, a percentagem de população rural caiu de mais de 70% para os atuais 15%. Ainda que, metodologicamente, os municípios de baixíssima densidade demográfica devessem ser todos classificados como zona rural, isto ainda não daria nem 25% de população rural.
Esse movimento demográfico aconteceu em menos de duas gerações e não foi somente um deslocamento local, mas envolveu a migração interestadual e interregional, trazendo nordestinos e nortistas para o sudeste e o centro-oeste, sulistas para o centro-oeste e o norte, mineiros para o Rio de Janeiro e São Paulo, etc.
Podemos dizer que a transformação social e econômica do Brasil causou o fraturamento da estrutura cultural e familiar das regiões de onde partiam os migrantes, mas, principalmente, levou à recriação de estruturas diferentes nos locais aonde se instalaram esses migrantes, levando suas contribuições culturais.
Por um lado, isto ameçou a sobrevivência do folclore, diluído em um mar de influências — inclusive a estrangeira, que passa a impactar a partir dos anos 1970. Por outro lado, no entanto, provocou o cruzamento dos caminhos dos elementos folclóricos originais e possibilitou a reinvenção de alguns deles no contexto urbano. O folclore rural brasileiro pode ter sido ameaçado, mas a cultura urbana também produz o seu folclore e, quero crer, também a sua mitologia.
A Brasilidade como Empecilho
Os elementos culturais originários de nossas antigas culturas rurais passaram a sofrer a influência da cultura de massas, o que, de certa forma, os fortaleceu, os descaracterizou e os debilitou, mas, também, os recriou e poderia permitir a sua sobrevivência em um novo contexto.
Aconteceu, porém, um projeto deliberado de destruição da cultura nacional, iniciado a partir dos anos 1970, que foi a principal causa do enfraquecimento da brasilidade. Tal projeto consistiu no enfrentamento da cultura de resistência pela ditadura militar. A fim de calar vozes de autores, compositores e artistas que traziam questionamentos políticos vistos como inaceitáveis; mais do que meramente censurar a produção artística, a ditadura passou a estimular a importação de cultura estrangeira, vista como isenta de questionamentos. Entre o início dos anos 1970 e meados dos anos 2010 foi extremamente raro que um canal de televisão aberta passasse um filme nacional. A música popular brasileira passou a enfrentar o pop internacional, que imperava de maneira mais clara nas FM.
O influxo da cultura pop anglo-americana em quase tempo real criou um desejo inconsciente de “atualização” e gradualmente criou a sensação de que seria preciso “avançar”, “acertar o passo” com o mundo. políticamente isto se consolida no discurso de Fernando Collor de Mello, em 1989, prometendo levar o Brasil ao “Primeiro Mundo”. Nesse contexto, uma produção cultural calcada na brasilidade não seria somente “arriscada” políticamente e controversa, mas, também, descolada do fluxo internacional de ideias em que o Brasil tentava se inscrever.
A Brasilidade como Apropriação Cultural
Historicamente, o conceito de brasilidade é um projeto colonialista porque o Brasil surge a partir de uma colônia. Seria ingênuo supor que algum elemento de nossa identidade teria outra origem.
O projeto colonial traz a cultura portuguesa, que procura implantar à força, e absorve, nem sempre de bom grado, elementos da cultura indígena e africana. Este conjunto de influências, em que o elemento ibérico comparece como hegemônico e intermediador, se caracteriza, portanto, pela “apropriação cultural” no seu sentido mais apropriado.
Estão corretos os indígenas e negros quando reclamam da apropriação e do embranquecimento de seus mitos no contexto da “cultura brasileira”. Reclamam com justa indignação que sua contribuição não recebe o devido reconhecimento. Estarem corretos e reclamarem com justiça não lhes dá razão irrestrita, porém.
A cultura brasileira resultante desta interação, ainda que forçada, dos colonizadores e colonizados não é a mera soma destas influências. As trocas culturais são dialéticas: ninguém leva nada sem deixar um pouco e a mera troca já muda o caráter do que se traz e do que se entrega.
Um bom exemplo disso é o mito da “Iara”, que pode muito bem ser caracterizado como pertencente a uma “mitologia brasileira”, ainda que originado dos povos indígenas. A “mãe d’água” das religiões indígenas era uma criatura primordial, isenta de sedução sexual e de motivação assassina em relação aos humanos. Nos tempos coloniais só se registra o mito do Ipupiara, uma criatura que virava os barcos e devorava os passageiros, e da Cobra Grande, também chamada de Boiúna e de outros nomes. A sedução sexual associada à Iara proviria do mito amazônico do boto (originalmente havia-os de ambos os sexos), mas é muito mais provável que o mito europeu da sereia tenha sido superposto ao da Cobra Grande ou do Ipupiara pelos portugueses. Desta forma, a Iara enquanto sereia fluvial sedutora que atrai os homens para o fundo de lagos e rios para ali afogá-los é um produto criado pela interação de portugueses e indígenas. É um mito brasileiro, ainda que tenha raízes indígenas.
Nesse tipo de situação, é complicado falar de embranquecimento ou de apropriação cultural. Embranquecimento é representar Iemanjá como uma mulher branca. Apropriação cultural é um termo mais difuso e que sugere o “roubo” de elementos específicos de uma cultura por outra majoritária. Os portugueses não embranqueceram a Iara porque foram os brasileiros (mestiços e/ou brancos) que a criaram como é. Tampouco os portugueses se apropriaram da Iara porque uma criatura tal como ela não existia na mitologia indígena.
A Iara é, por conseguinte, um elemento que evidencia a existência de uma esfera cultural “brasileira” que surgiu das trocas culturais entre portugueses, indígenas e africanos.
A Brasilidade como Projeto Nacional
O grande mito nacional brasileiro é expresso no ideal das “Três Raças”. Este mito não surgiu espontaneamente: ele foi criado pelo Estado Novo (1937–1945) como uma estratégia de propaganda política. Subitamente o estado brasileiro começou a propagar um ideal nacional que se superpunha aos ideais regionais.
O ideal das três raças procurava passar uma borracha sobre os aspectos questionáveis da colonização e celebrava o produto final: o mestiço, visto como o “homem brasileiro”.
Quando Ruy Barbosa foi ministro no governo de Campos Salles, mandou queimar toda a documentação do Arquivo Nacional que se referia à escravidão, segundo ele “para apagar esta mancha da história da Pátria”. A propaganda estadonovista leva isto um passo à frente ao propor a mestiçagem como o próprio ideal.
Não é sem controvérsias esta proposta, porque ela justamente ecoa a política nacional de “embranquecimento” do país, levada a efeito desde a independência. Criada pelo Império e mantida pela República, esta política tentava trazer colonos brancos para os postos chave da economia nacional, ao tempo em que expulsava dos centros urbanos os elementos indesejáveis — no caso, os negros.
Ao celebrar a mestiçagem, o Estado Novo tentava diminuir a violência dessas políticas do passado e ingenuamente propunha, de certa forma ecoando Gilberto Freyre, que a construção da nacionalidade não se faria por meio de uma guerra civil, mas através do amor entre os diferentes.
A Mitologia Brasileira Celebraria a Brasilidade Mestiça
Quando falamos de uma “mitologia brasileira” estamos, logicamente, validando a existência deste povo mestiço vislumbrado pelo ideal estadonovista. O brasileiro mestiço incopora elementos das diversas culturais de que descende, cria e refabula uma tradição que soma as anteriores e que se soma a elas.
A mitologia brasileira é a expressão deste povo mestiço, resultante do próprio processo de mestiçagem, com suas opressões e violências.
O passado do Brasil não é bonito e a cultura que ele produziu não é leve nem sofisticada: é a expressão de um projeto de poder e é o reflexo desse projeto nas instâncias autônomas da vida do povo. Nossa cultura transmite nossos medos ancestrais, nossos traumas, as dores de nosso parto enquanto povo. Racista, intolerante, preconceituosa, violenta, complexa e carente de uma unidade nacional exatamente porque o projeto colonial não a propunha.
Encarar a brasilidade envolve acertar as contas com esse passado. Muitos receiam-no, recusam-se a aceitar seus antepassados cujas mãos foram sujas de terra e de sangue. Preferem falar de elfos e imaginar alguma terra estrangeira. Fogem espiritualmente do Brasil porque não aceitam que são descendentes desse projeto colonial. Preferem esquecê-lo do que lhe sublimar em uma nova construção.
Porém a história do Brasil não se limita a esses elementos negativos. Mesmo que se limitasse, deixar de falar deles não diminuiria sua gravidade e nem suas consequências para o presente. Em vez de negarmos nossa cultura, deveríamos melhor compreendê-la para que tenhamos modelos para mudá-la naquilo que possa ser melhorada.
As únicas coisas que podem influir decisivamente sobre o futuro são ações coordenadas — e muito disso já tem sido feito. Só peço que, em nome da boa causa da igualdade racial, não ataquemos a identidade nacional desta forma. Especialmente na literatura. Escrever sobre um fato não é endossá-lo. Romancear um fato não é o mesmo que dizer que ele é correto. Aquilo que faz parte do passado precisa ser mostrado e não apagado. Não podemos limpar o passado do país fingindo que nele não forma cometidos os atos que efetivamente foram cometidos, e não podemos considerar que as referências a este passado são necessariamente criminosas — ou tornaremos cada vez mais difícil a defesa de uma identidade nacional brasileira frente a essa avalanche de conteúdo de massa que nos chega de fora.