Uma das maiores dificuldades do ficcionista é dar vida aos seus personagens. Isto requer “engenho e arte”, como diria Camões, requer inserção na cultura do personagem para que você possa pensar como ele. Para conseguir isso é preciso calejar-se no mundo. Isto é tão complicado de se fazer que a maioria de nós, escritores, preferimos escrever sobre gente parecida conosco, que vive em ambientes próximos e gosta do que gostamos.
Infelizmente, a geração de jovens criados no playground e no shopping, vendo filmes de super-heróis e interagindo através de redes sociais tem pouca ou nenhuma vivência do contraditório. Não tem desenvolvida a empatia necessária para criar bons personagens.
Sempre haverá quem diga que esse argumento é uma forma de preconceito contra os jovens e que muitos bons autores do passado escreveram grandes obras quando eram muito novos. Isto é bem verdade, mas é uma verdade anacrônica e enganosa.
Nem toda obra grandiosa do passado seria tida hoje como grandiosa e nem todo genial autor de antanho seria aceito como um gênio ainda. Mesmo nos casos em que o argumento parece mais válido, ainda há armadilhas. Será que um jovem nascido em condomínio fechado e acostumado a tantos confortos pretende comparar-se Rimbaud ou Radiguet? Rimbaud, aos dezoito, já fugira de casa, vivera com três mulheres, tivera uma relação homossexual com o poeta Verlaine (escandalizando a sociedade da época), publicara muitos poemas elogiadíssimos, era personalidade frequente dos grandes eventos culturais da França, estivera preso por desertar do exército e abandonara a carreira literária para ir ser agente colonial na África. Aos dezoito anos, o que você fez para poder comparar a Rimbaud sua trilogia derivada de Harry Potter?
Para criar a vida é necessário tomar da vida. Se você não tem uma vida sua, como poderá emprestá-la a um ser inexistente que ainda não a possui? A escassez de vida leva o homem a pensar somente no raso. Vê no “livro” o fetiche físico, não a forma literária, porque contempla unicamente o elemento que se vende e se ostenta. Pensa em nomes antes de pensar em personalidades, acha mais fácil inventar toda uma língua do que escolher as palavras certas para dois personagens dialogarem. Faz “ficha de personagem” porque não está acostumado a ambientes complexos, gente de verdade, relações sinceras, corações que batem. Na falta de densidade, entende as pessoas como elementos que pertencem a conjuntos e/ou que podem desmontar-se em partes. Você não é sua alma, mas seu bairro, sua escola, seu sobrenome, sua tribo, seu clã ou sua crença. Dando a esse elemento uma arma e um motivo para agir, temos uma quest e uma desculpa para imprimir quinhentas folhas.
Quando muitos personagens compartilham semelhanças, o jeito é artificialmente introduzir diferenças. Quantos personagens não são descritos pela cor do cabelo, a forma de uma tatuagem ou a presença de uma cicatriz. O autor desse tipo de descrição não alcança o que Machado de Assis quis dizer com os “olhos de ressaca” da Capitu. “Olhos de ressaca” não informa se eram pretos ou castanhos, se redondos ou amendoados, se estritos ou arregalados.